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Carta ao Leitor: A liberdade de protestar

O ideal é que as autoridades acompanhem os gracejos da festa como devem ser acompanhados — com riso ou com indiferença

Por Da Redação Atualizado em 21 fev 2020, 09h52 - Publicado em 21 fev 2020, 06h00

Para o antropólogo Roberto DaMatta, um dos mais argutos observadores do cotidiano brasileiro, intelectual que sempre circulou entre as casas e as ruas, o Carnaval é o mais bem-acabado retrato do país. Segundo DaMatta, a folia “inverte, traz o fundo do poço para cima, como virar uma bolsa de cabeça para baixo ou uma roupa do avesso”. E mais: “Numa sociedade que teve reis, imperadores, uma aristocracia pesadíssima, com a escravidão negra, uma sociedade patronal e tradicional”, é natural que brotem “momentos orgiásticos” — e, não por acaso, em boa parte dos sambas-enredo de tantos carnavais, brincar com o passado monárquico sempre foi um tema de especial apreço. Dito de outro modo: os dias de samba, suor e cerveja servem de espaço para gritar contra o que não vai bem, contra o político municipal, estadual e federal, contra tudo aquilo que, nos demais dias do ano, a população engole na marra, independentemente da coloração ideológica. O Carnaval é, enfim, a temporada natural de protesto e resistência — pouco importa o nome que se dê à vontade irrefreável de dizer não, de bulir, com graça e sarcasmo, com a seriedade instalada por decreto.

A história brasileira ajuda a entender esse comportamento. Em 1950, ano em que Getúlio Vargas voltaria ao Catete, eleito pelo voto popular, uma marchinha fez muito sucesso, na voz de Francisco Alves, ao pedir: “Bota o retrato do velho outra vez / Bota no mesmo lugar / O sorriso do velhinho faz a gente trabalhar”. Consta que Getúlio não gostou de ser chamado de velho. Na folia de 1969, a primeira após o famigerado AI-5, decretado em dezembro do ano anterior, a Império Serrano levou para a avenida um enredo, Heróis da Liberdade, cujos ensaios foram acompanhados por policiais do Dops. O samba acabou alterado — a palavra “revolução” teve de ser trocada por “evolução”. Duas décadas depois, em 1989, a Beija-Flor de Joãosinho Trinta pôs no carro alegórico um Cristo Redentor vestido de mendigo. Como a Arquidiocese do Rio de Janeiro entrou na Justiça para proibir a imagem, o carnavalesco tratou de cobri-la de pano com uma frase provocativa: “Mesmo proibido, olhai por nós!”. Em 2018, a Paraíso do Tuiuti exibiu Michel Temer à guisa de vampiro, para alegria de uma parcela da esquerda (e ressalve-se que Temer, discreto, nada disse, sorriu e tocou a vida).

Neste ano, os blocos de rua de quase todos os estados e as escolas de samba do Rio e de São Paulo desfilarão, com uma ou outra variação, com gritos contra o governo do presidente Jair Bolsonaro — sobretudo contra as ideias conservadoras dele, os arroubos verbais de sua equipe ministerial e seus barulhentos aliados. Como o Carnaval é tempo de liberdade, tal reação, como resposta, soa atávica, como sempre foi. No ano passado, recém-empossado, o presidente foi ao Twitter para lamentar e tornar célebre um certo golden shower, que viraria piada. Agora, o ideal é que as autoridades acompanhem os gracejos da festa como devem ser acompanhados — com riso, quando for o caso, ou com indiferença, se assim preferirem. Dos foliões, espera-se apenas o bom humor, sem violência, sem agressividade, com sensatez. Nesse caminho, o Carnaval há de ser o oásis de que tanto nos orgulhamos, para tudo terminar na Quarta-Feira de Cinzas — e os problemas do Brasil exigirem, na vida como ela é, sem festa, a vigilância e a permanente participação democrática de todos.

Publicado em VEJA de 26 de fevereiro de 2020, edição nº 2675

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