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A vida no cárcere

VEJA teve acesso à ala restrita do prédio onde Lula se encontra preso e revela os detalhes dos primeiros trinta dias de cadeia do ex-presidente

Por Thiago Bronzatto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 20h21 - Publicado em 4 Maio 2018, 06h00

O elevador para no 3º andar do prédio da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. Quando se sai dele, à esquerda, um agente fardado, com uma espingarda calibre 12 em punho, impede o acesso à escada de incêndio. Subindo-se as escadas, em direção ao 4º andar, há duas portas corta-fogo de ferro. Cada uma delas exibe um alerta impresso em papel sulfite branco: o ambiente é monitorado por câmeras. O acesso é permitido somente a pessoas autorizadas. Atravessando-se a última porta, logo à direita, percebe-se que ali existe algo diferente. Uma fita azul, semelhante às usadas nos aeroportos para formar filas, dificulta o avanço de quem aparece. Ultrapassando-se a barreira, dois agentes fardados com uma pistola, do Grupo de Pronta Intervenção (GPI), a tropa de elite da PF, fazem uma espécie de barricada ao lado de uma porta de madeira. Cruzando-se essa porta tem-se acesso a uma sala. É nesse espaço, de 15 metros quadrados, isolado e protegido da curiosidade alheia, que se encontra “o cliente”, apelido dado pelos policiais ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso desde 7 de abril.

“Vou sair daqui mais rápido que as pessoas imaginam”

PROTEGIDO – Vista aérea da sede da Polícia Federal em Curitiba, onde Lula cumpre pena de doze anos de prisão (Caio Guatelli/VEJA)

Na tarde da sexta-feira 27, VEJA teve acesso com exclusividade ao local onde o petista está detido e reconstituiu o cotidiano de seu primeiro mês na prisão — uma rotina diferente da dos outros 22 presos na carceragem da PF em Curitiba. O ex-presidente não tem hora para acordar ou dormir, não tem hora para o banho de sol, pode receber os advogados quando desejar, as visitas não passam pela revista íntima e a cela, confortável se comparada às demais, não fica trancada. Normalmente, a porta permanece apenas fechada. Mesmo sem horários rígidos, o dia de Lula na prisão começa por volta das 7 horas — e segue uma rotina especial. Após pular da cama, Lula tem o hábito de ligar a televisão para acompanhar o noticiário da manhã. O desjejum é servido por volta das 7h30. O cardápio é frugal e o mesmo dos demais presos: café preto e pão com manteiga. Em deferência ao prisioneiro, o encarregado de servir a refeição bate na porta antes de abri-la. Entra, coloca a marmita sobre a mesa redonda e aplica uma dose de insulina no ex-presidente, necessária para o tratamento do diabetes.

“Fala para a juíza liberar o frigobar com uma cervejinha”

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À exceção dos agentes da tropa de elite da PF, de um funcionário da limpeza, de um delegado e do superintendente, ninguém mais está autorizado a se aproximar do local. Depois do café matinal, Lula, que também sofre de hipertensão, costuma se exercitar. Na ausência de uma esteira ergométrica, já solicitada à Justiça, caminha de um lado para outro na sala. Quando sai da cela para o banho de sol, o ex-presidente quase sempre brinca com os policiais. Já disse que, ao contrário de seus colegas de cárcere de três andares abaixo, vai sair mais bonito da prisão. Há alguns dias, Lula pediu aos advogados que lhe trouxessem uma bola terapêutica para estimular os músculos das mãos e ajudar a combater o stress. Os advogados levaram uma bola grande, daquelas usadas em sessão de pilates. “Bem que dentro disso aqui deveria vir uma mulher de surpresa, né?”, brincou o petista. E emendou, fazendo troça da sua condição: “Já que não posso transar, pratico exercícios”. Lula faz alongamentos diariamente.

Sem clamor - Manifestação, no feriado de 1º de maio, em Curitiba: uma multidão menor que a esperada (Caio Guatelli/.)

Assim como os demais presos, o ex-­presidente tem direito a duas horas diárias de banho de sol — e pode optar pelo horário que achar melhor. É um momento tenso, que mobiliza quase todo o aparato de segurança na Polícia Federal, ainda que o banho de sol ocorra bem perto da cela de Lula, no terraço do 4º andar do prédio. Antes de autorizar a saída dele, um agente verifica se o clima está adequado e, principalmente, se há drones sobrevoando a região. Se espiões eletrônicos forem detectados, a ordem é abatê-los a tiros. Lula não pode ser visto. Para evitar surpresas, a Polícia Federal mantém informantes a postos nos aeroclubes de Curitiba. Não é proibido sobrevoar o prédio, mas, ao menor sinal de aproximação de aeronaves, o ex-presidente é conduzido para dentro da sala — por questões de segurança, mas não apenas por isso. A determinação é impedir que sejam feitas imagens de Lula preso — uma condição que ele próprio impôs antes de se entregar às autoridades. A PF está providenciando a instalação de um toldo na área do banho de sol para dificultar ainda mais que sejam feitas imagens do petista. Se alguém fosse detectado bisbilhotando do alto, Lula poderia ser rapidamente colocado debaixo do toldo.

“Você viu a pesquisa do Datafolha? Quando eu sair daqui, vou voltar com tudo”

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A sala transformada em cela para abrigar Lula era usada antes como dormitório por agentes que estavam em missão em Curitiba. É um espaço espartano, sem luxos, mas com pequenos confortos exclusivos para o ex-presidente. Para quem entra, a primeira visão é a da cama, com travesseiro e lençol brancos e um cobertor azul. Ao lado, quatro cadeiras circundam uma mesa redonda com livros empilhados, folhas de anotações, caneta e alguns alimentos. Fixada à parede, há uma TV de plasma que transmite apenas os canais abertos. Ao lado do aparelho, está um armário de madeira no qual o ex-presidente guarda suas roupas — o petista normalmente usa chinelos, bermuda e camiseta. Em frente a esse móvel, às vezes Lula deposita uma sacola com  biscoitos e frutas. Atrás do armário, uma divisória separa o quarto-sala do banheiro, onde há um boxe com chuveiro elétrico, uma pia e um vaso sanitário.

A leitura nunca esteve entre os hábitos prediletos do ex-­presidente, mas isso mudou. Há poucos dias, ele concluiu a leitura de O Último Cabalista de Lisboa, romance do escritor Richard Zimler que conta a história da perseguição sofrida pelos judeus no século XVI. Lula disse ter se identificado com o enredo. Em um de seus encontros com os advogados, chegou a comentar sua prisão em tom algo messiânico. “Tenho de passar por isso. Essa é a minha missão”, disse. Quem ouviu a frase entendeu que ele estava se referindo à suposta perseguição por parte do juiz Sergio Moro. Agora, o ex-presidente está lendo o best-seller O Amor nos Tempos do Cólera, romance do colombiano Gabriel García Márquez que narra a história de um amor outonal . Na fila de leitura está Homo Deus — Uma Breve História do Amanhã, outro best-seller, obra do israelense Yuval Noah Harari, que analisa os próximos passos da evolução humana.

Além de se distrair com literatura, Lula fica boa parte do tempo vendo programas de esporte e não perde os noticiários da TV, principalmente os que tratam de assuntos políticos. “Você viu o Datafolha? Vou voltar com tudo nas próximas eleições”, afirmou, diante da mais recente pesquisa sobre as eleições presidenciais, em que aparece com uma liderança folgada. E, depois, aparentemente lembrando que não pode ser candidato porque está enquadrado na Lei da Ficha Limpa, alfinetou a ex-­senadora Marina Silva, que, segundo a pesquisa, ocupa o segundo lugar e herdaria a maioria de seus votos: “Ela não tem condições de governar. É muito carola, religiosa”. Lula lê, faz exercícios, assiste à televisão, mas passou grande parte do primeiro mês de prisão com seus advogados. Sentados à mesa de sua cela, eles discutem estratégias jurídicas e dão ao ex-presidente recados do lado de fora — de familiares, amigos, integrantes do partido. O petista reclamou, por exemplo, da presidente do PT, a senadora Gleisi Hoffmann: “A Gleisi prometeu parar o Brasil, mas não cumpriu. Ela foi incompetente”. Em outro momento de desabafo, voltou a criticar a ex-­presidente Dilma Rousseff, repetindo uma observação que nunca fez em público mas não deixa de fazer em privado: “A culpa de o Brasil estar assim hoje é da Dilma, que não soube governar direito”.

DESTINO – Os ex-ministros Antonio Palocci, que está no mesmo prédio de Lula, e José Dirceu, que se prepara para voltar à prisão (Vagner Rosário/VEJA - Rodolfo Buhrer/Reuters)

A conversa entre Lula e seus advogados é geralmente interrompida por volta das 11h30, quando chega a marmita do almoço. O agente, como de costume, bate à porta e entra com a refeição. Salada, arroz, feijão e carne compõem o cardápio mais frequente. Quando recebe a visita de seus familiares, às quintas-feiras, Lula costuma comer algo diferente. Recentemente, pediu uvas. Nesses encontros com seus filhos e advogados, que têm acesso praticamente irrestrito à cela, ele também entrega roupas sujas para lavar.

Diferentemente do que fazem seus colegas presidiários, Lula não limpa o banheiro, não varre o chão nem recolhe o lixo da cela. Todas essas tarefas ficam sob a responsabilidade de um funcionário da limpeza da Superintendência da Polícia Federal, que, normalmente, executa a faxina quando o petista está no banho de sol. Por causa desses e de outros privilégios, Lula virou alvo de piadas entre os policiais. Quando solicitou à Justiça um frigobar para tomar água gelada e uma esteira para se exercitar, alguns servidores começaram a chamá-lo de “Lula Escobar”, numa referência ao narcotraficante colombiano Pablo Escobar, que, num acordo com a Justiça, construiu uma mansão-presídio para nela cumprir sua pena. Lula, porém, não perdeu o bom humor. “Fala para a juíza liberar o frigobar com uma cervejinha”, brincou recentemente.

“A culpa de o Brasil estar assim hoje é da Dilma, que não soube governar direito”

A condição especial do ex-presidente tem um custo para os cofres públicos. Segundo estimativas da Polícia Federal, o primeiro mês de prisão do petista poderá representar um gasto de cerca de 300 000 reais. Nessa fatura estão contabilizadas as despesas com diárias, refeições, alojamentos e passagens aéreas para manter um batalhão de quase cinquenta policiais mobilizados para fazer a segurança do prédio da corporação, cercado por manifestantes. Desses servidores, oito foram destacados para se revezar durante as 24 horas do dia à frente da cela do ex-­presidente. No Brasil, a média de gasto mensal com um presidiário é de 2 400 reais. Nos Estados Unidos, chega a 10 500 reais. Na Europa, é de apenas 1 200 reais.

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A PF calculou o dispêndio com Lula porque quer que ele cumpra sua pena em uma prisão comum, como seus companheiros de partido. O ex-ministro Antonio Palocci está na carceragem do mesmo prédio e o ex-ministro José Dirceu, que se prepara para voltar à prisão, deve ficar no Complexo Médico-Penal, em Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba. O Ministério Público foi contra a transferência. Coube ao juiz Sergio Moro determinar que Lula ficasse na sala especial devido à sua condição de ex-presidente. Não se trata de um benefício inédito. No Peru, por exemplo, provavelmente um dos únicos países em que dois ex-presidentes foram presos, as condições do cárcere de ambos eram igualmente especiais. Tanto Ollanta Humala quanto Alberto Fujimori cumpriram pena num ambiente quase domiciliar.  Mas oferecer confortos excepcionais a ex-governantes não é regra. Na Coreia do Sul, a ex-­presidente Park Geun-hye, condenada por corrupção, está presa em uma cela de pouco mais de 10 metros quadrados.

A prisão de Lula foi decretada pelo juiz Sergio Moro em 5 de abril. Sentenciado a doze anos de reclusão, o petista foi considerado culpado por ter recebido como suborno da construtora OAS um apartamento tríplex localizado no Guarujá, no litoral de São Paulo. Lula nega as acusações e, apesar das inúmeras evidências, sustenta que o imóvel nunca foi dele. E mais: ainda apostando contra a Justiça, garantiu recentemente que não será “cliente” da Polícia Federal por muito tempo. “Vou sair daqui mais rápido do que as pessoas imaginam”, disse o ex-presidente, que responde a outros seis processos que podem lhe render mais de 100 anos de prisão — ou 1 200 meses. Para quem está completando apenas o primeiro mês de cárcere, é um senhor otimismo.

“A Gleisi prometeu parar o Brasil, mas não cumpriu. Ela foi incompetente”

A prisão de Lula, tanto para os aliados quanto para os adversários, é um advento de natureza especial. Afinal, além de ter governado o país por dois mandatos e ter deixado a Presidência com alta popularidade, Lula ainda é o líder nas pesquisas eleitorais. Nesse caso, a comparação com outros países é escassa. Nem Peru nem Coreia do Sul jamais encarceraram um ex-presidente que, ao mesmo tempo em que é pilhado em corrupção, é também o preferido dos eleitores. Só isso basta para colocar a prisão de Lula na coluna das evidências de que, no Brasil de hoje, ninguém está acima da lei.

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Celas presidenciais

Um colchonete dobrável no chão, uma privada, uma pia, uma televisão, uma mesa e uma pequena estante espremidos em 10 metros quadrados. Assim é a cela ocupada pela ex-presidente da Coreia do Sul Park Geun-hye, presa desde março de 2017 por corrupção. Os funcionários do Centro de Detenção de Seul nem sequer a chamam pelo nome, mas por seu número, 503, como qualquer outra detenta. Das três lâmpadas da cela, uma fica acesa o tempo todo para que os carcereiros possam vigiá-­la mesmo durante a noite. Um grupo de advogados recorreu à ONU reclamando das condições da cela e alegando que Park não recebia tratamento médico adequado. Em resposta à ação, uma comissão sul-coreana de direitos humanos avaliou a situação da ex-presidente, mas não encontrou maiores problemas. “Seus integrantes concluíram que não havia nenhuma infração. Apenas diminuíram a voltagem da lâmpada e adicionaram uma cadeira, mas Park continua sem poder ter uma cama, apesar de seu estado de saúde deplorável”, queixou-se a advogada londrina Mishana Hosseinioun, que fez a solicitação à ONU, em entrevista a VEJA.

O ex-presidente peruano Alberto Fujimori cumpriu pena entre 2007 e 2017, por crimes contra a humanidade e corrupção, em condições bem melhores. Em sua cela num presídio em Lima havia cama ortopédica, televisão e cozinha. Em um pequeno jardim, ao qual outros detentos não tinham acesso, ele cultivava plantas. Ao lado da cama, despachava em uma mesa provida de um telefone público, por meio do qual fazia articulações políticas. Comodidades semelhantes, no mesmo presídio, desfrutava outro peruano, Ollanta Humala, que obteve um habeas-corpus no mês passado, depois de nove meses preso. Ele e a ex-primeira-dama Nadine Heredia são acusados de receber dinheiro da Odebrecht.


Leituras da prisão

Ficções - Zimler e García Márquez, lidos por Lula (//Divulgação)

Há poucos dias, Lula, em seu retiro paranaense, leu O Último Cabalista de Lisboa (BestBolso), o primeiro romance de Richard Zimler, americano radicado em Portugal. Trata-se de um romance histórico, com enredo policial e algumas tintas esotéricas, que se passa no início do século XVI, um tempo de perseguição aos judeus portugueses, forçados a converter-se ao cristianismo. O herói é Berekiah Zarco, um jovem judeu que investiga o assassinato de Abraão, seu tio e mestre na hermética disciplina mística da Cabala. O folhetim é envolvente, embora às vezes se arraste no preciosismo ornamental com que descreve ambientes, vestimentas, lugares. Há menções passageiras ao Brasil — fala-­se de uma tribo de índios circuncidados —, mas nada que permita conexão direta com os eventos atuais (a não ser que se acredite, como vem sugerindo o ex-governador gaúcho Tarso Genro, que os processos contra petistas sejam o novo antissemitismo).

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Mais recentemente, Lula tem se devotado a uma floração tardia do chamado boom literário latino-americano: O Amor nos Tempos do Cólera (Record), lançado por Gabriel García Márquez em 1985, que descartou as belas extravagâncias do “realismo mágico” em prol de uma história de amor. A paixão obsessiva de Florentino Ariza por Fermina Daza começa na juventude, mas só vai se realizar plenamente passado meio século, depois da morte do primeiro marido de Fermina. Uma boa escolha para leitura de cárcere: esse é o maior rival de Cem Anos de Solidão pelo lugar de obra-prima do Nobel colombiano. E uma história de amor outonal talvez seja apropriada para esse prisioneiro leitor.

Publicado em VEJA de 9 de maio de 2018, edição nº 2581

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