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Cigana feminista

Uma montagem de 'Carmen', em Florença, altera o destino da heroína da ópera de Bizet: em vez de ser esfaqueada pelo ex-amante, é ela quem o mata

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 31 jan 2018, 15h45 - Publicado em 12 jan 2018, 06h00

Numa praça de Sevilha, don José faz uma última tentativa para reconquistar o amor de Carmen. Sem sucesso: enrabichada com o toureiro Escamillo, ela repele o ex-amante e joga fora o anel com o qual ele a presenteara. Enfurecido, José mata a cigana a facadas. “Podem me prender. Fui eu quem a matou”, confessa, para depois entoar o lamento: “Carmen, ah, minha amada Carmen!”. Assim terminava a ópera Carmen, do francês Georges Bizet, desde sua estreia, em 1875. A cigana inconstante, no entanto, ganha um destino diferente em recente montagem do Teatro del Maggio, em Florença. Em vez de morrer pelas mãos de don José, é ela quem o abate a tiros, como uma heroína de policial americano. Para sustentar a mudança no libreto de Henri Meilhac e Ludovic Halévy (baseado em um conto de Prosper Mérimée), o diretor do teatro florentino, Cristiano Chiarot, cita estatísticas sobre violência contra a mulher na Itália — uma em cada três italianas já teria sofrido abuso físico ou sexual; 149 foram assassinadas em 2016, e em metade dos casos o criminoso foi o parceiro ou o ex-parceiro. Uma representação fiel da obra-­prima de Bizet seria uma forma de “legitimar” essa violência — como se a encenação ficcional de um crime fosse em si mesmo um ato criminoso.

A encenação de ópera — como também de clássicos do teatro — sempre comportou modernizações, algumas bem-sucedidas, outras duvidosas. É mais raro que se altere o texto, mas a montagem pode conferir ênfases e reinterpretações radicais — e às vezes abertamente esdrúxulas. Há até um termo alemão para definir essa prevalência do encenador sobre a peça encenada: Regietheater (teatro do diretor). Em 1976, o cineasta e realizador francês Patrice Chéreau adaptou O Anel do Nibelungo, tetralogia do alemão Richard Wagner, convertendo os mitos nórdicos em um libelo anticapitalista. Em uma montagem carioca de Tristão e Isolda, em 2003, Gerald Thomas transformou o trágico casal de Wagner em cocainômanos, e até Sigmund Freud aparecia em cena. Em 2007, Christoph Schlingensief introduziu uma escola de samba na produção de O Navio Fantasma apresentada no festival de ópera de Manaus. Mozart não teve melhor sorte no Brasil: a recente montagem de A Flauta Mágica no Teatro Municipal de São Paulo fez atenuações humorísticas no racismo e na misoginia de Sarastro, um dos personagens principais, e forçou uma implausível reconciliação entre Pamina, filha de Sarastro, e sua mãe, a temida Rainha da Noite. “Segui o texto original, mas ofereci duas leituras. Não pressuponho ter a resposta”, justifica-se André Heller, responsável pela direção do espetáculo.

A alteração do texto de Carmen, um cavalo de batalha dos templos da ópera, vai um tanto além da liberdade que se admite para a direção. “Não é papel do encenador moralizar uma ópera de acordo com os costumes da nossa época, mas sim apresentá-la com todas as suas idiossincrasias a um novo público”, diz o diretor Caetano Vilela. Uma obra de arte, embora tenha o poder de ultrapassar seu tempo, ainda é um retrato do pensamento de uma sociedade e de uma era, e como tal deve ser apreciada. Em Florença, o público deu seu parecer: aplaudiu os intérpretes, mas vaiou os encenadores Cristiano Chiarot e Leo Muscato.

Publicado em VEJA de 17 de janeiro de 2018, edição nº 2565

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