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Contra a barbárie

Arqueólogo Walter Neves decidiu se candidatar a deputado para defender o que julga serem passos civilizatórios no avesso das bancadas que ignoram a ciência

Apresentado por Atualizado em 1 jun 2018, 06h00 - Publicado em 1 jun 2018, 06h00

O arqueólogo Walter Neves é, aos 60 anos, um dos mais destacados cientistas brasileiros. Ele esteve no centro de duas descobertas que receberam espaço nobre em periódicos científicos, o fóssil de Luzia, o mais antigo das Américas, e o Taradinho, a pintura rupestre igualmente tida como a mais ancestral dessa porção do mundo — ambos achados em Minas Gerais e datados com mais de 10 000 anos. Aposentado em novembro pela Universidade de São Paulo (USP), Neves aceitou o convite do nanico Partido Pátria Livre (PPL), de esquerda, para se lançar candidato a deputado federal nas eleições deste ano. Na entrevista a seguir, concedida em seu apartamento no bairro da Vila Madalena, em São Paulo, onde mora com seu companheiro, ele explica seus motivos para entrar na política.

Por que seria crucial ter um cientista no Congresso? A ideia vem de um grupo, que já conta com oitenta respeitados pesquisadores brasileiros, que chamamos de Cientistas Engajados. Ele foi inspirado, de algum modo, nos Concerned Scientists (Cientistas Preocupados) dos Estados Unidos. Nossos colegas americanos têm papel ativo. São ouvidos pelo governo — e ressalve-se que lá o peso é maior, por envolver vários ganhadores do Nobel. Mas, a rigor, os Concerned Scientists nunca se candidataram diretamente, como pretendemos fazer no Brasil. A atuação deles sempre se deu por meio de instituições e candidatos que levantam suas bandeiras.

E por que no Brasil é necessária uma representação direta, com um nome como o do senhor na Câmara? Órgãos como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ou ainda a Academia Brasileira de Ciências, se esforçam para produzir documentos capazes de influenciar os congressistas a apoiar pautas atreladas a avanços científicos. Só que, quando chegam às mãos de senadores e deputados, nada acontece. A verdade é que nosso trabalho é redondamente ignorado. Por isso chegamos à conclusão de que é preciso ter um de nós lá, influindo nas decisões.

“Já falei de evolucionismo para plateias muito distintas. Farei algo parecido com deputados. Serei didático até com Bolsonaro, que representa o extremo oposto daquilo em que acredito”

Quais são as razões desse desprezo pelos cientistas? Nenhum dos mais de 500 deputados federais tem como pauta as questões científicas e tecnológicas. A minha ideia, abraçada pelo PPL e por meus colegas, seria construir, a longo prazo, uma bancada do conhecimento, composta de cientistas e intelectuais que defendam causas do processo civilizatório. Convenhamos, quantos intelectuais de fato há hoje no Congresso? A meu ver, só um, o senador Cristovam Buarque (PPS-DF). Qual é o efeito prático desse cenário? Falta uma oposição real aos congressistas evangélicos, aos ruralistas, à bancada da bala.

Qual o risco real do crescimento dessas bancadas? Um dos efeitos dessa situação é a fragilidade da laicidade do Estado. Estou preocupado com o fato de, no Brasil, avançar com muita força a tese criacionista, em oposição ao que foi comprovado por Darwin e tido como certo pela ciência. E, no entanto, não vejo movimento para mitigar o dano que isso causa e causará. Sei que já perdemos a batalha de instituir um Brasil realmente laico. Porém, poderíamos nos empenhar em diminuir as consequências negativas. Por exemplo, impedindo a educação religiosa confessional. Compreendo a importância de ensinar a história das religiões, apoiando a diversidade. Evidentemente, as religiões sempre ajudaram a espécie humana a criar significados. Optar pelo evolucionismo ou pelo criacionismo é coisa de foro íntimo. Eu sou deísta, mas não religioso. Só que uma escolha nessa seara tem de ser realizada de maneira informada. No Brasil, a população está bem informada sobre o criacionismo. Mas o Estado falha ao não oferecer aos cidadãos o que a ciência tem a apresentar. A ideia não é puxar todos para o evolucionismo. Mas gostaria que os brasileiros fossem bem informados, já na escola, sobre o evolucionismo, para poderem se decidir.

E o que pode ser feito, na prática?  Proponho aumentar o investimento em ciência e tecnologia em 0,5% do PIB ao ano. A meta seria alcançar 3% ou 3,5% do PIB em 2023, sem contingenciamentos. Hoje o investimento é de mero 1%. É uma medida que deve estar prevista na Constituição, assim como os gastos com educação. Por isso, é preciso ter um cientista lá no Congresso, trabalhando para levar a pauta a políticos, que, em sua maioria, aposto, não leram um livro sequer na vida, a não ser a Bíblia.
É possível convencer o Congresso com um projeto de longo prazo, um tanto intangível, e que certamente não atrai votos? Serei didático, provando a eles e à população a importância dessa postura. Não se trata de gasto, mas de investimento. Já falei de evolucionismo para plateias muito distintas, de fundamentalistas na Jordânia ao cantor inglês Sting. Os fundamentalistas jordanianos, que trabalhavam comigo numa escavação, mantiveram suas crenças segundo as quais o homem teria surgido há poucos milhares de anos, a partir de Adão — mesmo depois de apresentadas as provas, como instrumentos criados há muitos milênios, de que a narrativa seria outra. A vitória foi estabelecer o diálogo e incentivar a compreensão, em prol do bem comum. É hora de fazer algo parecido com deputados e senadores. Serei didático até com Jair Bolsonaro (PSL-­RJ), que representa o extremo oposto daquilo em que acredito. Em especial se ele for eleito presidente.

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Que argumentos usar com um deputado da bancada evangélica cujas ideias são muito claras? Há bons argumentos. Para começar, vejamos como foi com os países pós-II Guerra Mundial. Apenas aqueles que se dedicaram às ciências se deram bem. É o caso do Japão, da Coreia do Sul e da China. Eles destinaram em torno de 4% de seu PIB às pesquisas. Enquanto isso, no Brasil, o porcentual foi daquele cerca de 1%. Como resultado, nosso país paga 20 bilhões de dólares de royalties ao ano, enquanto as nações evoluídas lucram com os royalties que exportam. Também foi somente com dedicação à ciência que povos como os chineses e os sul-coreanos conseguiram, nas últimas décadas, deixar de fabricar apenas produtos “xing ling” para lançar suas inovações. Se nada fizermos, ao Brasil restará o papel de vender o que nomeio de commodities científicas, como dados coletados em pesquisas, para depois importar, pagando por isso, as teorias resultantes das análises dessas mesmas informações. Concordo, sim, com a ausência de atrativo de votos para essa causa dos cientistas engajados. Os frutos só virão mesmo dentro de três gerações. Mas, se nada fizermos, o Brasil permanecerá no Jurássico.

Por que a população não parece apoiar essa ideia, realizando manifestações em defesa da ciência?  Parte da culpa é de meus colegas cientistas. Sempre fui crítico da mediocridade das pesquisas brasileiras. Com raras exceções, no Brasil formam-se técnicos, e não intelectuais. O que fazemos é a ciência exploratória. Produzimos dados, mas não soluções para problemas concretos, nem teorias. Além disso, os cientistas brasileiros querem envolvimento social, mas não descem do salto alto para divulgar suas teses na sociedade. Lembremos: quem paga pelas nossas pesquisas são os cidadãos, por meio de impostos. Porém, repito, ninguém quer descer da torre de marfim. Por críticas desse tipo, fui tido como o enfant terrible da ciência brasileira. Se tudo der certo, serei também o enfant terrible do Congresso.

“Não serei o cientista do Congresso, nem o gay do Congresso, como é o Jean Wyllys (PSOL-RJ). Serei um cientista, e um gay — no Congresso”

Que ideias concretas, que podem desagradar tanto, farão o senhor passar a ser conhecido como o enfant terrible? Um dos projetos que tenho para disseminar conhecimento é uma iniciativa que apelido de “Pregando Evolução”, para locais populares, ou pobres, ou redutos de evangélicos. Se quero instigar o interesse científico, uma medida será mostrar às pessoas a reconstituição dos esqueletos de nossos ancestrais primitivos, para assim disseminar o conhecimento da evolução humana. Se conseguirmos ampliar o conhecimento, estaremos nos afastando da barbárie.

O que seria barbárie para o senhor?  Se o Brasil continuar andando pela toada das bancadas da Bíblia, do Boi e da Bala, do Congresso, rumaremos em direção à barbárie. Uma vez perguntaram a Tarso Genro (petista, ex-­ministro de Lula): “Com o fim do apoio às ideias de Karl Marx, qual seria o papel da esquerda?”. A resposta dele: “De não permitir que a barbárie se estabeleça”. Barbárie é quando você deixa de reconhecer grandes conquistas da civilização para voltar ao patamar pré-civilizacional. Naquele tempo, o da barbárie, desprezavam-se minorias, questões como a desigualdade econômica e social e a defesa dos direitos humanos. Podemos estar nessa rota.

Em que situações? Note como tratamos no Brasil os líderes dos movimentos civilizatórios. Foi o caso do assassinato da ativista e vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), uma história que só veio à tona por ter ocorrido no Rio de Janeiro, onde teve grande visibilidade. Se fosse no campo, ninguém daria bola. Foram mortas, em 2017, cerca de setenta pessoas que lutavam por direitos humanos em áreas rurais. Morei na Amazônia por seis anos. No Brasil profundo, o que impera é a ausência do Estado. Qualquer problema é resolvido a bala. Ainda vivemos na barbárie do coronelato.

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É possível dar fim a isso? Sim, e insisto: acabando com o ensino confessional da religião e consolidando leis que protejam as minorias e os direitos individuais. Sou, por exemplo, a favor do aborto, da legalização das drogas, em especial da maconha, e da punição do racismo e da homofobia.

Considera-se de esquerda? Sou uma quimera. Sou de esquerda pela luta contra a desigualdade. Mas também sou neoliberal, pois defendo o que Geraldo Alckmin (pré-candidato à Presidência pelo PSDB) assim definiu: “Tudo que a iniciativa privada consegue fazer melhor que o Estado devemos deixar a iniciativa privada fazer”.

Seu partido deve lançar João Vicente Goulart, filho de Jango, à Presidência. Em quem o senhor votará? Estou inclinado a Ciro Gomes (PDT).

O jogo político costuma ser sujo, envolvendo fake news e ofensas pessoais. Está preparado? Nos anos 80, andava abraçado com meu companheiro em Belém do Pará, onde vivíamos. Quando percebem que você não tem medo de demonstrar publicamente quem é, há aceitação. Ou seja, estou preparado. Inclusive em relação às reações nas redes sociais, às quais respondo com palavrões quando é preciso. Não serei o cientista do Congresso, nem o gay do Congresso, como é o Jean Wyllys (PSOL-RJ). Serei um cientista, e um gay — no Congresso. Ressalto, pois, que, ainda que fosse heterossexual e leigo, continuaria, pela minha índole, a defender as mesmas ideias.

Publicado em VEJA de 6 de junho de 2018, edição nº 2585

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