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Custe o que custar

Ancorado na atuação soberba de Gary Oldman no papel de Winston Churchill, 'O Destino de uma Nação' lembra que um único homem pode fazer toda a diferença

Por Isabela Boscov Atualizado em 31 jan 2018, 15h28 - Publicado em 5 jan 2018, 06h00

É uma sinfonia discreta: a cascata das teclas das máquinas de escrever; o chiado de fósforos sendo riscados, e o estalido do tabaco que se acende nos charutos; a percussão das bengalas nas calçadas, e as ca­netas-tinteiro que arranham o papel. Ruídos que hoje quase não se ouvem mais, enfim, dão textura ao mundo que já se foi evocado em O Destino de uma Nação (Darkest Hour, Inglaterra, 2017), que estreia no país nesta quinta-feira — o mundo in extremis de maio e junho de 1940, quando centenas de milhares de soldados ingleses, franceses e belgas se viram acuados pelos alemães, contra o mar, na praia de Dunquerque, no que poderia ter significado a aniquilação das forças aliadas e a vitória do nazismo na Europa. Se esse passado possível não se concretizou, foi em boa parte por persistência de um homem já a caminho dos 70 anos, rotundo, enérgico e excêntrico, que acordava perto do meio-­dia para um café da manhã acompanhado de uísque, e que quase nunca era visto sem um charuto entre os dedos — o primeiro-ministro Winston Churchill (1874-1965), que assumiu o comando da Inglaterra em 10 de maio daquele ano e, no prazo de três semanas, debelou a oposição cerrada às suas ideias, orquestrou a evacuação de Dunquerque, galvanizou a nação e a conduziu, de olhos abertos, para o centro do maior conflito armado da história, do qual Adolf Hitler afinal sairia derrotado em maio de 1945. “Imagine se uma bala tivesse encontrado Churchill 25 anos antes, na I Guerra Mundial; em que mundo tenebroso teríamos vivido desde 1940?”, indaga o inglês Gary Oldman, que dá vida ao primeiro-ministro no filme.

Winston Churchill
Render-se, Jamais – Churchill num comício: derrota convertida em orgulho (//AFP)

Oldman conquistou o direito de especular sobre a grandeza do personagem. Em um desempenho esplêndido, o ator magérrimo, de 59 anos, se transforma em Churchill muito mais pela potência da personalidade, pela centelha do humor e pelas suas extraordinárias habilidades dramáticas que pelo auxílio da maquiagem e do figurino. “A semelhança com um personagem é algo que pode ser forjado. A essência dele, jamais”, disse a VEJA o diretor Joe Wright, explicando que escolheu Oldman por enxergar nele as mesmas energia e intensidade “quase maníacas” do célebre estadista. O Destino de uma Nação acompanha Churchill num momento que exigiu o máximo dessa sua vitalidade. Com uma carreira militar, diplomática e política em que os fracassos eram tão ou mais conhecidos que as conquistas, Churchill articulou a derrubada do primeiro-ministro Neville Chamberlain (Ronald Pickup) e sua própria ascensão. Chegou ao cargo com a reputação — inclusive dentro do próprio partido, o Conservador — de ser manipulador, errático e talvez alcoólatra. Havia anos, porém, Churchill sustentava que Adolf Hitler era um mal absoluto que nunca poderia ser dobrado ou contornado; só combatido de frente. Portanto, imp­usera-se a tarefa de demolir a política de apaziguamento de Neville, que considerava tão estúpida quanto débil, e substituí-la por outros imperativos — nunca ceder, nunca render-se e lutar até o fim, mesmo que isso obrigasse os ingleses a um trauma ainda pior que o da I Guerra.

Incansável, o Churchill de Oldman corteja o relutante rei George VI (Ben Mendelsohn), berra com a secretária assustada (Lily James) que esquece de datilografar em espaço 2 — ele odiava linhas coladas umas às outras —, briga com a mulher, a imperturbável Clemmie (Kristin Scott Thomas), e vocifera com seu gabinete em preparação para a ofensiva crucial contra Hitler. Não são muitas as figuras históricas que o poder engrandeceu de maneira assim indisputável, e Oldman tira partido de cada instante dessa construção do homem em líder icônico — como se Churchill fosse ele próprio um ator que, tendo finalmente conseguido o papel que sempre quis fazer, estivesse se expandindo nele até ocupá-lo por inteiro e torná-lo maior do que jamais fora antes.

Filmando com o estilo exuberante, ritmado e envolvente já demonstrado em trabalhos como Orgulho e Preconceito e Desejo e Reparação (no qual incluiu um belíssimo plano-sequência do horror em Dunquerque), Joe Wright faz de seu filme um par oportuno a Dunkirk: enquanto o épico do também inglês Christopher Nolan se ocupou do desespero dos soldados na praia francesa, O Destino de uma Nação trata de como essa derrota devastadora se tornou, primeiro, uma prova de que nunca haveria paz com Hitler — e, depois, diante da perspectiva de destruição completa da força militar britânica, de como foi usada pelo alto gabinete conservador para argumentar que já não restava saída que não o apaziguamento. Sob pressão próxima do insuportável, Churchill quase esmoreceu, e chegou a acatar a ideia de uma intermediação entre seu governo e a Alemanha nazista. Mas então os cidadãos ingleses saíram com seus barcos na travessia do Canal da Mancha, rumo ao resgate dos soldados em Dunquerque, e Churchill pôde rechaçar a facção negociadora com sua retumbância característica.

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Não há dúvida de que em certas ocasiões Wright cede à tentação de edulcorar a narrativa, como na cena em que Churchill pela primeira vez na vida anda de metrô em Londres para saber o que pensam os populares sobre a hipótese de entrar nas trevas da guerra. Mas não se pode culpar o Churchill de O Destino de uma Nação por às vezes parecer idealizado. No mundo em que o americano Donald Trump e o n­­orte-coreano Kim Jong-un discutem pelo Twitter quem ostenta o botão nuclear mais avantajado, aparenta mesmo ser coisa de ficção um chefe de Estado munido de tal lucidez — e para quem a coragem de lutar pelos princípios vale mais que a sobrevivência política e a conveniência pessoal somadas.


UM DÍNAMO DE SORRISO MALANDRO

Gary Oldman
ESPIRITUOSO - Oldman: “Aos 66 anos, saltitando como se tivesse 20” (Tasos Katopodis/Focus Features and Comcast/NBC Universal/Getty Images)

As indicações ao Oscar só serão conhecidas em 23 de janeiro, mas já é dado como líquido e certo que Gary Oldman estará à frente da disputa pela estatueta de melhor ator — e se ganhar será a primeira vez que a Academia premiará seu trabalho. A seguir, ele conta como se preparou para encarnar Winston Churchill.

Conhecemos o primeiro-ministro Winston Churchill não só de imagens da época, como de tantos filmes e séries em que ele foi interpretado por outros atores. Como se destrincha um personagem assim? De fato, um ator que aceita o papel de Churchill não está sendo chamado só a interpretar aquela que talvez seja a maior personalidade britânica de todos os tempos; requer-se também que ele mate um dragão — todos os outros atores que já encarnaram Churchill e deixaram impressões tão fortes. Psicologicamente, começa-se caminhando por um campo minado antes mesmo de “atacar” o personagem. Quase todos nós temos uma imagem de Churchill como aquele velho rabugento, com o charuto e o uísque, e a verdade é que já não sabemos mais dizer se ela vem dos cinejornais ou se é uma contaminação, por assim dizer, criada por tantas interpretações dele. Além disso, há um outro Churchill ainda na nossa imaginação: o homem que colocamos sobre um pedestal.

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Por onde o senhor começou? Pela leitura extensiva sobre ele, primeiro, e depois pelos cinejornais. O que me chamou a atenção é que ali estava um homem de 66 anos saltitando com o ânimo de um jovem de 20. Ele tinha também uma centelha impressionante — olhos tão joviais, tão vivos, e um sorriso malandro de querubim que deixava transparecer um senso de humor quase infalível. Ou eu havia notado isso algum dia e então esquecido, ou nunca havia sequer percebido como ele era espirituoso. Foi por aí que encontrei onde me agarrar no personagem: ele era um dínamo, incessantemente alerta e pronto para o ataque. Ali, sim, estava o líder monumental da Inglaterra.

Há também a parte documental da atuação — aparência, postura, gestos, tiques, modo de falar. Sim, é claro que eu não estava improvisando. Estava firmemente ancorado na figura física de Churchill e no roteiro — e amparado pela maquiagem. Mas creio que a parte relevante do trabalho não é essa. É a maneira como se faz com que as falas soem vivas, e não decoradas de uma página; como se localiza o espírito do personagem e se dá carne, osso e alma a ele. Tive uma vantagem inestimável: um prazo de quase um ano para pensar em Churchill e em como interpretá-lo mais quatro semanas de ensaios com os outros atores. São luxos de que raramente um ator dispõe no cinema, e que me proporcionaram a chance de transformar o personagem numa segunda natureza antes que a primeira câmera tivesse sido ligada.

Qual cena, para o senhor, melhor ilumina Churchill? Aquela em que ele deixa uma reunião do comando de guerra para encontrar os membros menos graduados do gabinete e falar a eles aquilo sobre os ingleses se afogarem no próprio sangue, se necessário. É algo que vem das vísceras dele, por estar se sentindo acuado pela facção que desejava negociar a paz com a Alemanha e ao mesmo tempo saber que Hitler era uma personificação do mal e que qualquer hipótese de convivência com ele seria impensável — e impraticável. Foi um rompimento sofrido com seu gabinete, mas só ele teria coragem de provocá-lo. Churchill lutou na I Guerra Mundial; imagine se uma bala perdida o tivesse atingido e não houvesse um Churchill em 1940. Em que mundo tenebroso teríamos vivido desde então? Se há algo que aprendi com O Destino de uma Nação é quão perto passamos disso. E que diferença fazem a lucidez e a convicção de um só homem. Churchill não escondeu dos ingleses que haveria morte, dor, perda. Ele os liderou em meio ao sofrimento. Não há dúvida, é preciso ter algum ego para almejar uma responsabilidade tão esmagadora. E Churchill sempre a almejou, e se expôs a todas as oportunidades de alcançá-la.


Publicado em VEJA de 10 de janeiro de 2018, edição nº 2564

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