Carta ao Leitor: Parados no tempo
O aborto precisa ser discutido, a lei tem de ser seguida e a religião não pode servir de pretexto para que o direito de escolha seja proibido
Em setembro de 1997, VEJA levou à capa uma incômoda, necessária e urgente reportagem com a seguinte chamada: “Eu fiz aborto”. Em oito páginas, uma dezena de mulheres, famosas ou desconhecidas, relatava a dor e a angústia de terem abortado, por diferentes razões e em situações econômicas diversas. Naquele momento, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovara a regulamentação do aborto legal, prevista no Código Penal desde 1940, para os casos de estupro e de risco de vida para a gestante (em 2012, o STF diria sim também à descriminalização em ocorrências de fetos nascidos sem cérebro). Houve, então, na franja do século XXI, muito ruído, espanto e protestos contra a publicação de VEJA, bem antes, evidentemente, da cacofonia das redes sociais. O assunto era tabu, e nem mesmo tratá-lo com inteligência e cuidado era autorizado.
Mais de duas décadas depois, um trágico episódio ocorrido na semana passada revela termos avançado pouquíssimo no tema — ou, pior, é possível que tenhamos retrocedido. Diversos grupos conservadores se postaram à frente de um hospital do Recife, além de gritarem pela internet, para tentar impedir que uma menina de 10 anos que engravidara após ter sido abusada por um tio fizesse o aborto. Para aquelas pessoas, às favas a determinação legal, seria mais relevante tentar manter princípios de cunho religioso do que preservar a vida daquela criança. Lamentavam a interrupção da gravidez, mas não condenavam o hediondo crime cometido contra a menor. Um horror. A virulência da postura fundamentalista, no avesso da sensatez e da ordem jurídica, é um sinal nefasto do nosso tempo, em que pessoas se dizem contra a vacinação, defendem o terraplanismo e outras insanidades que vão de encontro à ciência e aos fatos.
Por tocar em questões éticas, morais e religiosas, o aborto, ainda hoje, é assunto que alimenta paixões (tema da reportagem que começa na página 34). Convém, contudo, tratá-lo com racionalidade. Uma das maneiras mais corretas de analisar a questão, sem desconsiderar as diferentes argumentações, é olhar para a estatística atrelada aos danos para a saúde pública. Nos países desenvolvidos, nos quais o aborto é legalizado, morre menos de uma mulher para cada 100 000 interrupções de gravidez. Naqueles em desenvolvimento, onde a prática é normalmente considerada crime, morrem quarenta mulheres para cada 100 000 casos de descontinuação da gestação. A tipificação penal produz, portanto, discriminação social — prejudica, de forma desproporcional, as mulheres pobres, que não têm acesso a médicos e clínicas particulares nem podem se valer do sistema público para realizar o delicado e dilacerante procedimento. Em resumo: a legalização do aborto, infelizmente, é um mal necessário.
Em 2016, num voto histórico, ao defender a descriminalização até o terceiro mês de gravidez, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, deu um exemplo de extraordinário bom senso, que deve sempre ser repetido, por não haver outro caminho. “Deixe-se bem claro: a reprovação moral do aborto por grupos religiosos ou por quem quer que seja é perfeitamente legítima. Todos têm o direito de se expressar e de defender dogmas, valores e convicções. O que refoge à razão pública é a possibilidade de um dos lados, em um tema eticamente controvertido, criminalizar a posição do outro.” O aborto precisa ser discutido, a lei tem de ser seguida — sem intolerância nem radicalismos — e a religião de alguns não pode servir de pretexto para que o direito de escolha dos outros seja proibido.
Publicado em VEJA de 26 de agosto de 2020, edição nº 2701