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A revolta da vacina

A febre amarela levou a população em massa aos postos de saúde, no avesso do que ocorreu no início do século XX

Por Giulia Vidale Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Natalia Cuminale Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Thaís Botelho Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Maria Clara Vieira Atualizado em 31 jan 2018, 16h34 - Publicado em 25 jan 2018, 06h00

Em 1903, o presidente Rodrigues Alves enviou um ofício ao Instituto Pasteur, de Paris, solicitando a indicação de um competente bacteriologista-sanitarista para erradicar a febre amarela dos centros urbanos. Recebeu a resposta de que “o melhor especialista está aí no Brasil, Oswaldo Gonçalves Cruz”. Inaugurava-se, naquele momento, uma decisiva página da história da saúde pública brasileira. “Deem-me liberdade de ação e eu exterminarei a febre amarela dentro de três anos”, disse o então jovem médico, de apenas 30 anos. E assim foi, ainda que ao preço de uma revolta popular, a Revolta da Vacina, de objeção à obrigatoriedade da imunização contra a varíola e da inspeção domiciliar — considerada uma violação da propriedade privada. Rodrigues Alves, que perdera uma filha para a febre amarela, brigou por Oswaldo Cruz, que virou piada, inspirou tema de marchinha de Carnaval (“não embarco na canoa que a vacina me persegue / vão meter ferro no boi ou nos diabos que os carregue”), mas venceu. Corte-se para 2018, abruptamente, e, mais de um século depois, vive-se uma revolta ao avesso, a da população brasileira varando madrugadas em filas, acampada em tendas de náilon, até mesmo ameaçando invadir os postos de saúde, como aconteceu na Zona Leste de São Paulo, à procura de vacinação.

O que houve entre um momento e outro de pânicos distintos — o da epidemia sem vacina, no início do século XX, com a luta sanitarista de Oswaldo Cruz, e o da vacina sem epidemia, agora — ajuda a mostrar como a desinformação e a inépcia foram capazes de piorar o que jamais poderia ter piorado, com o atual pavor de eclosão de uma doença que, em sua versão urbana, foi erradicada do Brasil em 1942. Por que, então, voltamos a ter medo da febre amarela? Em que momento se rompeu a cadeia de tranquilidade que nos trouxe até aqui e, depois de uma sucessão de erros, fez voltar a sombra ameaçadora de uma doença tão antiga, tão fora de moda?

Estudo do mosquito – Profissionais vinculados à Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo analisam os transmissores da febre amarela em Mairiporã (Rafael Roncato/Folhapress)

“É um retrocesso sem precedentes na saúde do Brasil”, diz o infectologista Artur Timerman, presidente da Sociedade Brasileira de Dengue e Arboviroses. De 1980, quando o governo federal começou a notificar os casos da doença, a 2016, o ano com o maior número de mortes por febre amarela foi 2000, com quarenta ocorrências. Nos últimos seis meses, já houve 53 mortes de pessoas contamina­das pelo vírus transmitido por mosquitos infectados, os Haemagogus e os Sabethes, que circulam em regiões de mata. Um momento crucial de descaso pode ser identificado entre julho de 2016 e novembro de 2017, período em que morreram mais de 500 macacos só no Estado de São Paulo. A mortandade dos animais foi subestimada pelas autoridades e, por consequência, também pela população, desavisada.

A morte de primatas em decorrência de febre amarela já indicava a possibilidade de surto. Era a hora certa para iniciar um programa de vacinação em médio e longo prazos que abrangesse toda a população das cidades contíguas às áreas onde foram registrados os casos. Não foi o que ocorreu. Diz Luciano Pamplona, biólogo epidemiologista da Universidade Federal do Ceará: “A morte de macacos funciona como um marcador, uma espécie de alerta de que a febre amarela está circulando por ali”. Há mais risco de contágio para quem estiver nas redondezas, com a presença de mosquitos contaminados. Quando uma família de bugios morre, os veterinários investigam a causa, os biólogos pesquisam os mosquitos e, assim, desenha-se o quadro do que está acontecendo naquela determinada região (na terça-feira 23, o governo do Estado de São Paulo fechou temporariamente as portas do Jardim Zoológico, onde se constatou a morte de um bugio). Se os casos são confirmados, a indicação é vacinar rapidamente 90% das pessoas que estão em um raio de 50 quilômetros do local original de infecção. Se tal medida tivesse sido tomada, dificilmente chegaríamos às estatísticas atuais. Eis o resultado da inépcia governamental.

Estudo do macaco – Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, fazem autópsia em macacos assassinados pela desinformação (Pedro Teixeira/Agência O Globo)

Há que considerar, ainda, outra causa recente de estragos — o desordenado crescimento urbano próximo ao hábitat dos macacos. A febre amarela circula naturalmente nas florestas. O vírus passeia em relativa harmonia entre os primatas e os mosquitos. Não se deve exterminá-los das matas. É um ciclo, natural, que continuará existindo. O mosquito pica o macaco, que, eventualmente, morre. Ao longo dos anos, essas áreas foram abraçadas por construções sem planejamento algum. O desmatamento altera as regiões de mata e interfere nas condições de equilíbrio ecológico. Outra hipótese seriam as mudanças climáticas. Mais chuvas significam mais mosquitos circulando. Se os macacos estão mortos e os mosquitos precisam se alimentar, os insetos tendem a descer da copa das árvores para recorrer ao sangue humano. As grandes epidemias ocorrem em zonas densamente povoadas de gente e de mosquitos, e onde a maioria das pessoas tem pouca ou nenhuma imunidade, por não estar vacinada. Nessas condições, o mosquito pode picar um ser humano contaminado e transferir a doença para outro ser humano. Seria a porta de entrada para a febre amarela urbana.

Como evitá-la? Um caminho, preliminar e fundamental, é compreender nos detalhes os mecanismos de ação dos vírus que contaminaram os macacos. Para isso, no ano passado, um grupo de pesquisadores da Superintendência de Controle de Endemias (órgão vinculado à Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo) especializados no estudo de mosquitos transmissores de doenças passou a se dedicar à febre amarela. Com arsenal que inclui gelo seco e nitrogênio líquido, eles se embrenharam nas matas e subiram em árvores em busca do inseto — uma atividade que ganhou impulso nos últimos dias.

Produção acelerada – Agora em 2018, o fabricante Bio-Manguinhos, do Rio de Janeiro, antecipou a entrega da vacina que só seria feita em fevereiro (Fabio Medeiros/Bio-Maguinhos/.)

Mas nada é mais decisivo, insista-se, do que a vacinação da população, uma medida cautelar — e, felizmente, a febre amarela tem uma vacina para evitar epidemias. A última grande epidemia urbana em território brasileiro ocorreu em 1929 na cidade do Rio de Janeiro. Isso significa, portanto, que, se as pessoas estão sendo picadas por mosquitos prevalentes em matas, é porque os seres humanos invadiram os territórios silvestres — não o contrário. É clara a orientação no Brasil: qualquer pessoa que viaje para locais determinados como bolsões de risco deve se vacinar. Há casos em que a orientação não foi seguida à risca. De acordo com dados da Organização Mundial do Turismo (OMT), braço das Nações Unidas, o ecoturismo é a modalidade que mais cresce no mundo, com um aumento de 25% ao ano, contra 7% do turismo convencional. Mesmo para passear, as pessoas frequentam, sem proteção, um ambiente que pode representar perigo para a saúde. Ao longo dos últimos dez anos, era comum sobrarem estoques de vacina nas clínicas particulares e públicas, mesmo em áreas de risco. Diz Geraldo Barbosa, presidente da Associação Brasileira de Clínicas de Vacina: “Muitas doses eram jogadas no lixo”.

Sem a devida orientação, a população deixou de recorrer à vacinação. Estima-se que cerca de um terço dos brasileiros esteja imunizado contra a febre amarela. Considerando que o Brasil tem 210 milhões de pessoas, 70 milhões foram vacinados. Para imunizar a população dos estados onde estão ocorrendo os surtos, especialmente São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia, seriam necessários 50 milhões de doses. Diante do salto no número de casos, os especialistas passaram a recomendar a vacinação universal, para todos, à exceção das pessoas com restrição médica, como aquelas com o sistema imunológico comprometido e os bebês com menos de 6 meses. Idosos, gestantes e mulheres que estão amamentando precisam de orientação médica.

PÁGINA VIRADA? – Ilustração sobre o perigo da doença no Carnaval de 1876 (à esq.). Longa fila de cidadãos à espera de imunização contra a febre amarela em 1938 — quatro anos depois, em 1942, seria registrado o último caso urbano brasileiro (Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz/.)

Para a cobertura vacinal deste ano, o Ministério da Saúde comprou nacionalmente 48,3 milhões de unidades da vacina. É pouco para um país tão grande. Para imunizar apenas a região metropolitana de São Paulo teriam de ser aplicados 32 milhões de doses. Mais: esse montante não chega de uma só vez aos postos. A produção da vacina é lenta e complexa. Seu único fornecedor é o instituto Bio-­Manguinhos, do Rio de Janeiro. O que se tem feito é acelerar a fabricação e a distribuição. A produção de 2,6 milhões de unidades de janeiro deveria ser entregue, normalmente, apenas no fim de fevereiro. O volume de 2,4 milhões destinado para março será antecipado em um mês. A aceleração só se tornou possível porque o laboratório interrompeu por um mês a produção da vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola), oferecendo, portanto, mão de obra e maquinário para a fabricação das doses contra a febre amarela. Deverá interromper neste ano também a exportação da vacina para países da África e da América do Sul.

Tudo somado, a conta ainda não fechava, o que fez o Ministério da Saúde decidir-se pelo fracionamento das doses. A estratégia, que começou em 25 de janeiro, foi inspirada em medida semelhante tomada no combate ao surto da doença em Angola e na República Democrática do Congo em 2016 — onde os casos foram controlados. O fracionamento consiste na aplicação de uma dose de 0,1 mililitro da vacina, o correspondente a um quinto da dose padrão de 0,5 mililitro. Com isso, uma única dose passa a imunizar cinco pessoas. A eficácia é a mesma da integral. A diferença está no tempo de imunização: a dose fracionada tem validade de oito anos (a tradicional dura a vida toda). Essa é uma medida emergencial e eficaz. “Se fosse preciso hoje vacinar todos os brasileiros que não foram imunizados antes, nós poderíamos fazê-lo. Não há risco de desabastecimento”, assegura o ministro da Saúde, Ricardo Barros.

A VEJA, o secretário estadual de Saúde de São Paulo, David Uip, afirmou que até o fim do ano toda a população do estado será vacinada — e não apenas quem mora próximo a áreas de risco. As filas ainda se estenderão, mas, com as vacinas fracionadas, é muito possível que o pânico desmedido recue e o número de mortos se reduza drasticamente. É inadmissível estarmos preocupados com um mal que sumira do mapa, e num país reputado por seu incentivo à vacinação. A doença da desinformação autorizou os brasileiros a sucumbir a temores infundados. O programa nacional de imunizações é uma referência global. O Brasil tem a segunda maior cobertura de imunização, com 99,7% de alcance. Perde apenas para a China, com 99,9%. A exceção, percebe-se, é a febre amarela. Não podemos retroceder vergonhosamente ao início do século XX, antes de Oswaldo Cruz.

Publicado em VEJA de 31 de janeiro de 2018, edição nº 2567

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