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Elas estão ferozes

Para psicanalista paulista, a revolução feminista foi um passo fundamental, mas algumas mulheres exageram e deixam os homens perdidos e desorientados

Apresentado por Atualizado em 4 Maio 2018, 06h00 - Publicado em 4 Maio 2018, 06h00

A psicanalista Malvina E. Muszkat nunca foi de deixar as coisas onde sempre estiveram. Com base em sua experiência como diretora da ONG feminista Pró-­Mulher, Família e Cidadania, de São Paulo, intuiu que havia espaço para um olhar fora do comum. Começou a ouvir mulheres agredidas pelos companheiros — e passou também a conversar com eles. Com isso, abriu uma avenida de investigações sobre o assunto, mas do ponto de vista masculino. O resultado é seu mais recente livro, que fez barulho antes mesmo de ser lançado, dada a estranheza do que sugere já no título: O Homem Subjugado — O Dilema das Masculinidades no Mundo Contemporâneo (Editora Summus). Nesta entrevista, Malvina fala da desorientação do homem diante do novo feminismo e discorre sobre os desafios apresentados aos dois gêneros.

O novo feminismo está subjugando o homem? Sim, minha ideia foi demonstrar justamente isso. Hoje, as mulheres estão à frente do debate público, ferozes. Elas cresceram muito, e os homens, ao contrário, ficaram parados. Como eles têm muita dificuldade de falar de sentimentos e conflitos internos, pensei primeiro em dar ao meu livro o título de O Silêncio dos Homens. Porque eles estão confusos, estão perdidos. Nosso tempo é de transição, e momentos de transição são assustadores. O ser humano busca referências claras, e, quando as perde, isso pode ser dramático.

Que referências os homens deixaram de ter? Deixaram a posição de autoridade absoluta, de gerar e gerir a família, de cuidar dos bens e do comportamento familiar. Cabe, então, uma indagação: qual o lugar masculino hoje? Os homens já não sabem com exatidão. Digo, de brincadeira, que mudaram as regras do jogo e eles não foram avisados. Outro dia, Gloria Kalil falava na televisão a respeito do livro de etiqueta que estava lançando, e o entrevistador perguntou-lhe se o homem deveria ou não abrir a porta do carro para a mulher. O que antes era visto como gentileza agora pode ser considerado machista.

O homem está sofrendo com essas mudanças? Está. E sofrendo calado. Talvez por isso o homem agora esteja mais exposto a doenças psíquicas do que antes. Os meninos são muito ansiosos, porque têm de corresponder o tempo todo às expectativas. As mulheres também, é claro, mas a grande novidade é o que se passou a exigir do universo masculino.

Por que a senhora diz que as mulheres estão “ferozes”? As mulheres conhecem seus direitos e, sobretudo, se sentem com direitos. Mas acho que há uma exacerbação por parte delas. E não é impossível que haja uma reversão no papel dominante, porque os homens estão meio abobados, não sabem o que fazer. As famílias têm criado as meninas para ser independentes, para saber se defender, mas os filhos continuam a ser criados do mesmo modo, para ser valentes e não ser associados à homossexualidade.

“Em vez de botar o agressor na cadeia, onde ele vai bancar o machão diante dos outros, sugiro penas alternativas, obrigando o condenado a refletir sobre o que o levou à violência”

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A mulher não se adaptou por completo às mudanças, então? Busca adaptar-se, e tem conseguido, embora às vezes se note alguma dificuldade em lidar com o poder. Quando tem poder, a mulher fica dura. Ao observar algumas chefes de Estado, você verá que elas fazem uso de um modelo mais masculino que feminino. Isso ainda acontece, apesar de ter sido mais forte nos anos 1980. Em outros ambientes, contudo, estão sendo valorizadas as características tidas como femininas. Atendo executivos que alimentam características femininas para gerir a equipe. Eles querem exercer uma liderança mais branda, ter capacidade de relacionamento que se oponha ao estilo grosseirão, que apenas cumpre horários e exige metas com pulso firme. Os aspectos da feminilidade, que sempre foram rejeitados, hoje fazem parte da cultura empresarial. Valoriza-se muito a empatia, a capacidade de perceber o outro, de pôr-se no lugar do outro.

A mulher é mais empática que o homem? O cérebro é igual, hoje se sabe, mas algumas tendências estão mais presentes que outras. Experiências em berçário mostram que, quando um bebê chora, as meninas choram junto. Os meninos, não. Então, há algo que precede a cultura. Mas os homens também não desenvolvem a empatia porque são poupados dela. É muito difícil você ouvir alguém dizer a um garoto: “Cuide da sua irmãzinha”. As mulheres já partem do pressuposto de que o homem não sabe cuidar, portanto nem lhe fazem esse pedido.

Como, então, criar meninos para um novo mundo? Da mesma forma como educamos as meninas, com acesso franco aos seus sentimentos. Meninos morrem de vergonha de dizer que estão com dor, que têm medo. É preciso deixá-los brincar de boneca, usar esmalte, tudo o que a menina faz. Às vezes, sem dizer nada, a mãe faz uma distinção, a própria expressão do rosto já diz algo. Ou então ela age de maneira mais protetora com a menina. O menino pode ser terno sem ser criticado nem chamado de mariquinhas. Ele também tem de ser autorizado a ficar na barra da mãe tanto quanto a menina fica. É preciso dar todas as oportunidades para que cada um manifeste a sua identidade ao se reconhecer em uma figura ou em outra. Pela cultura corrente, o menino não pode se identificar com a mãe. A sociedade exige dele a capacidade de responder rapidamente, de ser forte, rude, preparado para a guerra. Nós mesmas, mulheres, formamos esses homens que depois vão responder de maneira grosseira. Eles não são violentos só contra as mulheres, eles são violentos contra si mesmos. Morrem mais cedo, vão presos em maior número, matam mais, suicidam-se mais.

Muitas vezes, esse desconforto masculino que a senhora identificou acaba desaguando na violência doméstica. Por quê? Se olharmos para as circunstâncias culturais que vão construir a personalidade do homem, perceberemos uma sociedade que o impede de viver os aspectos da subjetividade chamados de “femininos”, como a ternura, a empatia, a compreensão. A própria mãe cria o filho para ser valente. Se todos acessassem esses sentimentos desde cedo, duvido que houvesse violência como há. Em paralelo, existe uma desmoralização milenar da figura feminina. Eva, a personagem bíblica, é entendida como uma sem-vergonha: ela seduziu Adão e levou-o ao pecado original. O mundo começa, assim, com uma mulher devassa. Maria Madalena foi transformada em prostituta. O filme Maria Madalena, com a atriz Rooney Mara, é muito ruim, mas mostra isso. As mulheres sempre foram caracterizadas pela Igreja como seres perigosos. Então, de um lado, o homem tem medo da mulher que ele deseja e ama. De outro, tem de se defender e quer manter o poder. Não pode fraquejar. Se a mulher o humilha em público, pior ainda. Ameaçado, ele agride para aliviar a sensação de que está perdendo a identidade. Do ponto de vista da psicanálise, tudo tem um símbolo, um significado para nós. Se aquela compreensão nos falta, entramos em angústia e sentimos que podemos enlouquecer.

“Digo, de brincadeira: mudaram as regras do jogo e os homens não foram avisados. O que antes era visto como gentileza agora pode ser considerado machista”

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Do ponto de vista prático, como a senhora imagina ser possível reduzir o número de casos de violência do homem contra a mulher? Na ONG feminista Pró-Mulher, atendi mulheres de baixa renda, vítimas de violência, que nos eram enviadas pela Procuradoria do Estado. Depois de atender apenas mulheres por um longo período, entendi que tinha de correr o risco, na busca por melhores resultados, e atender também seus parceiros, os agressores. Os homens obedecem a preceitos culturais disseminados no discurso coletivo, do tipo “Homem não leva desaforo para casa”, “Mulher alguma dá ordens a um homem”, sem nenhuma reflexão a respeito do assunto. Prendê-los apenas não seria útil; era necessário ouvi-los e dar a eles a oportunidade de nos ouvir. Provocar neles uma reflexão. Não sou contra a punição do crime, mas bem sabemos que a prisão no Brasil não é atalho para a ressocialização, ao contrário. Em resumo: não adianta só prender, é preciso conversar com esses homens. E, ao conversar, entender por que agrediam, se sofriam ao agredir.

Qual o resultado? Acredite: esses homens iam se modificando. Não falo de milagre, mas de ressignificação. Quando o homem percebe que foi covarde, ele se vê fraco e muda, abandonando a violência. O método é eficiente e rápido — e teria de ser rápido, para obedecer aos prazos estipulados de parceria entre a ONG e os órgãos públicos. Os próprios ofensores são estimulados a refletir sobre o que pensam dos colegas e como se veem, o que os obriga a uma reavaliação dos princípios. Se eles dizem coisas como “As mulheres são sem-vergonha, enganam a gente”, confrontamos essa ideia com uma pergunta simples: “Quer dizer que todas as mulheres são vagabundas?”. Ao que respondem: “Menos a minha mãe”. E começam a mudar a postura. O trabalho não foi adotado como política pública. É, portanto, ainda precário. Mas os resultados são evidentemente positivos: 70% dos casos apresentam remissão total, e os homens deixam de bater.

Feministas queixam-se desse tratamento com o argumento de que, enquanto os homens vão para o divã, as mulheres vão para o necrotério. Não acho que entender o lado dos homens sirva de atenuante para nada. Minha intenção não é ser boazinha com ninguém, é mudar as políticas públicas. O que imagino é uma mudança fundamental: em vez de botarmos o agressor na cadeia, onde ele vai bancar o machão diante dos outros, devemos oferecer penas alternativas, obrigando o condenado a refletir profundamente em torno das questões que o levaram à violência. É preciso acabar com essa ira interna que faz um homem afirmar-se por meio da força. É como o guerreiro que tem de matar para se sentir potente. É uma imagem que vem da Antiguidade, da Grécia. Algumas feministas ficavam bravas porque eu atendia agressores, mas nunca os atendi para colocá-los no colo, e sim para entender o que estava acontecendo com eles. Ao sair da prisão, o agressor pode voltar a bater. Ou pode sair pior, já que cadeias especializam pessoas no crime. Além disso, apesar de denunciar, nem sempre a mulher quer que o homem seja preso. Ele é o pai dos seus filhos, já foi o amor da sua vida. É complicado.

A senhora é contra a prisão de agressores de mulheres? Não sou contra a punição — a prisão, de modo geral, no Brasil, não ajuda ninguém, só especializa pessoas no crime. Mas não dá para resolver o problema da violência do homem contra a mulher apenas pelo caminho judiciário; é muito pouco.

Publicado em VEJA de 9 de maio de 2018, edição nº 2581

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