Carta ao Leitor: Males desnecessários
De Brasília, a mensagem que alcança os lares beira o inaceitável ao sugerir que a guerra dentro do governo seja mais relevante que o combate ao coronavírus
O Brasil oferece aos olhos do mundo uma particularidade constrangedora, para dizer o mínimo, em tempo de permanente luta contra a pandemia de Covid-19: divide-se entre o dramático crescimento do número de pessoas contaminadas e mortas pelo novo coronavírus e uma crise política contagiosa, que ganhou força com a saída do ministro da Justiça, Sergio Moro. De Brasília, a mensagem que alcança os lares das pessoas confinadas, uma parte delas sem trabalho nem perspectiva, beira o inaceitável ao sugerir que a guerra dentro do governo, a ponto de opor os “lavajatistas” a Jair Bolsonaro, seja mais relevante que o combate ao Sars-CoV-2. É ainda mais assustador saber que uma das pontas dessa polarização — a do troca-troca ministerial — poderia ser evitada, dando prioridade ao que é fundamental de fato. E, caso esse caminho tivesse sido tomado, ancorado na sensatez, haveria mais zelo com o que realmente importa agora: a saúde da população, o único atalho para a retomada econômica. Uma imagem parece resumir o ponto a que chegamos: no discurso em resposta a Moro, diante das câmeras de televisão, Bolsonaro pôs ao seu lado toda a equipe ministerial, incluindo o novo titular da pasta da Saúde, Nelson Teich. Tal prestigiado encontro nunca foi feito, por exemplo, com o gabinete completo, para falar das iniciativas do governo contra a pandemia que assola o país.
Soa mais extemporânea ainda a movimentação errática no Planalto ao não perceber, nas estatísticas e na administração da crise, que a tragédia da Covid-19 começa a invadir as regiões mais pobres do Brasil, onde a vulnerabilidade à disseminação da doença é maior. E poucos lugares são mais afeitos à percepção da tragédia que a favela da Rocinha, um símbolo nacional da concentração de pessoas menos favorecidas. A editora Sofia Cerqueira, o repórter Cássio Bruno e o fotógrafo Ricardo Borges, de VEJA, fizeram uma profunda incursão aos becos e vielas daquele aglomerado humano na Zona Sul do Rio de Janeiro. Viram moradores circulando como se nada houvesse, trabalhadores em busca de sustento. “Conversamos inclusive com gente com resultado positivo para Covid-19 que não deixou de sair às ruas”, conta Sofia. É com esse Brasil que as autoridades de Brasília deveriam se preocupar neste momento. Evidentemente, não é o que está acontecendo, com a saída de alguns importantes ministros do governo durante a pandemia e a abertura dos processos que podem atingir duramente o presidente e sua família. Por essa razão, trazemos também nesta edição uma entrevista exclusiva com o ex-ministro Sergio Moro. Ele recebeu em sua residência de Brasília o redator-chefe Policarpo Junior e a repórter Laryssa Borges. Num tom acima do habitual, o ex-juiz se defendeu dos ataques e críticas que vem sofrendo desde seu pedido de demissão e disse ter provas das acusações feitas ao presidente Bolsonaro, mas que as mostrará apenas nos autos do processo que corre no STF. A realidade da Rocinha diante do coronavírus e a reportagem com o ex-ministro Moro são duas histórias reveladoras do Brasil de hoje. Mas, de certa forma, os dois problemas poderiam ter sido evitados, ao menos em intensidade, caso o equilíbrio, a convergência e a razão fossem as principais âncoras da atual administração.
Publicado em VEJA de 6 de maio de 2020, edição nº 2685