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As brumas atômicas

Ao ameaçar Irã com fim do acordo nuclear às vésperas de negociações com Coreia do Norte, Trump manda mensagem errada para os dois países e para o mundo

Por Duda Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 20h21 - Publicado em 4 Maio 2018, 06h00

Segundo uma lei criada pelo Congresso dos Estados Unidos em 2015, o presidente do país deve, a cada 120 dias, decidir se renova ou não o alívio às sanções econômicas ao Irã previsto no acordo costurado por seis potências mundiais para conter o programa nuclear persa. Em janeiro deste ano, Donald Trump endossou a medida. Em 12 de maio, poderá fazê-lo novamente, mas o presidente avisou que não pretende prorrogar o benefício. Na prática, a decisão unilateral retiraria os Estados Unidos do acordo feito pelo antecessor de Trump, Barack Obama. Os efeitos são potencialmente desastrosos. Com a retomada das sanções, os aiatolás se sentiriam compelidos a continuar com o projeto de construir sua bomba atômica. Para completar, se seguir em frente com a ameaça, o presidente americano estará jogando no lixo um acordo de não proliferação nuclear justamente no momento em que se prepara para outra negociação sobre o mesmo tema, esta com a Coreia do Norte.

Em 27 de abril, o ditador norte-coreano Kim Jong-un encontrou-se com o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in. Foi a primeira vez que um líder do Norte pisou em território do Sul — e a primeira reunião entre os governantes dos dois países em onze anos. Eles falaram em assinar um acordo de paz para acabar com a guerra que dividiu a península da Coreia e que, interrompida em 1953, nunca foi formalmente encerrada.

Também prometeram dar os passos necessários para a desnuclearização da região — o que, para Kim, significa interromper seus testes nucleares e, para Moon e Trump, representa desmantelar totalmente o arsenal atômico norte-coreano. Esse será o tema central do encontro — inédito e, para o bem ou para o mal, histórico — que está sendo organizado entre Kim e Trump. Trata-se de um momento delicado para a diplomacia mundial, coberto de brumas. “Se o acordo nuclear com o Irã ruir, o país poderá seguir o mesmo rumo que a Coreia do Norte, para quem a capacidade atômica se provou a melhor garantia de segurança”, diz Philip Crowley, que chefiou o setor de Relações Públicas do Departamento de Estado na gestão de Obama. Por que, então, Trump está criando obstáculos para a manutenção desse acordo?

Especula-se que Trump acredita que, ao adotar uma abordagem mais dura com o Irã, esteja deixando claro para Kim Jong-un que as suas exigências num eventual acordo com a Coreia do Norte serão igualmente severas. Entre os motivos alegados por Trump para abandonar o acordo com o Irã está o de que o texto nada diz sobre o desenvolvimento de mísseis balísticos. É justamente nessa área que o Irã mais precisa se dedicar atualmente se quiser ter uma bomba atômica operacional. Diversos testes de lançamento têm sido realizados nos últimos tempos. O tema até entrou nas negociações em 2015, mas ficou de fora porque atrasaria em muito a assinatura do tratado. Trump também afirma que o acordo só congelou a linha de produção da bomba atômica. De fato, as instalações nucleares iranianas não foram desmanteladas, apenas esperam um momento para ser ligadas novamente. Por fim, Trump diz que o Irã está infringindo o acordo e continua desenvolvendo a bomba secretamente. Na segunda-feira 30, o primeiro-ministro israelense Benjamin Ne­tanyahu tentou engrossar os argumentos de Trump com uma palestra em inglês, em Jerusalém, em que alegou ter evidências de sobra para provar que o Irã está violando o acordo e merece uma reprimenda. A apresentação, porém, foi um fiasco constrangedor. Netanyahu disse que, no ano passado, os iranianos esconderam seus arquivos digitais sobre o programa nuclear em um simples armazém em Teerã. Se isso aconteceu, a conclusão é óbvia: o material não era assim tão importante. Além disso, nada do que o israelense mostrou prova que os iranianos voltaram a produzir combustível nuclear para uma ogiva depois da assinatura do acordo.

Na terça-feira 1º de maio, a Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea) publicou um relatório que, sem citar Netanyahu, mostrava que sua palestra não tinha novidade alguma. A agência afirmou que já sabia que o Irã havia tentado fazer um detonador nuclear antes de 2003. Depois disso, ainda que os iranianos tenham feito alguns esforços isolados, nenhuma ação coordenada foi além da pesquisa científica. De 2009 em diante, não se encontrou nenhuma indicação crível de atividades no Irã relacionadas ao desenvolvimento de uma bomba nuclear.

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Apesar de serem duas ditaduras, Irã e Coreia do Norte reagem de forma diferente à pressão americana. Kim Jong-un manda na Coreia do Norte sem contrapeso algum. Sua população não tem acesso às notícias nem desafia seu poder. Ele tem total liberdade para fazer o que bem entende e, depois, contar a lorota que quiser aos seus cidadãos oprimidos e depauperados. O Irã é outra coisa. A sociedade civil tem papel muito maior. Um em cada três habitantes é de classe média. Nos últimos dois anos, a redução das sanções possibilitou ao país pegar mais de 30 bilhões de dólares em ativos que estavam congelados em bancos pelo mundo. Agora, o petróleo produzido pode ser vendido mais facilmente. O respiro econômico permitiu aos aiatolás, que controlam a teocracia iraniana, ampliar suas aventuras militares na Síria e no Iêmen. Mas a melhoria não foi geral. O investimento externo não se mostrou tão grande como esperado, porque muitos bancos ainda precisam seguir as legislações dos Estados Unidos ou de estados americanos que proíbem negócios com o Irã. Para boa parte da população, o alívio nas sanções já não é tão fundamental. “Muitos não estão vendo como isso melhorou sua vida e já começam a questionar a validade do acordo nuclear”, diz o cientista político Chris­topher Bidwel, que atua na Federação dos Cientistas Americanos desenvolvendo leis e políticas de não proliferação nuclear.

Desde que o Tratado de Não Proliferação Nuclear entrou em vigor, nos anos 1970, ficou acertado que os países sem bomba nuclear só desenvolveriam essa tecnologia para fins pacíficos. Índia, Paquistão e Israel, que não assinaram o documento, fabricaram as suas para fazer frente a inimigos regionais. Mais recentemente, após o fim da Guerra Fria, outro propósito sobrepôs-se a esse: ser bem tratado pela super­potência americana. Se Trump abandonar o acordo nuclear com o Irã, a Coreia do Norte vai entender que não pode confiar na comunidade internacional e que a melhor estratégia é mesmo ter a bomba nuclear à mão.

Com reportagem de Thais Navarro

Publicado em VEJA de 9 de maio de 2018, edição nº 2581

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