A saída é o mundo
O economista diz que o setor industrial brasileiro precisa se internacionalizar e que isso só pode ser feito com acesso à tecnologia
A indústria brasileira tem de reduzir sua dependência histórica do mercado interno e se capacitar para se tornar exportadora. Para tanto, será imprescindível a integração com o comércio global, o que significa a abertura do setor para a importação de bens de capital e outros insumos de qualidade e com custo reduzido. É preciso ainda adotar medidas que beneficiem todos os ramos da indústria, como melhorar a infraestrutura e simplificar os impostos, em detrimento de políticas que favoreçam apenas alguns segmentos. No caminho para tudo isso está o acesso à tecnologia de ponta. Esse receituário, que tem a marca da urgência, é indicado pelo economista mineiro Edmar Bacha, 76 anos, um dos pais do Plano Real. Para ele, essa é a única forma de o setor voltar a ter peso na economia nacional — nos últimos tempos, ele perdeu protagonismo para o agronegócio. Coorganizador do livro O Futuro da Indústria no Brasil (Civilização Brasileira, 2013), Bacha, que já foi entrevistado por VEJA em outras ocasiões, sabe do que está falando. É o que se pode constatar a seguir.
Qual a explicação para a crise da indústria nacional? A indústria foi muito bem, historicamente, enquanto o país viveu o auge da substituição de importações. Ela deu uma contribuição enorme para o crescimento fantástico do produto interno bruto (PIB) brasileiro de 1930 até 1980, com aumento médio de 7,5%. Mas o ano de 1980 é um ponto de inflexão. O país enfrentou a crise da dívida entre 1981 e 1983, com uma recessão profunda. A partir daí, foi ladeira abaixo: a indústria deixou de ser o carro-chefe da economia brasileira.
O tamanho do mercado interno também teve influência? A substituição de importações funcionou bem até um ponto em que o Brasil tinha um mercado interno em expansão, a população deixava de ser rural para ser urbana e criava um amplo mercado de serviços. A indústria foi parte desse processo, de uma economia que era fundamentalmente rural e se urbanizou, utilizando toda essa mão de obra que estava disponível na cidade. A partir de um certo ponto, porém, o mercado interno não comportou mais a continuidade do crescimento da indústria. A urbanização atingiu o seu limite. Nessa segunda etapa, a indústria tem de ir para fora, tem de se transformar em exportadora. Isso aconteceu nos países que foram bem-sucedidos na transição de um nível de renda média — estágio que o Brasil alcançou em 1980 — para o de uma nação rica.
Quando exatamente a indústria começou a se perder? Os problemas estruturais na verdade iriam ficar explícitos com a crise da dívida, em 1981. O ponto focal de transição aconteceu em 1973, após o primeiro choque do petróleo. A Coreia do Sul estava na mesma linha que o Brasil, mas fez a transição de modo significativo de uma indústria de substituição de importações para uma indústria exportadora. Hoje, o coeficiente de exportações (o porcentual da produção que é exportado) no PIB da Coreia é de 43%. No Brasil, é de 13%. A indústria brasileira foi incapaz de efetuar essa transição.
“Uma das particularidades do processo de diversificação da economia é que as novas indústrias tenham características de ‘exportabilidade’. E é isso que nunca tivemos”
Por quê? Em vez de buscarmos, como a Coreia do Sul fez, os mercados externos que estavam se expandindo enormemente no pós-guerra, fomos progressivamente nos fechando e insistimos na substituição de importações independentemente dos custos que ela trazia, em termos de redução da produtividade da economia e de elevação do custo de produção de bens de capital. Esse custo aumentou tremendamente no Brasil na década de 70. A indústria nasceu sem nunca ter adquirido algo que Albert Hirschman, grande teórico alemão, diz naquele livro fundamental, Estratégia do Desenvolvimento Econômico: é importante substituir importações, contudo não dá para viver eternamente de exportações agrícolas. É necessário diversificar a economia. Uma das particularidades do processo de diversificação é que as novas indústrias tenham características de “exportabilidade”. E é isso que nunca tivemos. Essa é a razão pela qual o país tem esse processo de definhamento relativo da indústria, porque acabamos encontrando outras formas de crescimento, indo para o Centro-Oeste, desenvolvendo tecnologias que permitiram a ocupação do cerrado e o desenvolvimento de um complexo agromineroindustrial também com a descoberta de Carajás. Aumentamos as exportações, em termos relativos, pela via da agricultura e da mineração modernizadas. A indústria ficou para trás.
É medo da competição ou é um problema de falta de competitividade do país? É um círculo vicioso. Ao mesmo tempo, há um fortalecimento muito grande dos lobbies industriais. E não são só de empresas brasileiras. É um paradoxo do Brasil — que, na verdade, é o sexto destino preferido para as multinacionais, ou era até recentemente. Mas com a característica de que as multinacionais que estão no país também não exportam. Elas vêm aqui para explorar o mercado interno, ao contrário de suas congêneres no resto do mundo, que estão integradas com as cadeias globais de valor, feitas pelas próprias multinacionais. Não é o caso das subsidiárias brasileiras. Elas não usam o Brasil para se integrar internacionalmente, exceto ao Mercosul.
Muitos empresários argumentam que os EUA e o Japão, apesar de serem duas das maiores economias do planeta, têm um porcentual de importação em relação ao PIB relativamente baixo. São exemplos de que dá para ser rico sem escancarar a indústria nacional à concorrência externa? Os Estados Unidos são a maior economia do mundo e, ao mesmo tempo, a segunda maior exportadora. O Japão é a terceira maior economia e o quarto maior exportador. O Brasil é a oitava maior economia do mundo, mas o 26º maior exportador.
O senhor acha que precisamos de uma política industrial? Quais seriam as diretrizes? É preciso pensar em uma reindustrialização que capacite a indústria para ser exportadora, reconhecendo que a única maneira de a indústria ser exportadora é que ela seja também importadora. Precisamos participar das cadeias mundiais de valor, exportando e importando. Isso só pode ser feito com acesso à tecnologia de última geração. Uma vez perguntaram ao presidente da Renault por que ele não fazia carros tão bons aqui como na Europa. Ele respondeu: “Deixe-me importar peças da Europa que eu faço’’. A saída é tecnologia, escala, especialização e concorrência. Isso significa integração com o comércio internacional. A política industrial tem de propiciar maior integração e dobrar a participação do comércio exterior no PIB.
E qual o peso do chamado custo Brasil? A proposta que tenho apresentado baseia-se em três pilares. O primeiro é atacar o custo Brasil: infraestrutura e impostos. O segundo é trocar a proteção tarifária e outras que existem, como os subsídios, por exemplo, pela do câmbio. A melhor proteção que existe é a cambial, pois ela é horizontal e não privilegia com tarifas maiores os que são menos eficientes. O terceiro é buscar acordos internacionais.
O que é a proteção cambial? Se o país abrir a economia, vai importar mais. Se importar mais, a demanda por dólares vai aumentar. Se houver uma demanda maior por dólares, o câmbio vai ser mais desvalorizado. Tudo bem, é isso mesmo que a gente quer. Eu até anunciaria de antemão um programa de redução de tarifas de importação por quatro anos, para que o mercado financeiro antecipe as importações que vai haver no futuro. Para que o país possa ter um câmbio que ajude, junto com acordos comerciais, a expandir as exportações. Além disso, com o programa de redução tarifária de importação, será possível importar insumos que vão permitir à indústria produzir bens de qualidade para exportação, como faz a Embraer.
“A natureza da mobilidade mudou. Ela se manifesta de diferentes formas, como o movimento negro, o movimento das mulheres. A desigualdade salarial entre homens e mulheres está caindo”
O Brasil tem dificuldade para descartar os perdedores. O senhor acha que esse é outro ponto que o país precisa encarar? Sem dúvida. Dani Rodrik, que é o grande teórico da indústria, professor da Harvard, diz que uma boa política industrial consiste não em escolher os vencedores, e sim em saber descartar os perdedores. Esse é o grande teste da capacidade de avançar. É o que o austríaco Joseph Schumpeter já falava sobre a característica do capitalismo que avança: a criação destrutiva ou a destruição criadora. Nesse caso seria a destruição criadora: descartar os perdedores para que os vencedores possam de fato vencer.
Em entrevista a VEJA em 1983, o senhor confessava certa surpresa com o fato de que, apesar da extrema desigualdade no país, havia pouco conflito. O senhor achava que um desastre estava prestes a acontecer? Naquela época, a explicação era que, apesar da desigualdade, havia uma grande mobilidade social e os pobres de hoje não necessariamente seriam os pobres de amanhã. Havia a migração do campo para a cidade, que oferecia oportunidades de emprego de qualidade muito maior. Hoje a questão é outra. Primeiro, não ocorre mais migração do campo para a cidade. A migração que poderia existir agora é do setor informal para o formal. É o que estava ocorrendo até a crise de 2014. A natureza da mobilidade mudou. Ela está se manifestando das mais diferentes formas, como o movimento negro, o movimento das mulheres. A desigualdade salarial entre homens e mulheres está caindo. De algum modo a sociedade continua a responder. A economia continua com certo dinamismo de troca de posições que mantém essa expectativa de que, apesar de a minha situação estar ruim hoje, a dos meus filhos estará melhor amanhã.
Publicado em VEJA de 19 de setembro de 2018, edição nº 2600