Carta ao Leitor: Uma ode à democracia
A votação nos EUA terá tom fundamentalmente plebiscitário — valerão mais o “trumpismo” e o “antitrumpismo” do que o embate de ideias
Na próxima terça-feira, 3 de novembro, o mundo prenderá a respiração para acompanhar os resultados das eleições americanas. A escolha, entre o republicano Donald Trump, o atual presidente dos Estados Unidos, e o democrata Joe Biden, vai muito além da definição de quem ocupará o Salão Oval da Casa Branca até 2024. Trata-se de uma disputa com repercussões globais, desde algumas importantes resoluções econômicas, em que se destaca a atual briga com a China em torno do 5G, até o questionamento de um modelo de fazer política, ao redor da postura histriônica de um líder que nunca se furtou a espalhar inverdades e provocações pelas redes sociais, muitas vezes alimentadas por xenofobia e preconceitos. Saberemos, enfim, que caminho pretende tomar a sociedade que, invariavelmente, serve de espelho para o restante do planeta. Em condições normais, antes da pandemia, era esperado que Trump se reelegesse, embalado pelo crescimento do PIB na casa dos 3%. Mas a disseminação do novo coronavírus, atalho para uma crise econômica como não se via desde 1929, mudou completamente o jogo. Trump perdeu o favoritismo e Biden, discreta e calmamente, cresceu, tornando-se o favorito. E o que se presenciará, nos próximos dias, será uma votação de tom fundamentalmente plebiscitário — valerão mais o “trumpismo” e o “antitrumpismo” do que o embate de ideias.
A partir da página 52 desta edição, VEJA faz um mergulho nas consequências do resultado desta aguardada eleição para o Brasil e o mundo. Uma derrota do republicano terá cores um tanto novidadeiras — o último presidente de seu partido a ficar apenas quatro anos no cargo foi George Bush pai, entre 1989 e 1993, que perdeu dramaticamente a chance de navegar nos louros da queda do Muro de Berlim e do fim da União Soviética. Entre os democratas, foi Jimmy Carter (1977-1981) quem ficou apenas um mandato na Presidência. Nos Estados Unidos, a reeleição é quase orgânica — Ronald Reagan, Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama permaneceram no poder durante oito anos. Desta vez, a julgar pelas pesquisas, essa continuidade corre risco.
Tal valsa, do bastão a andar de um lado para o outro do espectro ideológico, é que faz o pleito nos Estados Unidos ser admirável e globalmente inescapável — em uma permanente celebração da democracia, “a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”, como definiu brilhantemente o britânico Winston Churchill. Essa saudável evolução, sem sobressaltos, ainda que embebida de momentos de profunda crise, de ebulição social, foi anunciada lá atrás pelos chamados “pais fundadores” dos Estados Unidos, os signatários da Declaração de Independência, em 1776. Disse Thomas Jefferson, que viria a ser o terceiro presidente, numa divisa de relevância eterna e que ganha força exponencial às vésperas de todo voto: “Quando as pessoas temem o governo, isso é tirania; quando o governo teme as pessoas, isso é liberdade”.
Publicado em VEJA de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711