A patrulha passa, a arte fica
Sem saborear as uvas, a raposa de Esopo censura a parreira
O inglês G.K. Chesterton certa vez comparou a noite a um monstro de mil olhos; nos tempos que correm, não falta quem viva sob a égide de certa monstruosidade que a tudo enxerga, embora o faça de forma bem menos poética: a patrulha. “Patrulha ideológica” é o nome completo dessa divindade moderna, embora a ideologia que a nutre seja uma eterna variável: o que une seus seguidores é o ímpeto de policiar a estética alheia. À direita, à esquerda, por cima, por baixo, de soslaio, de través, o patrulhamento de obras, pensamentos e até meras interjeições tornou-se um hobby universal, entusiasmando em igual medida batalhões fervorosos, e às vezes opostos, de legisladores mentais. Para esses sortidos zelotes, pouco interessa se um livro é razoável ou esplêndido: importa saber o que o autor achou do impeachment, ou de que maneira sua obra pode ajudar a destruir, salvar ou remendar a civilização judaico-cristã etc. Poderíamos definir o ethos patrulheiro como o filistinismo que não ousa dizer seu nome: incapaz de saborear as uvas, a raposa de Esopo põe-se a censurar a parreira. Ou, em formulação menos divertida: o patrulhismo é a forma atual do velho problema do utilitarismo na arte.
“Toda arte é verdadeiramente inútil”, escreveu famosamente Oscar Wilde no prefácio de O Retrato de Dorian Gray. Por “inútil”, Wilde não queria dizer “imprestável”: ao contrário, sugeria que o valor específico da arte está além de sua utilidade prática. Várias objeções podem ser feitas à frase de Wilde; uma delas é que infinitas obras foram concebidas, sim, com alguma utilidade em mente. A Morte de Marat, pintada por Jacques-Louis David em 1793, retrata o líder jacobino em sua banheira, recém- apunhalado, ainda com pluma e papel à mão. O objetivo específico da obra era defender o regime de Robespierre; não fosse por essa utilidade, a pintura não existiria. Ocorre, porém, que a serventia imediata de uma obra tende a se esvanecer com o tempo; o que resta — o que deveria restar — é sua enigmática fascinação. Os méritos profundos da arte se tornam mais claros à medida que sua utilidade se desfaz: se hoje me ponho diante de A Morte de Marat, sua antiga função de propaganda não deixa de me interessar, mas tampouco me fará amá-la ou detestá-la. O que permanece vivo é a mistura de serenidade e morbidez, de piedade e horror que exala da obra — igualmente acessível a jacobinos e girondinos de todas as épocas e lugares.
Essa propriedade misteriosa é o que o patrulheiro quer negar à arte. Ele pretende obrigá-la a ser evidentemente útil; e, caso não veja utilidade óbvia, desconfia que haja outra: secreta, conspiratória, maligna. Não desconfia o patrulheiro que sua inquisição é, ela própria, inútil, e que o tempo sempre dá razão àquilo que o derrota e o transcende. Sim, toda obra se conforma, de alguma maneira, às exigências de sua época; mas as melhores são as que rasgam o tempo como flechas e ameaçam — com piedade, horror e outras coisas teimosamente humanas — o inconcebível futuro.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2017, edição nº 2542