Bagunça interessante
Acertos e equívocos chocam-se quase a cada fotograma de 'Pantera Negra' — mas a superprodução afrofuturista da Marvel pode romper barreiras significativas
A capital do reino de Wakanda é deslumbrante: protegida dos olhos alheios por uma cordilheira impenetrável, a cidade tem edifícios que reeditam, nas alturas, a cobertura de palha das choças tribais; tem animados mercados de rua e tecnologia de ponta; seus moradores usam têxteis coloridos da África Central e adereços tradicionais, mas partilham de uma doutrina política de igualdade interna e neutralidade externa. O mundo acredita que essa seja apenas mais uma das nações pobres do continente, e à rica (além de fictícia) Wakanda convém que a crença persista. Caso um forasteiro consiga espiar as bordas do reino, encontrará apenas pastores em palhoças — na verdade, uma força de elite dedicada a proteger as fronteiras. Igualmente ambíguo é Pantera Negra (Black Panther, Estados Unidos, 2018), já em cartaz no país. Com frequência, tudo o que há de acertado e de equivocado no filme — e há muito de ambos — vem junto e misturado no mesmo fotograma, e entrelaçado do começo ao fim do enredo.
Atuações excelentes, como as de Daniel Kaluuya, Danai Gurira, Letitia Wright e Lupita Nyong’o (o filme é repleto de mulheres fortes), convivem com desempenhos de canastrice irremediável, como os de Angela Bassett e Forest Whitaker. Discussões pertinentes — existe uma base sólida de experiências para que os negros de nações dentro e fora da África se considerem um só povo? — às vezes retrocedem para o sentimentalismo. A vibrante visão afrofuturista que guia o desenho de produção volta e meia inclui rituais que lembram shows para turistas. E em nenhum momento questiona-se que essa nação voltada para o futuro seja uma monarquia absolutista — e isso num continente em que os ditadores constituem o flagelo que dá à luz todos os outros flagelos. É uma bagunça indivisível, mas também viva e cheia de aspirações: embora não seja a primeira aventura estrelada por um super-herói negro (Wesley Snipes foi Blade em três filmes entre 1998 e 2004), Pantera Negra é, sim, a primeira na escala agigantada da Marvel e da era em que protagonizar uma produção dessas representa, para uma minoria étnica ou de gênero, um divisor de águas. Quanto de água fica para lá ou para cá é algo que a bilheteria reflete bem — e as previsões para Pantera Negra, de 170 milhões de dólares na estreia, são acachapantes.
Há muito em jogo, portanto, e o diretor Ryan Coogler, de Creed — Nascido para Lutar, ele próprio negro e jovem, calça as suas apostas com vigor. Seu maior acerto é mimetizar a estratégia de Wakanda, isolando o enredo do restante do universo Marvel: todos os eventos têm como epicentro e ponto de destino Wakanda, onde o príncipe T’Challa (Chadwick Boseman) acumula as responsabilidades do super-herói do título e as funções de soberano e tenta evitar que outros países descubram suas reservas do metal vibranium, fonte da sua riqueza e do seu avanço. Dos diamantes ao petróleo, os recursos naturais são a bênção e a maldição africana, mas as preocupações de T’Challa vão além. Têm a ver com discernir se a força está em integrar-se ao mundo ou manter-se à parte — o tópico mais candente na discussão racial americana hoje, que Pantera Negra, com seu elenco e equipe negros de múltiplas origens, ecoa com uma variedade de argumentos tão interessante, e às vezes cacofônica, quanto a do mundo real.
Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2018, edição nº 2570