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A sombra e a luz

Ex-ministro fala de lobbies legítimos e ilegítimos, diz que aceitou mimos que hoje não aceitaria e explica por que contratou José Dirceu

Por Thiago Bronzatto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 2 mar 2018, 06h00 - Publicado em 2 mar 2018, 06h00

Milton Seligman, ex-ministro da Justiça no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, faz parte de um seleto grupo conhecido como revolving doors (portas giratórias). O termo é utilizado pelos americanos para descrever membros do governo que saíram do setor público para trabalhar como lobistas de empresas ou de determinados segmentos. Com quinze anos de experiência no poder, Seligman foi presidente do Incra, secretário executivo do Ministério de Desenvolvimento e presidente do conselho de administração do BNDES. De 2001 a 2014, atuou como executivo da fabricante de bebidas Ambev, ocupando o cargo de vice-presidente de relações corporativas. Coautor do livro Lobby Desvendado, produzido em parceria com o jornalista Fernando Mello, Seligman, hoje professor do Insper, afirma que a atividade de lobista precisa sair das sombras e ser regulamentada, como ocorre nos Estados Unidos. Em entrevista a VEJA, ele explica que esse movimento já está em curso graças à Operação Lava-Jato — que, ao revelar a intensa promiscuidade entre interesses públicos e privados, acabou por iluminar o que há de pior na forma como as empresas interferem em políticas públicas.

Por que o termo “lobby” é associado a uma imagem negativa, uma atividade nebulosa? Ninguém gosta do termo “lobby”, sobretudo quem atua na área. Nos Estados Unidos, por exemplo, havia uma poderosa organização chamada “Associação dos lobistas americanos”, que trocou de nome para “Associação americana de relações governamentais”. Mas, a meu ver, a melhor forma de enfrentar o problema é chamá-lo pelo nome. O que é lobby? É um interesse privado tentando interferir em políticas públicas, o que é legítimo. Há belíssimos exemplos de lobby que melhoraram a sociedade a partir desses interesses.

Por exemplo? Certa vez, o ex-presidente Itamar Franco foi fazer uma visita à Volkswagen e disse: “Adoro Fusca. Por que vocês não refazem o Fusca?”. Isso foi uma piada. O Collor foi eleito dizendo que os carros brasileiros eram carroças. Aí, o Itamar assume o lugar do Collor e pede o Fusca, um carro mais básico. Naquela reunião, o representante da Fiat disse: “O Fusca é uma ideia. Mas por que não há uma política que permita a produção em massa de carros de baixo preço focados no público de baixa renda, para melhorar a frota de automóveis no Brasil?”. Interesse legítimo da Fiat. O Itamar adorou a ideia. Houve redução do IPI de automóveis. O regime automotivo nasce ali. O Fusca voltou ao mercado por um período pequeno. E a nossa indústria se encheu de carros.

Mas nem todo lobby é assim, principalmente em Brasília. Há atividades feitas à sombra, de pautas que a sociedade não conhece. Toda atividade de lobby deveria se pautar no interesse público. O lobby é legítimo quando beneficia três lados: a empresa ou o segmento que está pedindo a mudança, a sociedade, que terá um ganho que tem de ser demonstrado, e a autoridade que se mostra capaz de gerir o interesse público. Ou seja, o lobby tem de agir de acordo com o interesse da maioria. Se uma indústria quer uma modificação num benefício fiscal em nome de seus interesses, ela tem de mostrar o que a sociedade ganha ao abrir mão de uma arrecadação na qual, em tese, o governo está interessado. Quando isso não acontece, o lobby é ilegítimo.

A Lava-Jato revelou uma rede de lobistas que pagavam propinas a políticos para que abrissem os cofres públicos. Isso é regra ou exceção? Eu diria o seguinte: há lobistas corruptos, assim como há jornalistas, professores, engenheiros e outros profissionais cor­ruptos. Não é o lobby que caracteriza a corrupção, mas é a corrupção que se caracteriza como tal. É claro que o lobista, devido ao terreno em que atua, está mais exposto a esse tipo de escândalo. Mas a forma de acabar com isso é regulamentando a atividade. Hoje, os grandes problemas são a falta de luz e a falta de oxigênio. Quando o lobista age em ambientes fechados e insalubres, sem dar transparência ao seu trabalho, há um grande risco de sua atividade ser questionada, de a interferência nos interesses públicos se transformar em corrupção.

O senhor atuou durante mais de quinze anos fazendo lobby. Já foi assediado por algum político que pediu propina? Nunca. Porque trabalhei longo tempo no campo público. Fiquei oito anos no governo do presidente Fernando Henrique. Sou conhecido, porque estive em cargos visíveis no Ministério da Justiça, no Incra e no Ministério de Desenvolvimento. Além disso, trabalhei para companhias listadas na Bolsa de Valores que são muito bem auditadas e têm grande estrutura de compliance, ao contrário de empresas fechadas, nas quais o caixa dois é mais simples.

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A JBS, que pagava caixa dois e propina a diversos políticos, também é listada na Bolsa de Valores… É verdade. Não é porque tem capital aberto que não paga. Mas, quando a empresa é aberta, é mais complicado. Nenhum político tentou me assediar.

Por que a Ambev, onde o senhor foi vice-presidente de relações corporativas, pagou 1,5 milhão de reais ao ex-ministro José Dirceu para que ele resolvesse um problema na Venezuela? Esse contrato assinado com o José Dirceu foi feito comigo. Por isso, conheço bem o caso. A companhia tinha um investimento na Venezuela de cerca de 280 milhões de dólares. E a Ambev na Venezuela era a terceira empresa do mercado, atrás da Polar e da Regional. O ex-presidente Hugo Chávez sempre nos tratava bem. Dizia que não tinha nada contra nós. Entretanto, as condições do mercado venezuelano não eram favoráveis aos nossos negócios. Então, decidimos sair da Venezuela. Queríamos vender ou fechar a companhia. Não queríamos sair brigando. Começamos a tentar um acordo e tivemos de fechar uma fábrica, que foi invadida por trabalhadores. Não conseguimos negociar nem falar com as autoridades. Sugeri procurarmos o ex-mi­nistro José Dirceu.

Por quê? O que eu queria dele era uma ajuda para negociar a saída da companhia. O que ele precisava fazer era me pôr na frente das pessoas para negociar. Fizemos um contrato mensal sem cláusula de sucesso. Ele foi muito importante durante todo o tempo da negociação, que durou mais de um ano. Ele me punha em contato com o ministro do Trabalho venezuelano, por exemplo. Saímos limpíssimos de lá e vendemos a empresa. Nesse processo, José Dirceu foi denunciado no mensalão. O comitê de compliance da companhia se reuniu. Achamos que não era hora de finalizar o contrato. Cancelamos quando ele foi condenado.

No caso da Venezuela, qual era o benefício para a sociedade? Nenhum. Queríamos parar de perder dinheiro. É um direito que tenho. Nesse caso, eu não estava querendo mudança nenhuma em regulamentação. O que podíamos fazer? Podíamos fechar a porta, ir embora para casa e discutir na Justiça. Saímos e fizemos todo o desligamento com base na lei. Todo mundo recebeu todos os direitos. A sociedade venezuelana foi beneficiada de alguma forma. Pagamos os impostos.

Até que ponto é legítimo as empresas pagarem pela influência de um político ou ex-ministro para abrir portas? Na verdade, isso não é um problema. Pode ser um problema se esses processos forem sem transparência. Há uma categoria conhecida como revolving doors (portas giratórias). São pessoas que entram no governo, vão para a iniciativa privada e podem até voltar para o governo. Um estudo sobre essas movimentações mostra que essas pessoas que tinham conhecimento da lógica privada e pública negociavam muito melhor os interesses públicos do que aquelas que não tinham.

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Isso não é tráfico de influência? O ex-ministro José Dirceu era recebido pelas autoridades venezuelanas. Eu, não. Contratei alguém que fazia com que eu chegasse lá. Numa sociedade mais transparente, isso não é preciso. Isso é custo. Por que eu tive de pagar? Porque não adiantava eu ir lá e tentar falar com as autoridades, porque não seria recebido. Nos Estados Unidos, por exemplo, é muito comum contratar a empresa da Madeleine Albright, que foi secretária de Estado, para lhe contar como funciona Washington, quem são as pessoas influentes e como fazer a sua ideia prosperar dentro da democracia. Isso vale para o Brasil também. Quanto mais estruturada for a atividade do lobby, melhor para a sociedade. Defender os próprios interesses permite à empresa que ela seja mais produtiva e competitiva, além de gerar mais empregos para a sociedade e pagar mais impostos. Nos Estados Unidos, ninguém tem vergonha disso.

Como separar o lobby legítimo do ilegítimo? Acredito que no Brasil é possível implementar algumas mudanças, como a publicação das agendas e dos registros dos encontros entre lobistas e autoridades, e demonstrar para a sociedade como ela será beneficiada com uma eventual mudança numa regulamentação. Nos Estados Unidos, o lobby tem ajudado a reduzir a distância das regras do governo para o mundo real. O setor público não acompanha a velocidade das mudanças do setor privado. Nesse ponto, o lobby pode ajudar a aproximar esses dois mundos.

É comum ver políticos recebendo favores de empresas. O lobby permite isso? Acho que isso está bem regulamentado. A meu ver, um convite sistemático é pagamento. Convites esporádicos, não. Não há problema algum em convidar uma vez para um show. Agora, pôr um jatinho privado à disposição de um político é uma situação problemática. Mas hoje está muito claro qual o limite do presente, do benefício. Nos Estados Unidos, a lei anticorrupção estabelece muito bem esses parâmetros. No Brasil, a lei anticorrupção chega perto, mas não tem essa clareza. Acaba que o discernimento é feito pelas próprias empresas. Por exemplo: numa festa de São João, é natural uma patrocinadora convidar o prefeito da cidade onde ocorre o evento. Seria uma indelicadeza não chamá-lo. Mas pegar esse mesmo prefeito e levá-lo para assistir à final de futebol americano seria uma demasia.

Quando o senhor estava no governo, recebeu algum benefício? A primeira vez que estive na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, fui convidado por um banco e aceitei. Eu estava no governo. Hoje, eu não aceitaria. Não acho a coisa ruim. Dada a sensibilidade do tema, hoje eu evitaria.

A Lava-Jato produziu algum impacto na atividade de lobby no Brasil? No dia a dia do Congresso, houve uma mudança significativa: o espaço para aceitar propostas indecorosas diminuiu drasticamente. Antes, você poderia considerar. Hoje, o risco de considerar é brutal. A Lava-Jato desvendou o lobby criminoso e ajudou a aperfeiçoar as discussões de políticas públicas com mais transparência. Reconhecer que o lobby é legítimo e permitir que ele exista é um benefício para a sociedade.

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Publicado em VEJA de 7 de março de 2018, edição nº 2572

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