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Com a palavra, os monstros

Em 'Mindhunter', a nova série de David Fincher, um agente dos anos 70 afronta o FBI ao estudar a mente de assassinos

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 20h35 - Publicado em 13 out 2017, 06h00

Enquanto seu parceiro de trabalho no FBI curte o dia de folga jogando golfe, o agente Holden Ford (Jonathan Groff) passa a tarde num presídio da Califórnia a bater altos papos com uma figura pouco agradável. Com 2 metros de altura e 140 quilos, seu interlocutor existiu de fato: Ed Kemper (Cameron Britton, um gigante também em cena) começou a carreira de assassino serial aos 14 anos, ao trucidar os avós. Internado em um manicômio, convenceu os psiquiatras de que estava recuperado — e recebeu outro atestado de sanidade bem no dia em que trazia no carro a cabeça de uma das seis adolescentes que havia matado, esquartejado e estuprado (sim, nessa ordem). Por fim, Kemp assassinou a própria mãe, arrancou-lhe a cabeça — que usou para satisfazer sua perversão necrofílica — e triturou a faringe dela num processador de legumes. Corria o verão de 1977 e Ford — protagonista de Mindhunter, série criminal já disponível na Netflix — postava-se sem anteparos diante do grandalhão que se entregou à polícia por se cansar de enganar os investigadores. Livre de algemas, Kemp diz que poderia facilmente quebrar o pescoço do outro. Mesmo assim, Ford se deixa manipular e abre o coração sobre sua vida amorosa. Vai se exibindo, enfim, como um cordeirinho que atiça um predador. A tensão intoxicante atinge o ápice quando o assassino aperta a garganta de Ford para explicar que tipo de excitação extrairia de uma cabeça cortada. E então…

Mindhunter, a série, tem a credencial curiosa de ser produzida por Charlize Theron — mas o que lhe confere respeitabilidade é, sobretudo, a presença nos créditos de David Fincher, diretor de thrillers criminais como Seven e Zodíaco e grife por trás de House of Cards. Para além das feras do entretenimento, Mindhunter ostenta outro documento respeitável: sua trama se baseia no livro homônimo (que está saindo no Brasil pela Intrínseca) escrito por uma lenda da polícia americana. Nos anos 70, o agente John Douglas — inspiração do personagem Holden Ford — desbravou um campo riquíssimo da ciência forense, o estudo psicológico dos assassinos. O pioneirismo fez dele uma figura pop. O investigador vivido por Scott Glenn em O Silêncio dos Inocentes não só se inspirou em Douglas: o agente de verdade quase assumiu seu papel no filme de Jonathan Demme, mas sua participação foi vetada pelo FBI.

Quando desbravou o estudo dos perfis de criminosos, porém, Douglas enfrentou oposição e desconfiança dentro da instituição. Administrado com o estilo férreo de J. Edgar Hoover desde o seu embrião nos anos 20 até o início dos 70, o FBI via qualquer uso da psiquiatria para fins investigativos como baboseira. Como se dizia nos corredores do cenário principal da série e do livro, o centro de estudos e aprendizado do FBI em Quantico, na Virgínia, aquilo era coisa de “rapazes desencaminhados” (leia-se: acadêmicos hippies e gays). A ideia de ouvir assassinos monstruosos assomava, então, como um ultraje à dignidade policial. Só a muito custo e reprimendas mil Douglas conseguiu realizar seu desejo de entrevistar os maiores assassinos seriais nas cadeias americanas e impor o valor de sua iniciativa.

Contra a corrente – Aula sobre técnicas psicológicas para policiais: coisa de “rapazes desencaminhados” (//Divulgação)

Quando Ed Kemper, o notório “Assassino das Colegiais”, pergunta qual a razão de alguém ir àquele inferno para colher seu depoimento, Ford tem um rasgo de sinceridade: “Eu não sei”. Mindhunter funciona, percebe-se em cenas assim, como um testemunho franco (e narrado, evidentemente, com a ironia da distância histórica) de um homem que nadava à deriva contra uma corrente irresistível. Ao dar aulas a outros agentes sobre negociação de reféns, função vista como inferior a que ele foi relegado após uma pisada na bola em serviço, Ford tem de suportar o desdém de alunos calejados. Em seu périplo por delegacias do interior, suas pensatas sobre filosofia grega e Shakes­peare rendem reações indignadas. Como usar de referências tão nobres, queixa-se um velho policial, quando a comunidade se mobiliza na caçada a um demônio capaz de matar uma mãe e seu filhinho e em­palá-los com um cabo de vassoura?

Talvez a desconfiança em relação ao emprego das ciências humanas venha da sua origem fantasiosa. Como se constata em Mindhunter, está-se diante de um caso curioso em que a polícia imitou a ficção (confira o quadro abaixo). “Os primeiros detetives que usaram a psicologia vieram da literatura, não do mundo real”, disse a VEJA Mark Olshaker, roteirista e parceiro nos nove livros de memórias escritos pelo agente John Douglas. Foi da mente do escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849) que nasceu o primeiro ás na matéria, o detetive Auguste Dupin — que, por sua vez, seria a inspiração do inglês Arthur Conan Doyle na criação, no fim do século XIX, do mais popular dos detetives da ficção, Sherlock Holmes.

Qualificar como ciência a utilização da psicologia para investigar assassinos é controverso: nem entendidos como Douglas e seu parceiro chegam a tanto. “Há ciência, mas também um tanto de arte nisso”, diz Olshaker. A parcela da arte vem do uso da imaginação para tecer narrativas capazes de explicar o comportamento de um matador — ou da compreensão de seu “estilo” criminal como uma profissão de fé estética. “Para entender a arte, ouça o artista”, era o lema de Douglas. Além de Ed Kemper, o agente real do FBI entrevistou Charles Manson, líder da seita que nos anos 60 assassinou a atriz Sharon Tate, então grávida do cineasta Roman Polanski. E, ainda, criminosos como Ted Bundy e John Wayne Gacy. A série desenrola-se como uma crônica dos encontros de Holden Ford com as mentes macabras. Se o personagem, assim como sua contraparte real, vai trombar com Manson e outros astros do crime, é algo que ficará aqui em suspense.

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DA FICÇÃO À REALIDADE

A análise psicológica detetivesca apareceu na literatura bem antes da consagração da psicologia criminal como ferramenta pela polícia — inclusive pelo FBI

Picture Shows: Sherlock Holmes (BENEDICT CUMBERBATCH) Credito: Divulgação
No fim do século XIX, o inglês Arthur Conan Doyle inventa o maior ícone da ficção detetivesca: Sherlock Holmes. A atualidade de suas deduções sobre a psique humana se reafirma na versão high-tech do personagem a que Benedict Cumberbatch dá vida numa série da BBC (//Divulgação)
97308464 - UNITED STATES - JANUARY 22: George Metesky, 53 years old, who confessed to being the "Mad Bomber", looks through the bars of his cell at the Waterbury, Conn. Police Station. Metesky roamed the city planting bombs for 16 years before his arrest, and later was sent to a mental institution. Credito: Judd Mehlman/NY Daily News Archive/Getty Images
Na caçada ao criminoso chamado de Bombardeador Maluco, nos anos 50, a polícia americana pede ajuda a um psiquiatra, James A. Brussel. Ao estudar as cartas do doido que explodia bombas em Nova York, ele chegou ao perfil do culpado: o solteirão frustrado George Metesky (Judd Mehlman/NY Daily News Archive/Getty Images)

Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2017, edição nº 2552

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