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“A minha parte eu fiz”

Maior nadador brasileiro de todos os tempos, Cesar Cielo reflete sobre a corrupção no esporte nacional, sua ausência na Olimpíada do Rio e seu futuro

Apresentado por Atualizado em 31 jan 2018, 15h18 - Publicado em 5 jan 2018, 06h00

Após perder a vaga para a Olimpíada do Rio, em 2016, o paulista Cesar Cielo, 31 anos, 1,95 metro de altura e 2,04 metros de envergadura, decidiu dar um tempo nos treinos e voltar-se aos estudos. Terminou um curso de coaching nos Estados Unidos, em busca de um rumo para depois de guardar os óculos e a touca. Mas, como ele próprio admite, será difícil ficar longe das piscinas. “Apesar de a natação não ter me dado um diploma, tenho vinte anos de alto rendimento nas costas.” A lista é espetacular: ex-dono da melhor marca do mundo nos 100 metros no estilo nado livre, atual recordista dos 50 metros, um rosário de medalhas, entre as quais uma olímpica de ouro e duas de bronze. O campeão agora deseja compartilhar as conquistas em clínicas pelo país e dedicar-se às mais de 200 crianças que nadam em seu instituto. Em conversa à beira da piscina de seu clube, o Pinheiros, em São Paulo, o nadador falou sobre corrupção dentro do esporte, doping e como manter a natação brasileira à tona.

Coaracy Nunes, Ricardo de Moura, Carlos Arthur Nuzman. Você apertou a mão de todos esses cartolas várias vezes durante sua carreira. Como foi saber que estão presos, acusados de corrupção? Foi muito estranho vê-los assim, com a Polícia Federal atrás deles. Tive muito contato com todos, fazendo reuniões, olhando no olho, em muitos telefonemas. Por isso a decepção é grande quando se percebe que estavam ali havia quase trinta a nos, freando a evolução do esporte. Não dá para ignorar o que fizeram de ruim. Mas também não dá para ficar muito surpreso. Lembro-me de quando ganhamos o direito de sediar a Olimpíada. No dia seguinte, já falávamos em tom de gozação: “Nossa, imaginem quanto será roubado, desviado”. Pois é, na próxima será preciso levar mais a sério a brincadeira.

Depois de todos esses escândalos, o que sobrou da natação brasileira? O modelo que existe hoje é impraticável financeiramente. Sobretudo para os clubes. Estamos parados na virada dos anos 2000. Vou participar de um campeonato e penso comigo mesmo: “Que evento chato!”. Poxa, não tem nem música tocando. Ninguém vai assistir aos jogos de tênis do Aberto dos Estados Unidos apenas pelo que está rolando na quadra. As pessoas vão pelas atrações, pelos bares ali no meio. A chave é pensar no esporte como entretenimento. Tenho várias ideias de como tornar a natação mais atrativa para o público. Do jeito que as coisas estão, a tendência é acabar. A cada ano que passa vemos um número decrescente de associados nas federações, os campeonatos cada vez mais enxutos. É preciso encontrar uma fórmula para reverter essa situação.

Cedo ou tarde, você vai se aposentar. O Brasil aproveitou sua passagem de sucesso pelas piscinas? De 2008 a 2014, todo ano eu estava ali levando uma medalha, quase sempre de ouro, para o meu país. A minha parte eu fiz. Agora, não dá para deixar de notar o que faltou. A gestão passada viveu o meu auge, uma medalha de ouro olímpica e três títulos mundiais. Ela desperdiçou a oportunidade de usar meu exemplo, não soube trabalhar essa imagem. Até hoje a natação sofre para conseguir atenção. A Etiene Medeiros é campeã mundial dos 50 metros no nado de costas e tem um salário mais ou menos igual ao de qualquer nadador profissional. Deveria ser muito maior.

O que precisa mudar? Muito se fala em eleição direta. Para mim, a forma de escolha dos dirigentes é uma questão menor. Pouco importa se o regime no Brasil é presidencialista ou parlamentarista. Carecemos, na verdade, de um plano de metas palpável e boas práticas de governança. É preciso transformar a Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA) numa empresa, gerar lucro. É inadmissível ver o caixa da entidade praticamente zerado mesmo com todos os recursos que entraram nos últimos anos. Se o dirigente que está no comando não alcançar as metas preestabelecidas, que venha o próximo.

Como você avalia o uso de recursos públicos no esporte nacional, hoje praticamente comandado pelo Comitê Olímpico do Brasil, o COB? Para mim, o Ministério do Esporte deveria estar de braços dados com o da Educação. Esse é o nosso erro. Até hoje, esporte no Brasil é sinônimo de competição. Sou filho de uma professora de educação física. Hoje, o trabalho feito na maioria das escolas é péssimo. Jogam uma bola ali para a molecada e acabou. A responsabilidade pelo alto rendimento está toda nas costas do COB, o ministério perde até o seu motivo de ser, pois não atua nem nessa área, nem na outra, estrutural. Esporte na escola não é futebol, nem vai dar dinheiro. É educação.

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Você assistiu às provas de natação da Rio 2016? Vi algumas, sim. Vi a prova do Thiago Pereira nos 200 metros medley, vi os 50 metros no nado livre.

Doeu ser mero espectador? Não tanto quanto as pessoas imaginam. Competição é assim mesmo. Não fiquei decepcionado por não estar lá. Era o justo, e é assim que vejo o esporte de alto rendimento. Na natação não existe critério subjetivo. O que manda é o tempo, quem bate na placa primeiro. Mas, vai, admito: é difícil ver que o tempo que ganhou os 50 metros livre (21s40) eu tinha superado lá em 2013.

Foi o pior momento de sua carreira? Nada. O pior foi em 2013, quando acordei da cirurgia nos joelhos. Lembro que estava na cama, ainda meio grogue, e chegou o médico para me contar que tinha dado tudo certo. Aí ele pediu que eu levantasse a perna. Cara, juro que tentei. Fazia a maior força do mundo e não ia. Então veio o medo: “Será que vou conseguir nadar de novo?”. Aí você começa a pirar. Fiquei uns três dias pensando: “Que m… que eu fui fazer? Ferrou…”. Quando caí a primeira vez na água, disse ao meu fisioterapeuta: “E se eu te falar que não sei mais pular na piscina?”. Isso assusta muito.

A acusação de doping em 2011 deixou marcas profundas? Se tem uma coisa que me deixará feliz ao parar de nadar é não receber mais nenhuma carta da Federação Internacional de Natação (Fina). Naquele episódio, quando abri o envelope e vi o resultado, pensei: “Está errado”. Foi um susto tão grande que até hoje, quando chega um envelopinho da Fina, meu coração para.

O que você sente quando ouve um comentário maldoso, como o do ex-nadador francês Amaury Leveaux, levantando suspeita sobre seus feitos? Infelizmente, o que aconteceu em 2011 dá conteúdo a esses caras. Mas olhei para o livro (as acusações de Leveaux estão em Sexo, Drogas e Natação, sua autobiografia) e dei risada. Leveaux sabe como eu o venci. Durmo tranquilo todos os dias com a minha performance, sei quão genuíno e legítimo fui em toda a minha carreira. Se cheguei até aqui, não é possível que tenha sido capaz de enganar a todos por tanto tempo.

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Lance Armstrong foi. Mas o ciclismo é um caso à parte. É inegável que o doping é um problema seriíssimo, para o qual não tenho uma solução. Só sei que liberar geral não é a resposta. Por isso, é preciso testar mais gente. É fácil só testar o Phelps, o Bolt, os campeões. Esses caras já provaram que são fora de série. Mas e o terceiro ou o quarto colocados? Às vezes, era para esse cara estar em décimo ou até mais embaixo. Mas ele não é testado. E está ali roubando uma vaga de quem compete limpo. Testar só o cara que chega na frente é quase uma justificativa política.

É desolador ver a piscina do Parque Olímpico da Barra, onde você confirmou sua desclassificação para os Jogos do Rio, ter sido desmontada sem que um brasileiro sequer tenha dado um mergulho após o evento? É muito frustrante. Quero levar uma das piscinas que foram usadas nos Jogos para Santa Bárbara d’Oeste e usá-la no meu projeto social. Neste momento, estou escalando a montanha de burocracia que envolve o poder público. Até cheguei à pessoa que tem a caneta na mão, mas ouvi: “Não dá para ceder a piscina, é um legado da cidade”. Muito bem. O legado está guardado em caixas. Resumindo, é muito, muito frustrante. Morei durante sete anos nos Estados Unidos, e lá tudo é muito mais prático. Os americanos pensam assim: “Temos uma piscina ociosa aqui, para onde devemos mandá-la?”. Aqui, uma dessas piscinas da Olimpíada foi para Manaus, para preencher um buraco que estava esperando por uma estrutura desde 2008. Será que eles precisavam realmente de um equipamento tão sofisticado? Com todo o respeito, é o mesmo que usar uma Ferrari num campeonato de rali.

Você identificou o que deu errado na sua preparação para a Rio 2016? Meu problema foi de cabeça. Eu estava num momento em que não via mais desafios na minha carreira. Percebi isso em 2014, no Mundial de Piscina Curta em Doha, no Catar. Foi a primeira vez que subi ao pódio e pensei: “Poxa, legal, campeão mundial… De novo”. Isso é triste para um esportista. Tira a grandeza do feito, o gostinho da superação. Tenho a sensação de que todas as vezes em que me propus de verdade a atingir um objetivo consegui tirar água de pedra, como foi nesse último semestre. Disse a mim mesmo que não deixaria que meu fim de carreira fosse dessa forma. Em cinco meses de treino, peguei uma medalha de prata (com o revezamento 4 x 100 metros de nado livre) e cheguei à final dos 50 metros no Mundial de Budapeste.

Ainda acredita ser possível nadar tão rápido como nos seus melhores anos? Estou indo passo a passo. Meu foco agora é nadar os 50 metros no nado livre no tempo que fiz em 2013 (21s32), no Mundial de Barcelona. Coloquei como da­ta-limite para alcançar esse tempo o mês de dezembro de 2018. Outra meta que estabeleci, e já estou cutucando os caras para isso, é o ouro do revezamento no Mundial de Piscina Curta. Falei que, se nos juntarmos com a mesma intensidade, ganharemos o 4 x 50, o 4 x 100, bateremos até novo recorde mundial. Mas a preparação para isso tem de acontecer desde agora. No próximo Natal, vou meditar sobre esse meu futuro como praticante da natação. Mas uma coisa que já defini é que a piscina fará parte da minha vida toda.

Já sabe o que vai fazer quando chegar a hora de parar? Com relação à parte financeira, estou relativamente tranquilo. Fiz um plano bacana quando me encontrava no auge da carreira, que me dá muitas opções. O que devo priorizar é a conclusão do curso universitário. Também venho desenvolvendo uma linha de produtos infantis de natação. Outra parte importante desse futuro são as clínicas. Mas quem pegar a calculadora vai se espantar com o preço baixo que estou cobrando. Meu objetivo não é ficar milionário. O Instituto Cesar Cielo, que é o meu trabalho social com nú­cleos na capital e no interior paulista, está indo para o quinto ano com mais de 200 garotos nadando. Penso ainda na realização de alguns campeonatos, para promover o esporte.

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Publicado em VEJA de 10 de janeiro de 2018, edição nº 2564

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