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Do horror ao sublime

'Dunkirk' é uma experiência implacável na sua reconstituição de um episódio da II Guerra Mundial, e magnífica em seu virtuosismo e inspiração

Por Isabela Boscov Atualizado em 22 jul 2017, 06h00 - Publicado em 22 jul 2017, 06h00

A PRAIA É RASA, e só na ponta do molhe que avança pelo mar é possível atracar os destróieres que tentam recolher as filas intermináveis de soldados — dezenas de milhares deles, abatidos pela derrota que permitiu aos nazistas arrebanhá-los na cidade francesa de Dunquerque, encurralados contra as águas do Canal da Mancha. Ao relento, sem provisões e sem chance real de resgate, os cerca de 400 000 ingleses, franceses e belgas vão passar mais de uma semana expostos, na praia imensa, tentando a sorte na loteria das explosões: os alemães apenas deixam as bombas cair dos aviões, matando a esmo. A cada voo rasante, a sala de cinema inteira guincha, e então ribomba e trepida. Ou se é bom­bar­dea­do em terra ou já no mar pelos torpedos que incendeiam os navios carregados de homens. Dunkirk (Estados Unidos/Inglaterra/França/Holanda, 2017), que estreia no país nesta quin­ta-feira, é uma experiência implacável — mas não à maneira incessante dos célebres vinte minutos iniciais de O Resgate do Soldado Ryan. Na recriação do inglês Christopher Nolan, a imersão no caos vem sobrepesada pelo desalento e pela impotência e, ao final, por um acontecimento tão extraordinário que, da derrota quase fatal para Adolf Hitler, a Inglaterra em um único dia encontrou toda a fibra para suportar mais cinco anos de guerra feroz.

Nolan, de A Origem, Interestelar e da trilogia Cavaleiro das Trevas, é um diretor que se atira à tarefa de expandir o escopo técnico e narrativo do cinema. Mas aqui ele atinge um virtuosismo e um impacto fora até de seus padrões: rodado em 70 milímetros, no sistema Imax, com “o mínimo incontornável” de efeitos digitais (leia a entrevista com o diretor na página ao lado), até 4 000 figurantes em cena e ação real, captada em câmera, Dun­kirk é ambicioso e majestoso como quase nada mais o é hoje. Da imagem ultranítida do Imax, da qualidade tátil das cenas e do uso mesmerizante da profundidade de foco, Nolan extrai uma história intensa: entre 26 de maio e 4 de junho de 1940, nove meses após o início da II Guerra Mundial, os Aliados sentiram-se perto de ser engolfados pelo III Reich. Quase meio milhão de homens pereceriam em Dunquerque; refazer os Exércitos seria impossível à Inglaterra, e mais ainda à França, já fervilhando de alemães.

Resgate Histórico – Um soldado é o primeiro a perceber o som de um caça alemão: expressividade na coreografia (//Divulgação)

O desespero absoluto foi revertido pelas centenas de ingleses e inglesas que, no 4 de junho, saíram de casa para ir à guerra e atravessaram o Canal da Mancha em barquinhos de pesca, lanchas, botes, iates de passeio e traineiras para carregar eles mesmos os soldados para a Inglaterra, ou então levá-los até navios maiores em al­to-mar. A conta oficial é de 340 000 homens salvos: a maior operação de resgate já registrada, e uma vitória épica arrancada aos dentes mesmo da derrota. Assinalada pelo primeiro-ministro Winston Churchill com um discurso arrebatador (“Lutaremos nas praias, lutaremos nos campos e nas ruas, lutaremos nas colinas; não nos renderemos jamais”), a evacuação de Dunquerque transubstanciou a calamidade. Sem a união instigada por ela, os ingleses talvez não tivessem resistido aos dezoito meses que se passariam ainda para os americanos juntarem seu poderio ao dos Aliados.

Esses dois fatores — a derrota militar e a ausência dos americanos desse trecho da história — fazem da evacuação um evento raras vezes visitado. Nolan, porém, mergulha nele. Com pouquíssimos diálogos, uma abordagem sensorial (em que os movimentos dos conjuntos humanos são importante elemento narrativo) e uma linha de tempo fragmentada, o diretor se cola a um punhado de personagens. Não há cenas gerais de batalha ou sucessão linear de eventos para situar o espectador. Ao contrário, ele acompanha simultaneamente três fios distintos: a semana que os soldados passaram na praia, o dia que os barquinhos levaram para cruzar da Inglaterra à França, e a hora de voo que cada caça permaneceu no ar nessa última etapa.

Desde o início, o domínio de Nolan sobre a narrativa se apresenta com brilho. Numa cidade deserta, os panfletos despejados pelos alemães vêm caindo, carregados pela brisa. “Rendam-se”, dizem eles aos soldados que os apanham nas ruas, onde estes caminham em silêncio, bebem de uma torneira, olham as casas vazias. De repente, a desorientação do fogo aberto. E, à medida que cada rapaz é abatido, o diretor se põe atrás do único a escapar — o menino interpretado pelo desconhecido (e notável) Fionn Whitehead. Por meio dele, chega-se ao molhe, onde o almirante vivido por Kenneth Branagh tenta embarcar os soldados. Deles, vai-se ao mar: aos torpedos que lançam os homens à água (junto com os operadores de câmera), ao homem de gravata (Mark Rylance) que atravessa a Mancha num iatezinho, ao oficial em choque (Cillian Murphy) que ele recolhe de uma carcaça naufragada. E, no ar, em caças em voo maquiados para parecerem Spitfires, Tom Hardy e Jack Lowden (mais, de novo, os cameramen) são os pilotos em perseguição aos Messerschmitts e Heinkels alemães que tentam bombardear tudo abaixo deles. Dunkirk exaure o espectador com a tensão. E então o extasia com a incongruência sublime: as donas de casa de lenço na cabeça, os homens de boné e suéter, as crianças de calça curta que chegam para salvar os soldados dados como perdidos.

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“Sou otimista sobre a natureza humana”

O inglês Christopher Nolan, de 46 anos, passou as duas últimas décadas expandindo os limites técnicos e narrativos do cinema com filmes como Amnésia, A Origem, Interestelar e a trilogia Cavaleiro das Trevas — mas nunca chegou tão longe quanto em Dunkirk. A seguir, ele fala como recriou a mais vitoriosa derrota da II Guerra Mundial.

AO RELENTO – Nolan, com Branagh: ação real captada com câmera (//Divulgação)

Poucas vezes a evacuação de Dunquerque foi mostrada no cinema. Seria porque os americanos ainda não estavam na guerra, ou porque é a história de uma derrota? As duas razões. Os ingleses compreendem que a derrota em Dunquerque e a evacuação que se seguiu constituem uma vitória de imensa ressonância. Mas essa não é uma história que pertença aos americanos, que produzem a maior parte dos filmes relacionados à II Guerra Mundial. Sendo um episódio de proporções colossais, porém, ele requer um orçamento de padrão americano para ser recriado com alguma fidelidade. É um filme que exige um cineasta — nesse caso, eu — com suficiente confiança por parte de um grande estúdio americano para persuadi-lo de que essa pode, sim, ser uma história de apelo universal.

Dunkirk é quase experimental — tem poucos diálogos, muita sensação e uma linha de tempo fragmentada. Meu plano era fazer um filme com ritmo diferente de qualquer coisa que eu já houvesse feito —ou mesmo visto. Desenvolvi então uma estrutura em que vários pontos de vista subjetivos são contrastados, e desenrolam-se em três janelas de tempo. O intuito é manter o espectador no mesmo estado de suspense que as pessoas envolvidas na ação estariam experimentando.

Em que medida isso foi um complicador? Houve enormes desafios físicos e logísticos, na maioria advindos da decisão de usar ação real captada com a câmera, apenas com o mínimo incontornável de efeitos digitais. Isso implicou semanas de filmagem com equipe e elenco expostos às intempéries e até 4 000 figurantes envolvidos numa mesma tomada. Mas reclamar de desconfortos seria deplorável: eles foram triviais e insignificantes em comparação com o que os milhares de homens acuados na praia de Dunquerque passaram.

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Filmar ação real é hoje quase uma atitude de resistência, não? A dependência crescente dos efeitos digitais tomou um rumo equivocado: tornou-se questão de conforto, não de qualidade. Em vez de levar a uma melhora substantiva dos efeitos para que eles se comparem de igual para igual à ação real, ela levou a uma piora da cinematografia. Aceita-­se que aquilo é falso, e pronto. Agora é o rabo que balança o cachorro.

Dunkirk transparece uma ponta de decepção: o sentimento de que tamanha solidariedade em meio a tanto sofrimento não teria lugar no mundo de hoje. Confere?
Sim, o filme convida à especulação sobre esse tema. A maneira como milhares de pessoas comuns cruzaram o Canal da Mancha em barquinhos para ir resgatar os soldados — como, essencialmente, saíram de casa para ir à guerra naquele dia — é um lembrete extraordinário de que comunidades são capazes de feitos que estão fora do alcance dos indivíduos. E certamente vivemos numa cultura que valoriza a individualidade e a conquista individual. Mas talvez o simples fato de reconhecer que a solidariedade e a fortitude são virtudes já seja prova de que esses sentimentos ainda existem. Sou otimista a respeito da natureza humana.

 

Publicado em VEJA de 26 de julho de 2017, edição nº 2540

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