Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Carta ao Leitor: Não somos vira-latas

Cabe fazer uma pausa nas críticas para celebrar algo que funciona de forma espetacular no Brasil: a votação eletrônica nas eleições

Por Da Redação 6 nov 2020, 06h00

Um pouco antes do embarque da seleção brasileira para a Copa de 1958, na Suécia, o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues cunhou a expressão “complexo de vira-lata”, uma sarcástica análise em torno do sentimento de inferioridade do brasileiro em relação às outras nacionalidades. A comparação foi utilizada originalmente para descrever a derrota do Brasil para o Uruguai, em casa, no Maracanazo de 1950 — resultado que condenaria ao ostracismo, absurda e injustamente, o goleiro Barbosa. Mas o próprio Rodrigues dizia que o sentimento de fragilidade ultrapassava as fronteiras dos estádios de futebol e se estabelecia na psique de seus compatriotas: “O brasileiro é um narciso às avessas. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima”. De lá para cá, não tem sido realmente fácil achar razões para arroubos ufanistas.

Por uma conjunção de fatores, que às vezes parecem extraídos das tragédias gregas ou de romances shakespearianos, o país deixa de aproveitar as oportunidades que aparecem e se vê enredado numa sequência interminável de pequenos avanços seguidos de imensos retrocessos, adiando ad infinitum o tão desejado desenvolvimento. Não somos, obviamente, apenas vítimas do acaso, que cruelmente nos guia a um destino infeliz. A escolha de nossos representantes políticos (com exceções, é claro) não tem sido bem-sucedida. A flexibilidade nacional em relação às regras nos leva a uma certa complacência com a corrupção, com o preconceito, com a mentira, com o autoritarismo, prejudicando o estado democrático de direito, a democracia e a própria nação.

Isto posto, cabe fazer uma pausa nas críticas para celebrar algo que funciona de forma espetacular no Brasil: a votação eletrônica nas eleições. No domingo, 15 de novembro, cidadãos de 5 570 municípios irão às urnas para a escolha de prefeitos e vereadores. Mesmo nas cidades mais afastadas dos grandes centros, os vencedores serão conhecidos em algumas horas, com resultados inquestionáveis. É um dos mais emblemáticos casos de sucesso de uma tecnologia produzida no Brasil. O atual modelo de urna eletrônica foi desenvolvido por grupos de engenheiros do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, e do Comando-Geral de Tecnologia Aeroespacial, ligado à Aeronáutica. Desde 1996, ele foi sendo implantado em pleitos e, embora alguns irresponsáveis digam o oposto, nunca houve comprovação de fraude em mais de vinte anos de funcionamento. Numa ação preventiva permanente, o TSE, hoje presidido pelo ministro Luis Roberto Barroso, realiza testes periódicos contra invasões de hackers.

Atualmente, a urna eletrônica é utilizada em 35 países — entre eles, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Suíça. Alguns estados americanos também adotaram a tecnologia. Mas, como se viu no sufrágio de 3 de novembro, o grande irmão do Norte ainda prefere um sistema de votação antiquado, permitindo, inclusive, o envio de cédulas pelo Correio, o que atrasa a apuração e, em disputas apertadas, como a que ocorreu neste ano, leva a incertezas e confusão. Não é a primeira vez, lembre-se, que tal impasse acontece. Em 2000, na disputa entre Al Gore e George W. Bush, a indefinição persistiu por semanas, em razão de uma estreitíssima margem na Flórida. O processo chegou à Suprema Corte americana e deixou até hoje uma impressão de fraude. Vinte anos depois, os Estados Unidos, o Brasil e o mundo estão ainda mais polarizados — e toda incerteza ao redor do direito de escolha alimenta impulsos de contestação. É tranquilizador saber que, nessa seara, temos algo a ser invejado globalmente. Adeus, ao menos nas urnas, ao complexo de vira-lata.

Publicado em VEJA de 11 de novembro de 2020, edição nº 2712

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.