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Democracia espiritual

'Lincoln no Limbo', de G. Saunders, apresenta o grande presidente americano em luto pelo filho — e no meio de uma ruidosa convenção de fantasmas desgarrados 

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 mar 2018, 06h00 - Publicado em 30 mar 2018, 06h00
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Lincoln no Limbo, de George Saunders (tradução de Jorio Dauster; Companhia das Letras; 408 páginas; 59,90 reais ou 39,90 reais em versão digital) (//Divulgação)

A ação de Lincoln no Limbo se dá em um espaço paralelo ao mundo material, habitado por uma extravagante multidão de espíritos desgarrados entre a vida passada e algum estágio posterior desconhecido. E George Saunders, de 59 anos, autor de quatro aclamadas coletâneas de contos (só uma delas, Dez de Dezembro, publicada no Brasil), parece ter sido possuído ao escrever este vigoroso primeiro romance, vencedor do prêmio Man Booker do ano passado. É como se ele houvesse encarnado o espírito turbulento do poeta nacional dos Estados Unidos — Walt Whitman (1819-1892). O ímpeto desmedido do poeta que desejava fazer soar em seus versos todas as vozes da sociedade americana anima igualmente a ficção de Saunders. O escravo e o senhor de escravos, o casal de alcoólatras miseráveis e a senhora avarenta e rica, o presidente do país e seu filho morto aos 11 anos de febre tifoide: todos falam — e falam muito, e falam com eloquência e beleza — em Lincoln no Limbo.

O título original não fala no limbo, mas no bardo, espaço intermediário entre a morte e o renascimento na tradição budista tibetana (Saunders, como bom hipster, cultiva o budismo). Mas o pós-morte descrito aqui fica entre o imaginário cristão (o reverendo Everly Thomas, um dos principais fantasmas da história, mantém-se no limbo por medo de cair no inferno) e certa fantasia gótica pop (a aparência dos espíritos passa por metamorfoses grotescas que caberiam em uma comédia de Tim Burton). A história transcorre em uma só noite de fevereiro de 1862, quando o espírito de Willie Lincoln, de 11 anos, surge no cemitério de Washington, onde seu corpo foi depositado em um mausoléu. Ele é recebido por dois antigos habitantes do local, Hans Vollman, impressor que morreu quando uma viga desabou do teto sobre sua cabeça, e Roger Bevins III, que, atormentado com os próprios desejos homossexuais, se suicidou na adolescência. Vollman ainda espera retornar à esposa jovem com quem não chegou a ter relações sexuais, e Bevins arrependeu-se de ter cortado os pulsos quando já era tarde demais para estancar a hemorragia. Ambos se iludem com a ideia de que estão apenas convalescendo em suas “caixas de doente” (isto é, caixões). Mas Willie não está enredado nesse autoengano: está apenas confuso. Fica ainda mais confuso quando seu pai, melancólico e desconsolado, visita o mausoléu e retira o pequeno cadáver de seu nicho para tomá-lo uma derradeira vez no colo (consta que Abraham Lincoln fez visitas noturnas ao cemitério, mas é incerto que tenha mexido no corpo do filho).

Lincoln não vê o espírito do filho, nem nenhum dos outros fantasmas. Os espíritos veem Lincoln, mas não o conhecem — há muito tempo afastados do noticiário político, ignoram que aquele homem alto e triste se tornara, no ano anterior, o 16º presidente dos Estados Unidos. Tampouco sabem que sobre os ombros do visitante cai a pesada responsabilidade de governar um país rasgado por uma cruenta guerra civil entre o norte abolicionista e o sul escravista. O que os impressiona é o fato de uma pessoa viva e saudável tocar no corpo de um morto querido. Só por isso Willie se torna, sem o desejar, uma celebridade entre os espíritos. E a esperança de que o pai retorne adia perigosamente sua partida para o além.

A última vez em que os lilases floriram – Willie, que morreu de febre tifoide aos 11 anos, e seu pai, Abraham Lincoln: o presidente enfrentou o peso do luto em meio à Guerra da Secessão (National Library/.)

Lincoln no Limbo alterna capítulos feitos só de citações de fontes históricas — reais e inventadas — com longos e oníricos diálogos entre os espíritos. Mas essa narrativa experimental não contorna as cansadas convenções da ficção espírita: para que cada personagem complete seu ciclo, ainda é obrigatória a conciliação com a vida pregressa e a consequente passagem para um outro plano de existência (não ajuda muito que Saunders designe a tal passagem com uma expressão pedante: “conversão matéria-luz”). Esse melaço kitsch se torna talvez demasiado espesso nas páginas finais.

A dignidade de Abraham Lincoln, porém, sai imaculada. Na ficção espiritual de Saunders, o presidente, depois de sua noite entre espíritos que não vê, mas que tocam inefavelmente seu pensamento, abraça o sofrimento pela perda do filho e retorna à Casa Branca determinado a pagar o preço amargo da guerra para criar um país livre da mácula da escravidão. Nessa noite de retiro no ermo de um cemitério, ele teve sua experiência whitmaniana, possuído pelas vozes múltiplas de seu país (“Sou amplo. Contenho multidões”, diz Whitman em Canção de Mim Mesmo).

Em abril de 1865, três anos depois da morte de Willie e dias depois da rendição do general confederado Robert E. Lee, Abraham Lincoln foi assassinado em um teatro. O corpo de Willie foi transferido de Washington para Springfield, Illinois, para repousar ao lado do pai. Walt Whitman homenageou o presidente morto em Na Última Vez em que Lilases no Pátio Floriram, uma das mais belas elegias em língua inglesa. Mas isso já não é matéria de Lincoln no Limbo. Saunders oferece ao leitor só uma noite lúgubre da vida de Lincoln. A grandeza do personagem e do país está toda lá.

Publicado em VEJA de 4 de abril de 2018, edição nº 2576

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