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E vamos aos fatos

O furo dos Papéis do Vietnã foi do 'New York Times', mas o filme de Steven Spielberg tem razões fortes para enaltecer o 'Washington Post'

Por Isabela Boscov Atualizado em 30 jul 2020, 20h29 - Publicado em 19 jan 2018, 06h00

“Assustada e tensa, engoli em seco e disse: ‘Vamos adiante. Vamos adiante. Vamos publicar’. E desliguei.” Assim Katharine Graham (1917-2001), dona e diretora responsável do jornal The Washington Post, descreveu em uma autobiografia o instante de 17 de junho de 1971 em que deu o sinal verde ao diretor de redação Ben Bradlee para publicar os chamados Papéis do Pentágono ou Papéis do Vietnã — um estudo sigiloso de milhares de páginas encomendado quatro anos antes pelo então secretário de Defesa Robert McNamara, um dos artífices da Guerra do Vietnã. E assim também a cena é mostrada por Steven Spielberg em The Post — A Guerra Secreta (The Post, Estados Unidos, 2017), que estreia nesta quinta-feira: como um momento heroico do jornalismo. Arrancada do discurso que fazia numa festa para atender uma chamada de Bradlee (Tom Hanks), a vacilante Katharine (Meryl Streep) se enche de coragem para bater de frente com o presidente Richard Nixon, desafiar a Procuradoria-Geral e os conselhos dos seus advogados, e arriscar até a existência do seu conglomerado de comunicação: “Vamos publicar”.

Quem não gostou nada do tom comemorativo do filme, porém, foi o The New York Times. Pelo simples motivo de que, quando Katharine mandou o Post ir adiante, o jornal nova-iorquino já havia dado o furo dos Papéis do Vietnã. Os 47 volumes do documento vazado para o Times pelo analista militar Daniel Ellsberg (Matthew Rhys) detalhavam o envolvimento americano no Sudeste Asiático desde a II Guerra Mundial até maio de 1968, e deixavam claro que, já na altura em que solicitara o estudo, McNamara dava como perdida a Guerra no Vietnã. Mas governo após governo prosseguira nela, mandando soldados para a morte a pretexto de uma vitória que se sabia ser impossível. O Times vinha publicando as informações secretas desde 13 de junho, e acabara de ser calado por uma liminar concebida na Casa Branca que o obrigava a aguardar a decisão da Suprema Corte. Por que, então, o filme de Spielberg se chama The Post — e não The Times?

É justo que o Times se sinta melindrado, embora Spielberg se dê uma única licença dramática de monta — a de reduzir o papel fundamental do então diretor responsável do jornal, Arthur O. Sulzberger. De resto, a valentia do diário de Nova York está lá: os três meses que o repórter Neil Shee­han (Justin Swain) passou estudando as 3 000 páginas de narrativa dos Papéis (mais 4 000 páginas de apêndices), com o respaldo do aguerrido diretor de redação Abe Rosenthal (Michael Stuhlbarg); a maneira como o Times se recusou a ceder às tentativas de cerceamento, até ser encurralado pelo Judiciário; e a consternação com que Ben Bradlee tomou o pior furo de sua carreira: até o repórter do Post Ben Bagdikian (Bob Odenkirk) obter o documento, Bradlee reproduziu todos os dias a reportagem do Times com crédito ao concorrente.

E aí está parte da resposta. O filme se chama The Post porque é uma convocação: jornalismo de primeira não deve ser ambição só dos fortes, como o The New York Times. Por ser uma necessidade democrática, um serviço público e um imperativo moral, deve ser a meta também dos quase insolventes, como o The Washington Post de 1971, e dos titubeantes, como o era ainda Katharine Graham. Deve ser, enfim, o único jornalismo que merece esse substantivo. É a exortação de Spielberg contra as fake news e as “versões oficiais” com que o governo de Donald Trump tenta desacreditar o jornalismo independente. Nixon detestava a imprensa com a mesma intensidade que Trump — e foi vencido, é o que o diretor deixa subentendido.

Dois outros aspectos, ainda, completam a explicação para o título do filme. O primeiro está, também ele, subentendido: exatamente um ano depois, em 17 de junho de 1972, a polícia foi notificada de uma invasão no complexo Watergate, em Washington — e aí começou o maior escândalo da política americana, que culminaria com a renúncia de Nixon, em 1974, e foi descoberto e desvendado quase que na íntegra pelo Post. Sem a coragem de assumir a publicação que fora vetada ao Times nos Papéis do Vietnã, e sem a relevância adquirida com aquele caso, teria sido difícil a Katharine e Bradlee amparar os repórteres Carl Bernstein e Bob Woodward como o fizeram no caso Watergate.

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“Adiante” – Katharine e Bradlee deixam o tribunal, vitoriosos, em 1971: um ano depois, o Post investigava Watergate

O segundo aspecto vem na figura de Katharine. Filha de um milionário que se apaixonou pelo jornalismo e comprou o pequeno The Washington Post com a meta de torná-lo grande, Katharine, ou Kay, era socialite, esposa, mãe, figura social proeminente — mas de maneira nenhuma mulher de negócios ou empreendedora. Em 1963, assumiu o conglomerado (que incluía a revista Newsweek, uma rádio de notícias e algumas estações de TV) porque seu marido, Phil Graham, presidente do grupo, se suicidara. Nas revisões de sua carreira, Katharine nunca escondeu como era insegura e se sentia inadequada, e como dependia da orientação dos homens à sua volta. “Um homem desempenharia este trabalho que eu faço muito melhor que uma mulher”, disse numa entrevista de 1969. Katharine era conhecida pela atitude deferente que assumia em reuniões, e por engasgar até com perguntas cuja resposta conhecia. Estava também no meio de uma delicada abertura de capital. Muito de The Post, portanto, gira em torno do despertar de sua força e convicção. É uma faceta explícita do filme, mas não a mais bem-sucedida. Em uma atuação quase sempre opaca, que mais reproduz os maneirismos de Katharine do que joga luz sobre sua transformação interior, Meryl Streep falha em mostrar a fibra que já estava lá. Da mesma maneira, Tom Hanks dá a sua versão cativante, mas sem muito relevo, do proverbial “homem de notícias” Ben Bradlee. O elenco de apoio, porém, é um deleite, com retratos às vezes breves, mas sempre ricos, dos personagens que participaram da história. E a direção fluida e confiante de Spielberg vem com o brio adicional de quem se sente na obrigação de demonstrar que não existe “realidade alternativa”. Existe a realidade — e então a falácia.

Publicado em VEJA de 24 de janeiro de 2018, edição nº 2566

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