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Algo de podre no Facebook

Em uma trama que envolve poder, tecnologia e uso indevido de dados privados, uma empresa de marketing eleitoral escancara novos riscos para a democracia

Por Duda Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Filipe Vilicic Atualizado em 23 mar 2018, 06h00 - Publicado em 23 mar 2018, 06h00

Mark Zuckerberg está preocupado com as eleições no Brasil. E uma das razões para essa inquietude é que o fundador, CEO e maior acionista do Facebook está perdendo dinheiro, muito dinheiro. “Haverá uma grande eleição no Brasil, além de outras votações ao redor do mundo, e você pode apostar que estamos realmente empenhados em fazer tudo o que for necessário para garantir a integridade dessas eleições no Facebook”, disse Zuckerberg em entrevista ao canal CNN na quarta-feira 21. Que mundo é esse em que um empresário americano se vê obrigado a vir a público para prometer a lisura do rito democrático em outros países e ainda se sai com uma expressão (“eleições no Facebook”) constatando que a disputa eleitoral se dará no âmbito do negócio que ele criou? Pois esse é um mundo em que empresas de marketing político sabem mais sobre os gostos, os medos, os preconceitos, as opiniões, as vulnerabilidades, as inclinações e os hábitos dos eleitores do que os próprios eleitores. É um mundo em que o simples ato de curtir a postagem de um amigo pode dar munição a estrategistas empenhados em incentivar a polarização e a intolerância para fins eleitorais. É um mundo em que plataformas on-line criadas para unir as pessoas tornam-­se ferramentas que, em última análise, ameaçam a democracia.

Flagra - Mark Turnbull e Alex Tayler, diretores da Cambridge Analytica, na câmera escondida: “Estamos indo para o Brasil” (4 News/Reprodução)
(VEJA/VEJA)

Eis como começou a preocupação de Zuckerberg. No fim de semana dos dias 17 e 18 de março, o jornal americano The New York Times e os ingleses The Guardian e Observer revelaram que os dados pessoais e detalhes sobre atividades on-line de 50 milhões de perfis do Facebook foram coletados e utilizados para fins eleitorais, sem que os usuários tivessem dado autorização para tal. As informações foram obtidas entre junho e agosto de 2014 por meio de um aplicativo desenvolvido por Aleksandr Kogan, um psicólogo da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e inspirado nas pesquisas de outro estudioso da mesma instituição, Michal Kosinski. O Facebook consentiu que o aplicativo fizesse a coleta de dados em sua plataforma para fins acadêmicos. Kogan, porém, não se limitou aos estudos: vendeu os dados à Cambridge Analytica, uma empresa que tinha em seus quadros Steve Bannon, o ex-estrategista amalucado da campanha presidencial de Donald Trump e que recebera um investimento de 15 milhões de dólares de Robert Mercer, um bilionário conhecido por financiar o movimento conservador da direita alternativa (alt-right, em inglês) nos EUA.

As informações colhidas no Facebook foram cruzadas com registros de eleitores e usadas para produzir peças de propaganda on-line pela equipe do senador Ted Cruz, pré-candidato nas primárias republicanas para a Presidência, em 2015, e, no ano seguinte, pela campanha vitoriosa de Trump. A julgar pelo tipo de conteúdo que circulou massivamente nas redes sociais no ano eleitoral, acredita-se que os dados pessoais vendidos por Kogan à Cambridge Analytica serviram para divulgar abertamente informações tendenciosas e notícias a milhões de cadastrados no Facebook. Serviram, portanto, para soterrar a rede com lixo político.

Até esse ponto da narrativa, o que se tem é um pesquisador e uma empresa de marketing político passando a perna no Facebook e em seus usuários. “É um procedimento muito comum: empresas desenvolvedoras que usam aplicativos como isca de informações pessoais para tentar vendê-las sem autorização do Facebook”, diz o advogado Eduardo Magrani, coordenador da área de direito e tecnologia do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS) do Rio de Janeiro. Mas as revelações não pararam por aí. O programador canadense Christopher Wylie, ex-funcionário da Cambridge Analytica, disse aos jornalistas americanos e ingleses que o Facebook descobrira já em 2015 que Kogan havia repassado ilegalmente os dados dos perfis on-line para uso eleitoral. Os advogados do Facebook exigiram, então, que Kogan e a Cambridge Analytica se comprometessem por escrito a destruir os dados. Nada além disso. O Facebook não se deu ao trabalho de fazer uma vistoria técnica — algo previsto nos termos que os desenvolvedores aceitam ao incluir seus aplicativos na rede social — para se assegurar de que as informações haviam sido realmente apagadas. Mas o mais grave é que em nenhum momento o Facebook avisou seus milhões de usuá­rios de que seus dados tinham sido desviados indevidamente para fins eleitorais. Mais: apesar de, em 2015, ter reduzido a quantidade de informações que os aplicativos são capazes de coletar de seus usuários, o Facebook só baniu a Cambridge Analytica de sua plataforma recentemente, depois que ficou sabendo da disposição de Wylie de denunciar o caso publicamente.

Para completar a tempestade perfeita que se abateu sobre o Facebook, na terça-feira 20, o Channel 4, da TV inglesa, divulgou uma reportagem em que dois jornalistas se fazem passar por clientes do Sri Lanka para se encontrar com executivos da Cambridge Analytica, que não sabiam que estavam sendo filmados. No vídeo, entre os serviços prestados para prejudicar adversários políticos, além da coleta de dados de eleitores, eles oferecem a contratação de prostitutas para conseguir informações confidenciais ou criar escândalos sexuais. Outra opção seria enviar um empresário estrangeiro para simular um pagamento de propina aos candidatos opositores e gravar a transação em vídeo, para depois divulgá-­lo nas redes sociais. Ou seja: tudo bandidagem da grossa. Uma das pessoas flagradas nas imagens é o CEO da Cambridge Analytica, Alexander Nix. “Nós estamos acostumados a operar por meio de diferentes veículos, nas sombras”, disse Nix, que foi suspenso da empresa no mesmo dia. Em outro trecho do vídeo, um dos diretores diz que a Cambridge Analytica está estendendo suas atividades para o Brasil.

Apesar de o Facebook não estar vinculado a nenhuma dessas práticas de podridão eleitoral, o fato de a reportagem do Channel 4 ter sido divulgada dias depois das revelações feitas por Christopher Wylie aumentou a impressão generalizada de que a empresa é permissiva com os dados de seus usuários, pouco criteriosa ao definir quem pode ter acesso a eles — além disso, quando um desvio acontece, ela tenta corrigir sem muito esforço e depois faz tudo para manter a coisa toda sob um manto de silêncio.

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Os efeitos foram quase imediatos. Ao longo da semana, as ações do Facebook derreteram-se em 50 bilhões de dólares, o equivalente ao valor de mercado da General Motors ou a duas vezes o PIB anual do Paraguai. Zuckerberg perdeu, individualmente, 6 bilhões de dólares em dois dias. A agência reguladora de comércio dos Estados Unidos abriu uma investigação sobre a empresa. Em Londres, o Parlamento ameaçou convocar Zuckerberg a prestar esclarecimentos. “É hora de ouvir um executivo sênior do Facebook com autoridade para dar uma explicação correta sobre essa falha catastrófica”, disse o parlamentar que preside a comissão sobre temas digitais, Damian Collins. No âmbito da União Europeia, o Facebook pode ser enquadrado em uma lei de proteção de dados que passa a vigorar em maio, com efeito retroativo, e prevê uma multa que pode chegar a 4% do faturamento global da empresa — algo em torno de 1,6 bilhão de dólares. Na internet, surgiu até um movimento de pessoas que prometem apagar o perfil na rede social. Entre os defensores dessa medida estava Brian Acton, cofundador do WhatsApp (vendido ao Facebook por 22 bilhões de dólares em 2014). “Chegou a hora. #DeleteFacebook”, publicou ele em outra rede social, o Twitter. O movimento está tendo adesões, mas ainda não é possível precisar sua real dimensão.

Houve ainda mais lenha na fogueira. O caso Cambridge Analytica estourou em meio às investigações do procurador especial Robert Mueller sobre a interferência russa nas eleições americanas, no que ficou conhecido como Russiagate. No mês passado, Mueller indiciou treze cidadãos russos pela atuação em uma fábrica, com sede em São Petersburgo, de perfis falsos que usavam as redes sociais, e em especial o Facebook, para manipular o eleitorado americano. O pesadelo estará completo se vier à tona que há uma relação entre o caso Cambridge Analytica e o Russiagate: o próprio Wylie afirmou que, em julho de 2014, recebeu um e-mail da Lukoil, a segunda maior produtora de petróleo da Rússia. Apesar de ela ser uma empresa privada, seu diretor, Vagit Alekperov, é amigo do presidente Vladimir Putin. “Isso não fazia sentido para mim”, disse Wylie. “Por que uma companhia russa de petróleo teria interesse em informações dos eleitores americanos?” Em retrospecto, a pergunta parece já trazer a resposta.

No meio digital, há uma regra informal que dita os negócios: “Se você não pagou por um produto, você é o produto”. Segundo um estudo da Universidade Stanford, apenas 3% das pessoas leem os termos de serviço de um site antes de utilizá-lo. No Facebook, está escrito: “Quando você usa um aplicativo, ele pode solicitar sua permissão para acessar seu conteúdo e informações, bem como conteúdo e informações que outras pessoas compartilharam com você”. Esses dados podem ser empregados para fins comerciais, acadêmicos ou em pesquisas. É com base nas atividades e interações dos usuários na rede social que o Facebook consegue personalizar os anúncios pagos e com isso garantir os quase 13 bilhões de dólares de faturamento que obteve no último trimestre de 2017. E, por isso, tem capacidade para oferecer aos usuários uma plataforma gratuita, pois sua receita vem de outra fonte.

É espantoso o que se consegue descobrir sobre uma pessoa simplesmente analisando o seu comportamento na rede social. A pesquisa feita em 2007 por Michal Kosinski e pelo estudante David Stillwell, a mesma que serviu de inspiração para Kogan, dividiu os usuários do Facebook segundo cinco traços psicológicos (abertura, conscientização, extroversão, estabilidade emocional e agradabilidade). Com base nos resultados e nos modelos estatísticos, eles descobriram, por exemplo, que pessoas que curtiam a página “Eu odeio Israel” tinham uma tendência maior a gostar de chocolate KitKat ou de tênis Nike. Esse tipo de informação aparentemente singela e desconexa vale ouro na mão de alguém disposto a direcionar o debate político por meio da manipulação das emoções e das vulnerabilidades psicológicas dos eleitores. Essa era a matéria-prima da estratégia on-line da Cambridge Analytica.

Os algoritmos da empresa calculavam qual mensagem seria mais adequada para convencer cada eleitor a mudar o voto — ou a instigá-lo a sair de casa para votar, algo essencial em um país onde a participação no pleito é facultativa — e com que frequência ela deveria aparecer. A metodologia subverte o processo político tradicional, em que um candidato expõe as ideias e os eleitores precisam se posicionar sobre elas. “O que a Cambridge Analytica fez foi direcionar o voto usando dados culturais, como os padrões de consumo, a religião, o time de futebol, as preferências culinárias. É totalmente antiético”, diz o sociólogo Marco Ruediger, diretor de análise de políticas públicas da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro.

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Dados - Christopher Wylie, que entregou os segredos da Cambridge Analytica (Andrew Testa/The New York Times/Fotoarena)

Com as redes sociais, as campanhas tornaram-se uma exploração desavergonhada e individualizada dos sentimentos dos eleitores, através de abordagens subliminares. Como consequência, as chances de um entendimento entre as diversas partes diminuem e a polarização aumenta. “Se não encontrarmos um mecanismo para evitar a polarização de mensagens que fragmentam o eleitorado nas redes sociais, a democracia ficará ameaçada”, diz o matemático belga Paul-Olivier Dehaye, fundador de uma startup que ajuda as pessoas a recuperar seus dados pessoais on-line e um dos primeiros a publicar estudos sobre o modus operandi da Cambridge Analytica. “Na internet, as pessoas não precisam enfrentar discussões difíceis e simplesmente se isolam com outras que têm a mesma opinião.” O que empresas como a Cambridge Analytica fazem é manipular e intensificar esse fenômeno, matando o debate político.

Uma atuação tão invasiva como a da Cambridge Analytica nos Estados Unidos teria chances escassas de acontecer no Brasil nas eleições deste ano por uma razão técnica. Como o Facebook dificultou em 2015 o acesso dos desenvolvedores aos dados sobre o comportamento dos usuários, é praticamente impossível reunir uma gama de informações no universo brasileiro tão ampla quanto a coletada por Kogan nos EUA. Além disso, a venda de banco de dados no Brasil é mais restrita que nos EUA. “Até onde eu sei, ninguém aqui tem uma base de dados com perfis psicológicos como a Cambridge Analytica obteve. Não há mais como obter algo assim”, diz Rodrigo Helcer, presidente da Stilingue, empresa brasileira que faz monitoramento da internet com o uso de inteligência artificial. “Apesar disso, temos outros problemas, como a disseminação de fake news e o uso de robôs para ajudar a espalhar esse material enganoso”, diz Helcer.

Mark Zuckerberg fez, na quarta-­feira 21, um mea-culpa em texto publicado no seu perfil do Facebook e dirigido ao usuário da rede: “Temos a responsabilidade de proteger os seus dados e, se não podemos, não merecemos servi-­lo. Tenho trabalhado para entender exatamente o que aconteceu e como garantir que isso não volte a acontecer. A boa notícia é que as ações mais importantes para evitar que essa situação ocorra novamente já foram realizadas há anos. Mas também erramos, há mais a fazer, e temos de fazê-­lo”. Em seguida, anunciou algumas medidas para restringir o acesso de terceiros a dados de perfis. O problema é que, quanto mais o Facebook cede aos apelos para proteger dados dos usuários, mais atrapalha o seu próprio negócio. Como a plataforma é gratuita para os mais de 2 bilhões de usuários ao redor do mundo, quem paga as contas são as organizações que divulgam suas atividades e seus anúncios no Facebook. Tomar uma medida drástica, como proibir os anúncios políticos, tiraria uma importante fonte de receitas da rede — razão pela qual o escândalo não é exatamente uma surpresa. Além disso, a divulgação livre de ideias é um dos pré-requisitos da democracia. O desafio é encontrar um equilíbrio entre privacidade e liberdade, evitando que ambas sejam dilaceradas.

Com reportagem de André Lopes


“A privacidade acabou”

“Pegadas virtuais” – Kosinski: não é preciso fazer perguntas de política para saber as respostas (Lauren Bamford/.)

O psicólogo e cientista de dados polonês Michal Kosinski criou, quando era aluno da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, o primeiro modelo de classificação de personalidade de indivíduos com base nos rastros que eles deixam nas redes sociais. Foi essa a metodologia empregada, sem sua autorização, pela consultoria Cambridge Analytica na campanha de Trump. Hoje professor em Stanford, Kosinski diz que é preciso aceitar o fato de que os dados pessoais dos usuários de internet não podem mais ser integralmente protegidos e pensar em como tornar habitável o mundo na era pós-privacidade. Por telefone, ele falou a VEJA, antes do escândalo do Facebook, de Palo Alto, na Califórnia.

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O senhor fez uma pesquisa com 8 milhões de voluntários que lhe cederam seus dados de Facebook. Quais foram as conclusões a que chegou? A pesquisa mos­­trou que as pegadas que deixamos ao utilizar a internet — como curtidas no Facebook, postagens no Twitter, e-mails, faturas de cartão de crédito e informações sobre localização — podem ser usadas para revelar uma gama de traços íntimos, como visão política, orientação sexual, religiosidade e personalidade. As pessoas não percebem, mas não precisam falar sobre política para deixar transparecer o que pensam sobre o assunto. Dados sem nenhuma relação direta com certos temas geram um algoritmo com informação suficiente para oferecer respostas.

Uma vez que ninguém é obrigado a usar as redes sociais, estaríamos mais seguros ignorando-as?  Não é totalmente verdade que não somos forçados a usar essas tecnologias. Se você quer funcionar na sociedade hoje, precisa de um cartão de crédito, uma conta bancária. Se quer manter contato com seus amigos, provavelmente tem de estar no Facebook. Não dá para abrir mão desses produtos e serviços digitais, tampouco andaremos pelas ruas cobrindo o rosto com um lenço para escapar das câmeras de segurança que registram tudo. E, uma vez que você usa esses serviços, está deixando pegadas que podem ser utilizadas para melhorar o seu cotidiano, mas que também têm o potencial de permitir a invasão de sua privacidade e ser empregadas contra você.

Em que situações isso se torna mais perigoso? A falta de privacidade é especialmente perigosa em ambientes em que não há tolerância, em que pessoas preconceituosas poderão odiar ou machucar você se descobrirem sua religião, orientação se­xual ou política. Se esse não é o caso, então, perder a privacidade torna-se muito menos perigoso. Por isso digo que devemos nos esforçar para votar em políticos que prometam não apenas proteger nossa privacidade, porque isso é uma causa perdida, mas criar condições para construirmos uma sociedade mais tolerante. Não estou feliz por estarmos perdendo a privacidade — gosto muito da minha. Mas aceito o fato de que o progresso das tecnologias digitais a está tirando de nós. E é por isso que acredito que devemos focar a resolução desse problema de uma forma possível, que é tentando estimular o aumento da tolerância e da proteção das pessoas em nossa sociedade.

Então não é o caso de discutir regras e leis de privacidade mais rígidas? Precisamos pensar em como dar às pessoas o maior controle possível sobre as suas informações. Mas, por outro lado, está claro que não há como proteger integralmente esses dados. Veja os governos: eles têm muito mais conhecimento e recursos que nós para proteger suas informações, e ainda assim falham. Não podemos esperar que pessoas com conhecimento, tempo e recursos muito mais limitados que os de um governo possam garantir que seus dados estarão totalmente seguros. Também não adianta cobrir câmeras do notebook ou desativar cookies do navegador. Precisamos aceitar que a privacidade, infelizmente, acabou. É preciso agora sentar e discutir como garantir que o mundo na era pós-privacidade seja seguro e habitável.

Sofia Fernandes

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O Brasil estava no radar da fraude

“Direcionamento inteligente” - André Torretta: sócio da Cambridge Analytica, o publicitário tentava vender seus serviços à campanha do PSDB (Daniel Teixeira/AE/Estadão Conteúdo)

Uma interferência como a realizada pela Cambridge Analytica (CA) nas eleições americanas poderia ser replicada no Brasil? A empresa inglesa tinha planos para atuar na campanha presidencial brasileira: arregimentou um sócio nacional e negociava um contrato de prestação de serviços com pelo menos duas candidaturas — uma delas, a de Geraldo Alckmin, do PSDB. Num vídeo em que exaltam a coleta e a utilização ilegal de dados dos usuários do Facebook, executivos da companhia até anunciam a intenção de operar nas próximas eleições. “Estamos indo para o Brasil”, disse o diretor-gerente da CA, Mark Turnbull. A resposta à pergunta inicial é, portanto, sim. Ao que tudo indica, a fraude baseada na coleta e no uso de informações privadas dos eleitores vinha sendo armada para ser reproduzida aqui — ainda que os candidatos brasileiros não soubessem da lama do esquema.

A revelação acendeu o sinal de alerta de órgãos de investigação e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), principalmente depois da confirmação de que a Cambridge Analytica tinha um sócio brasileiro, o marqueteiro André Torretta, dono da Cambridge Analytica-Ponte (CA-Ponte). A parceria, consolidada no ano passado, previa que Torretta abrisse portas no Brasil para os ingleses. No sábado 17, logo depois do estouro do escândalo, o marqueteiro apressou-se em anunciar o fim da sociedade. “Foi uma surpresa. Eu não sabia de nada”, disse ele. As autoridades, porém, agora querem investigar se cidadãos brasileiros foram expostos de alguma maneira às manipulações da CA e se existe um banco de dados obtido de forma clandestina com o objetivo de influenciar os eleitores.

O presidente do TSE, ministro Luiz Fux, disse a VEJA que vai acompanhar de perto os desdobramentos do escândalo. De imediato, pretende convidar André Torretta a prestar depoimento. Segundo ele, por enquanto, isso é o máximo que o tribunal pode fazer. “Se o marqueteiro fala o que o eleitor quer escutar e não agride nem denigre ninguém, não podemos controlar esse conteúdo, porque isso violaria a liberdade de expressão. O que ele não pode fazer é obter dados que só são concedidos por autorização, tampouco compartilhar e difundir notícias que atinjam candidaturas legítimas”, afirma o ministro.

Para evitar manipulações como a que aconteceu nos Estados Unidos, a Justiça Eleitoral pode estabelecer parcerias com serviços de inteligência, a fim de atuar preventivamente no combate ao uso ilegal de informações, identificando responsáveis por montar sistemas ou produzir peças publicitárias que possam ter origem em bancos de dados colhidos sem autorização. No início do ano, gigantes da tecnologia como Facebook, Twitter e Google apresentaram ao TSE medidas de segurança para combater a manipulação e a divulgação de notícias falsas nas redes sociais. A política dessas empresas impede o compartilhamento não autorizado de dados pessoais, mas, como se viu, nem sempre há fiscalização suficiente para coibir abusos.

Luiz Fux afirma que, ao menor sinal de crime, como roubo de dados pessoais de usuários de internet ou detecção de robôs abastecidos por informações colhidas ilegalmente de internautas, a Polícia Federal, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e o Ministério Público podem monitorar os suspeitos, apreender bens e propagandas e denunciá-los por tentativa de manipulação eleitoral. “Não precisamos esperar que o mal ocorra. Podemos impedir”, adverte o presidente do TSE. Procurada por VEJA, a assessoria do tucano Geraldo Alckmin informou que “ninguém ligado ao partido foi autorizado a fazer contato com o publicitário”. André Torretta não revela o nome dos potenciais clientes, mas confirmou ter se reunido com as equipes de pelo menos dois candidatos à Presidência para expor seu serviço: “direcionamento inteligente de mensagens políticas”. Na prática, era o que a CA havia feito na eleição americana de Donald Trump, só que com dados obtidos de maneira irregular e de uma forma muito mais profunda, que explorava até vulnerabilidades psicológicas de usuários. Aliás, a campanha de Trump era apresentada como exemplo de eficiência do novo método da CA.

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Torretta afirma que as informações sobre os eleitores brasileiros seriam colhidas por meio de pesquisas de opinião e difundidas como mensagens publicitárias a públicos específicos previamente selecionados. Nada de invasão, furto ou manipulação de dados. “Cadastros podem ser comprados. Com eles, é possível saber o nome das pessoas, endereços, classe social, se elas têm família. Com essas informações em mãos, enviam-se mensagens customizadas pelo Facebook ou Whats­App.”

O Ministério Público no Distrito Federal instaurou um inquérito para apurar se a CA utilizou ou está utilizando ilegalmente registros pessoais de usuários de redes sociais para a construção de perfis capazes de interferir não apenas nas eleições, mas também nos hábitos de consumo. A lei que estabelece os direitos e deveres de usuários e de provedores de internet no Brasil garante a preservação de dados pessoais e a inviolabilidade da vida particular. Além disso, assegura que informes privados só podem ser fornecidos a terceiros quando há consentimento prévio. As penas para quem descumpre essas regras vão de multa a proibição das atividades no país.

Laryssa Borges

Publicado em VEJA de 28 de março de 2018, edição nº 2575

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