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As regras do jogo

O fundador da Atari, marca que praticamente criou a indústria de games e os métodos de trabalho no Vale do Silício, diz o que é necessário para empreender

Apresentado por Atualizado em 30 jul 2020, 20h12 - Publicado em 17 ago 2018, 07h00
2013 - Lembranças do ícone da Apple, ex-funcionário que o tinha por mestre (//VEJA)

No californiano Vale do Silício, a meca mundial da tecnologia, o nome do engenheiro americano Nolan Bushnell se tornou sinônimo de inovação. Aos 75 anos, ele costuma ser lembrado pela criação, na década de 70, da Atari. Não por acaso: a empresa foi responsável não só por fundar do zero o hoje multibilionário mercado de videogames como também por delinear o padrão do que se considera uma iniciativa de ponta, daquelas capazes de redefinir rumos de setores inteiros. Foi na Atari, por exemplo, que surgiu Steve Jobs (1955-2011), seu ex-empregado e autointitulado discípulo de Bushnell. Jobs, aliás, de quem Bushnell falou muito nas Páginas Amarelas de VEJA em 2013, aplicou diversos conceitos do seu mentor na construção do gigante Apple. Após vender sua companhia à Warner, em 1976, por algo em torno de 30 milhões de dólares — uma fortuna na época —, Bushnell continuou atuando como investidor em diversas frentes, caso da rede de fast-food Chuck E. Cheese’s, atualmente uma das mais bem-sucedidas do gênero nos Estados Unidos. Nesta entrevista, o empreendedor mostra-se otimista em relação às novidades tecnológicas que têm revolucionado o mundo e, também, acerca do futuro do Brasil nessa área.

A explosão do empreendedorismo é bastante restrita a países ricos, como os EUA. O Brasil tem chance de participar desse jogo? Na verdade, acredito que essa lógica, evidente no passado, não se aplica mais hoje. A tendência atual é a oposta: existem maiores oportunidades para inovar no Brics (bloco composto de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) do que nos EUA. Um dos elementos que levaram a essa situação é que, agora, basta possuir conectividade com a internet para emparelhar-se com o restante do planeta nessa competição. Com isso, as nações do Brics se equipararam às mais ricas — e com algumas vantagens. A principal delas é que, localmente, há necessidade de soluções para problemas muito particulares de cada um desses países. Por exemplo, no Brasil se fala português. Logo, não adianta propor uma novidade baseada no idioma inglês para ser lançada em território brasileiro. Essa conclusão, acerca da linguagem, serve para ilustrar a questão maior de como alguns tipos de inovação terão de surgir internamente para resolver problemas também internos. Para entrar no jogo da inovação, realmente só falta aos brasileiros acertar os ponteiros do próprio governo, que não tem colaborado com o progresso tecnológico.

O que deveria ser acertado? Governos, e os políticos que os representam, deveriam simplesmente sair do caminho dos empreendedores. Não sei exatamente, em detalhes, como são as leis trabalhistas e tributárias no Brasil. Contudo, tenho a noção de que elas vêm se provando impeditivas, como ocorre na maior parcela da Europa. Naquele continente, as leis também se revelam tóxicas para o ambiente de inovação. Na França é praticamente impossível começar uma empresa do nada, só com uma ideia na cabeça. É preciso já ser rico para arcar com os custos iniciais e ainda para comprometer o patrimônio pessoal, não só o corporativo, caso seja necessário lidar com questões empregatícias. Eu jamais ousaria empreender por lá. Ou na Grécia, onde a obtenção das aprovações necessárias para abrir as portas de um negócio demora dezoito meses. Sei que na Noruega nem os nativos se atrevem a se aventurar devido ao alto capital exigido e às draconianas responsabilidades fiscais que se impõem na hora de dar início a uma empreitada do gênero. Há governos burros por todo o planeta. E são eles que barram as ideias inovadoras que surgem da mente de seus cidadãos.

Quais estratégias levaram os Estados Unidos a conquistar a liderança incontestável nesse campo? Tudo tem a ver com a construção do Vale do Silício tal como ele é hoje. Começou com um movimento na Universidade Stanford, em que professores passaram a pregar, ainda na década de 60, em favor do empreendedorismo, do tipo mais ousado. Introduziram assim as sementes intelectuais que conduziriam ao fortalecimento de todo um ecossistema empreendedor na Califórnia. Somam-se a esse fator dois acontecimentos que também se deram em Stanford: a elaboração dos primeiros chips e a formação da internet. A partir desses impulsos foram construídas as empresas que serviram de referência absoluta para todas as que vieram depois. Caso da Atari e da Apple.

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“Nossos empregados tinham a liberdade de conversar com quem quer que fosse, inclusive comigo, o dono do negócio. Eu sentia ojeriza por executivos que se achavam mais do que provavam ser”

O que tornou a Atari um modelo para outros empreendedores, em especial os localizados no Vale do Silício? Até eu fundar a empresa, em 1972, corporações fortes eram, em regra, extremamente hierárquicas e burocráticas. Na Atari, quebramos essa lógica, construindo um modelo que logo foi replicado mundo afora. Desde o início, nossos empregados tinham a liberdade de conversar com quem quer que fosse, inclusive comigo, o dono do negócio, praticamente em pé de igualdade. Eu sentia ojeriza por executivos arrogantes, que se achavam mais do que realmente provavam ser. Essa estratégia quebrou a verticalização da relação entre os empregados e tornou tudo horizontal, uma estrutura essencial para fomentar a inovação. Isso porque boas ideias podem surgir de qualquer cabeça, e é nessas sacadas que se deve apostar. Não importa o cargo de quem propôs — mas, sim, o conteúdo. Após implementarmos essa lógica, ela passou, com o tempo, a virar regra no Vale do Silício.

Por que, então, a Atari perdeu relevância nas últimas décadas, deixando o posto de referência da indústria dos videogames para se tornar mera coadjuvante? O erro ocorreu quando a empresa foi vendida à Warner. A nova proprietária deu fim a toda a forma de trabalho que havíamos instituído. Adotou a típica postura das grandes corporações, optando por levar a marca para um caminho que, na mentalidade dos executivos do passado, seria mais seguro. Assim, a Atari deixou de arriscar, de criar, para se tornar apenas uma simples subsidiária destinada a gravar e regravar games comerciais — e em nada ousados. O resultado foi o óbvio. De início, tal planejamento fez com que a Warner vendesse mais títulos de jogos, o que rendeu uma fortuna — a Atari chegou a constituir um terço do faturamento do conglomerado. Com o tempo, no entanto, a falta de inovação teve como consequência o descrédito do público para com a marca e, em efeito contínuo, para com a indústria de games, da qual éramos um dos poucos grandes representantes. Nisso, a Atari foi à beira da falência, e o mercado de jogos eletrônicos como um todo só conseguiu se recuperar nos anos 1990, devido à atuação de nossas rivais.

“Sempre haverá um grande número de fracassos nesse ramo. Entretanto, é preciso entender que apenas da insistência podem surgir as iniciativas mais extraordinárias”

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Hoje, nomes como Steve Jobs, que se considerava seu discípulo, e Mark Zuckerberg, o fundador e CEO do Facebook, são criticados ou idolatrados como se fossem rock stars. O que fez com que os empreendedores virassem figuras famosas? Atualmente, quando um grande talento se forma na faculdade, ele não quer mais trabalhar para alguém. Seu sonho costuma estar ligado a ter o próprio negócio. Um de meus filhos — no total, são oito herdeiros — decidiu até sair da universidade no meio do curso para abrir seu negócio. Hoje, ele não é graduado. Chefia, porém, uma startup que vai faturar neste ano entre 3 milhões e 5 milhões de dólares. Aliás, para chegar ao topo, nem é mais obrigatório frequentar uma universidade. Basta ser autodidata e aprender na internet o que for preciso. Foi justamente essa ambição da juventude, somada à facilidade de acesso à educação on-line, que transformou os empreendedores nos astros do século XXI, aqueles que servem de modelo de vida para os jovens.

Assim como é dificílimo tornar-se um roqueiro célebre, não é fácil virar um bilionário da indústria digital. Como o jovem conseguirá lidar com essa quase certa frustração? Sempre haverá grande número de fracassos no ramo do empreendedorismo. Existem mais fracassados e perdedores do que vitoriosos. Entretanto, é preciso entender que apenas da insistência podem surgir as iniciativas mais extraordinárias. Investidores consagrados, por exemplo, têm plena noção de que, a cada dez empresas nas quais investirem, nove só vão dar prejuízos, enquanto uma dará muito certo, com retorno imenso. Quem desiste ao deparar com um deslize não chega muito longe nisso.

No mundo conectado, parece que tudo ocorre cada vez mais rápido. Como se manter inovador num cenário no qual novidades, como as tecnológicas, logo se tornam ultrapassadas e são substituídas por alguma coisa ainda mais incrível? De fato, o ritmo desse progresso acelerou-se de tal modo que a vida média de uma inovação contemporânea é curtíssima. A solução para não ficar para trás é simples: deve-se estar antenado e reinventar-se a todo momento, caso se queira manter um negócio de sucesso. Há, todavia, um problema nisso. Para grandes empresas, com acesso a vasto capital, é mais fácil readequar-se a toda hora — contanto que saibam descer do pedestal. Só que a facilidade não é a mesma para startups, com time pequeno e baixo faturamento.

Publicado em VEJA de 22 de agosto de 2018, edição nº 2596

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