Carta ao Leitor: Fantasma do passado
A boa notícia: embora o barulho de alguns dos grupos que pedem uma intervenção militar seja grande, o eco na sociedade continua baixo
Até recentemente, se algum jornalista de VEJA sugerisse na reunião de pauta uma reportagem sobre o tema “ditadura no Brasil”, a probabilidade de ter sua ideia rejeitada seria enorme. Por que tratar disso? Haveria algum crime cometido pelo regime militar que governou o país de 1964 a 1985 que permanecesse desconhecido por completo? Algum episódio relevante e inédito? Qual o sentido de retomar, numa publicação semanal de atualidades, um assunto que parecia se limitar ao trabalho dos historiadores? No entanto, eis que em pleno ano de 2019, e por motivos diversos, o espectro de uma inclinação ditatorial voltou a assombrar aqueles que defendem a democracia. Não só por aqui. Em várias partes do planeta — não apenas nos repetidos exemplos de Venezuela, Turquia e Bolívia —, retrocessos espantosos vêm colocando em xeque as liberdades individuais. E no Brasil, infelizmente, vive-se um momento de confronto às instituições, como se os limites estivessem sendo testados; como se houvesse uma agenda que, sob qualquer pretexto, pudesse ser implementada imediatamente para garantir “a ordem e o progresso” — a desculpa mais empregada por governos de exceção, totalitários, para justificar o desprezo pelo estado democrático de direito.
Na semana passada, neste mesmo espaço, VEJA discorreu sobre menções feitas por figuras governistas expressivas a uma suposta necessidade de retorno do AI-5, a medida assinada durante a ditadura militar que fechou o Congresso e resultou na morte de pessoas que eram encaradas de algum modo pelo regime como inimigas do Brasil — caso, por exemplo, do jornalista Vladimir Herzog, torturado e assassinado nas dependências do DOI-Codi de São Paulo. Nas hostes de apoio ao presidente Jair Bolsonaro, inclusive nas que têm cargo administrativo, referências explícitas a um possível fechamento do Supremo Tribunal Federal são frequentes, invocando as Forças Armadas para cometer tal atrocidade. Em paralelo, o presidente também não ajuda a afastar o clima de preocupação quando faz seguidos ataques à imprensa, demonstrando e incentivando descaso por uma instituição que, claramente, é um dos pilares da democracia.
Diante desse cenário, em que muitos manifestaram uma nostalgia de um passado que não viveram, o que deveria ser um fantasma apagado volta a estampar as páginas de VEJA. Nesta edição, a revista traz uma pesquisa em que os brasileiros dão sua opinião sobre o tema. A boa notícia é que, embora o barulho de alguns dos grupos que pedem uma intervenção militar seja grande, especialmente nas redes sociais, o eco na sociedade continua baixo. De acordo com os dados do levantamento, realizado pelo Instituto FSB, apenas 10% dos brasileiros acham a ditadura a melhor forma de governo. Por outro lado, o temor de um golpe que leve a um regime autoritário não é nada desprezível: cerca de 40% acreditam que exista essa possibilidade hoje no país. Ao jogar luz sobre o assunto, VEJA espera que as autoridades competentes interpretem os dados da pesquisa como uma grande repulsa da população a um retrocesso desse nível. E, mais uma vez, reafirma o seu compromisso com o regime democrático, relembrando as palavras bem-humoradas do célebre primeiro-ministro inglês Winston Churchill (1874-1965): “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras”.
Publicado em VEJA de 11 de dezembro de 2019, edição nº 2664