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A Justiça burlesca

Tentativa frustrada e rocambolesca de libertar Lula expõe comportamento errático do Judiciário brasileiro e alerta para risco do voluntarismo nos tribunais

Por Roberta Paduan, Laryssa Borges e Thiago Bronzatto
Atualizado em 13 jul 2018, 06h01 - Publicado em 13 jul 2018, 06h00

Numa das mãos, a estátua da Justiça segura a balança, símbolo do equilíbrio. Na outra, um ioiô. Um dos muitos memes que circularam pela internet depois da sequência de acontecimentos provocada pela tentativa frustrada de petistas de libertar o ex-presidente Lula, o desenho reflete a perigosa imagem que a Justiça está consolidando. O episódio do ioiô refere-se ao “lula-­preso-lula-solto”, deflagrado pelo desembargador Rogério Favreto no domingo 8. Pode ter sido o evento mais ridículo protagonizado pela Justiça, mas está longe de ser o único. Em agosto passado, num período de menos de 24 horas, o empresário Jacob Barata, do ramo de transporte rodoviário no Rio de Janeiro, foi solto, depois foi preso e depois foi solto novamente. Há divergências intestinas dentro de um único tribunal — como o Supremo Tribunal Federal (STF), cujas turmas tomam decisões diametralmente opostas — e divergências igualmente viscerais entre tribunais diferentes. É carnavalização.

Com o objetivo de entender como o Judiciário brasileiro se transformou de terceiro poder da República em musa inspiradora de memes jocosos, VEJA ouviu mais de uma dezena de advogados, magistrados, procuradores e juristas. Em todos os diagnósticos, um mesmo elemento foi apontado como causa principal da esquizofrenia que vem acometendo a Justiça no país: o voluntarismo crescente de seus magistrados — que passam a decidir com base não no que está escrito na lei, mas no que lhes parece justo.

Baile de contradições - Criado para garantir certezas, o Judiciário virou depositório de sentenças divergentes (Caio Borges/.)

Como o parâmetro de justiça varia de pessoa para pessoa, instala-se a confusão. “Quando não é a lei que define claramente o que é justo, o conceito de justiça passa a se aproximar mais e mais das convicções do julgador”, afirma Floriano de Azevedo Marques Neto, diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Nas vezes em que isso ocorre, o Judiciário funciona como um arquipélago onde cada juiz é uma sentença — e as sentenças podem ser contraditórias.

O voluntarismo judicial começou a ganhar espaço no Brasil no fim da década de 80. Até então, imperava a corrente formalista, que segue a letra da lei, abrindo pouco espaço a interpretações mais flexíveis. A partir dos anos 1990, a corrente identificada por dois palavrões — neoconstitucionalista ou consequencialista — fortaleceu-se e buscou a “aplicação da justiça”, muitas vezes à custa do não cumprimento de determinados ritos e da invasão da competência de outros órgãos. De acordo com o ministro aposentado do STF Eros Grau, se o desembargador Favreto tivesse seguido a letra fria da lei, não se teria promovido a palhaçada do domingo. “A primeira coisa a fazer, naquele caso, seria declarar-se impedido, dadas as relações que ele possuiu com o Partido dos Trabalhadores e com o governo do ex-presidente”, afirma Grau. Favreto passou toda a carreira em administrações petistas e durante o governo Lula foi subordi­nado do então ministro José Disceu.

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O exemplo vem de cima - O racha de opiniões no STF fomenta o voluntarismo nas decisões de instâncias inferiores (Gustavo Miranda/Agência O Globo)

No episódio de domingo, é difícil achar quem estava certo. O desembargador Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), armou uma manobra canhestra ao julgar que Lula, sendo pré-candidato, precisava ficar livre para fazer campanha — e sua pré-candidatura, entendeu Favreto, era um “fato novo”. Trata-se de uma decisão sem pé nem cabeça, destinada simplesmente a beneficiar seu ex-correligionário Lula. Assim que recebeu a decisão de Favreto de libertar o petista, por volta das 9h30 da manhã de domingo, a Polícia Federal pisou em falso. Entrou em contato com o juiz Sergio Moro para receber instruções sobre o que fazer. De férias em Curitiba, Sergio Moro disse aos policiais que aguardassem e não tomassem nenhuma atitude até ordem expressa do relator da Lava-Jato em segunda instância, o desembargador João Pedro Gebran Neto. (Ao contrário do que chegou a ser divulgado, não há veto a que um juiz despache em férias. Pelo contrário: em 2008, o ministro do STF Marco Aurélio Mello decidiu que não havia perda de jurisdição durante o gozo do benefício, em decisão respaldada de forma unânime pela Primeira Turma da Corte.)

Deu-se, portanto, o seguinte: a Polícia Federal consultou um juiz de primeira instância para saber se cumpria uma ordem de um juiz de segunda instância. A ordem do juiz de segunda instância era uma tremenda patacoada, mas onde vamos parar se, agora, agentes federais decidirem, eles mesmos, se cumprem ou não uma sentença? Moro, Gebran e o presidente do TRF4, Carlos Eduardo Thompson Flores, então passaram parte do dia ao telefone discutindo o que fazer. Nessas conversas, “moleque” foi a alcunha mais amena recebida por Favreto. No início da noite de domingo, Thompson Flores pôs um ponto final no caso (veja a cronologia dos fatos no quadro abaixo).

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Com o assunto encerrado, o deputado Wadih Damous, um dos três petistas que organizaram a palhaçada de domingo, reuniu-se com o ex-presidente Lula para contar o desfecho da história. “A Justiça se tornou uma pirâmide invertida: a base manda mais que o topo”, disse o ex-presidente, referindo-se ao poder de influência de Moro. Lula foi informado da estratégia da tropa petista poucos dias antes. Desconfiava das chances de sucesso. “Mas se colar, colou”, disse na ocasião o ex-presidente. O princípio do “se colar, colou” é um dos efeitos colaterais da judicialização da sociedade — por sua vez, um fenômeno crescente para o qual a Constituição de 1988 deu sua contribuição. Ao ampliar a pauta de direitos a ser assegurados pelo Estado — como o direito à educação, à saúde e à moradia —, sem considerar a existência de recursos para que tais garantias se transformassem em realidade, a Carta acabou por estimular conflitos que desembocam no Judiciário e, muitas vezes, no STF. Atualmente, há 80 milhões de ações em andamento no país, o equivalente a um processo para cada três brasileiros. As transformações na economia e no comportamento da sociedade também aumentaram o grau de complexidade das questões a ser decididas pelos juízes. O resultado disso tudo foi um tremendo aumento de deveres — e, consequentemente, de poderes dos magistrados.

A desmoralização da Justiça é uma ótima notícia para os interesses do ex-presidente Lula e, também, do deputado Jair Bolsonaro, do PSL. Para os corruptos em geral, e para Lula em particular, a desqualificação do Judiciário vitamina sua lorota segundo a qual os juízes não são imparciais e equilibrados, e por essa razão estão promovendo uma caçada implacável ao petista. No caso de Bolsonaro, toda trapalhada judicial reforça sua proposta de colocar mais dez ministros no Supremo Tribunal Federal, que, segundo ele, tem feito um péssimo trabalho. Os novos juízes seriam “dez isentos”, disse o presidenciável. Não é por acaso que os maiores beneficiados com a subversão da Justiça são os nomes acantonados nos extremos do espectro ideológico. Lula e Bolsonaro, nesse sentido, estão irmanados no propósito antidemocrático e desordeiro de ceifar a credibilidade da Justiça para, assim, manipulá-la com mais facilidade. Uma Justiça prestigiada só interessa a quem está disposto a respeitar suas decisões — sejam elas quais forem. Quem quer fugir de seu domínio, como Lula, ou quer manietá-la a seu favor, como Bolsonaro, ganha muito ao vê-la achincalhada.

A cultura jurídica brasileira, que considera o juiz como intérprete único da lei, cuja expressão máxima é o ditado “cada cabeça uma sentença”, ajudou a fertilizar o terreno para os juízes mais dados ao voluntarismo. É uma realidade muito diferente da dos países anglo-saxões, nos quais a tradição é buscar sentenças das cortes superiores para uniformizar as decisões em todas as instâncias. O próprio ex-presidente Lula e o ex-ministro José Dirceu, ambos condenados em segunda instância, tiveram sorte diferente no STF quando reivindicaram permanecer em liberdade até que seus processos atingissem o estágio de trânsito em julgado. Dirceu, cujo processo era relatado por Dias Toffoli, conseguiu sair da cadeia. Lula, que tem o ministro Edson Fachin como relator, permaneceu na prisão (ainda que esteja em uma cela especial na sede da Polícia Federal de Curitiba, com direito a banheiro privativo e esteira ergométrica). “Boa ou ruim, a lei tem de ser igual para todo mundo. A mensagem de que a Justiça é uma loteria é o pior cenário que se pode ter”, afirma Thiago Bottino, professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro.


A versão 2.0 dos aloprados

Trio parada dura - Damous, Pimenta e Teixeira: trapalhadas, confusões e tiros no próprio pé (Lula Marques/AGPT/.)

Parecia um plano genial: enquanto os brasileiros ainda assimilavam a eliminação na Copa do Mundo, três deputados — os petistas Paulo Pimenta, Paulo Teixeira e Wadih Damous — punham em prática, sem alarde, a estratégia para tirar o ex-presidente Lula da cadeia. A operação foi um retumbante fracasso, não apenas porque Lula nem sequer pôde desfrutar algumas horas fora da prisão, mas porque, na avaliação dos próprios advogados do ex-presidente, criou um gigantesco mal-estar em todo o Judiciário, tornando ainda mais complicadas futuras incursões jurídicas e não jurídicas para libertar Lula. Se o ex-­presidente avançou algumas casas nesse episódio, foi no campo político, pois certamente usará a palhaçada dominical como alegação de que está sofrendo uma perseguição implacável do Judiciário.

“Foi muito ruim. Esse assunto estava sendo tratado de forma profissional. Se fosse um lulista desesperado que apresentasse um pedido desses, vá lá. Mas são três deputados, um deles líder do partido, que ingressam com essa ação cheia de falhas”, resume um dos articuladores das estratégias judiciais do ex-presidente. A ação dos petistas provocou uma reação institucional que uniu os presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Regional Federal e a Procuradoria-Geral da República. Todos se posicionaram de maneira contundente em relação à manobra dos deputados petistas e à decisão esdrúxula do desembargador Favreto.

Dentro do próprio PT, Pimenta, Damous e Teixeira foram comparados aos notórios “aloprados” — o grupo de militantes preso, em 2006, tentando comprar um dossiê fajuto contra adversários do então candidato Lula. O trio petista é conhecido pelas investidas contra a Lava-Jato. Ex-presi­dente da OAB do Rio, Damous é autor de uma série de projetos que ataca os pilares da operação: a prisão em segunda instância, a delação premiada e a prisão preventiva. Com alguma frequência, Damous usa o plenário da Câmara para criticar o juiz Sergio Moro, a quem chama de “uma figura nefasta do cenário jurídico brasileiro”.

Paulo Pimenta, líder do PT na Câmara, tentou usar a CPI da JBS, originalmente criada para apurar o pagamento de propinas, para proibir o instituto da colaboração. Ainda articulou a formação de outra comissão para investigar as delações — que naufragou antes mesmo de funcionar. Já Paulo Teixeira tem larga expertise em manobras de bastidores. Às vésperas do julgamento do mensalão, em 2012, ele foi ponta de lança na instalação de uma CPI que tentou, como agora, desmoralizar a Justiça para salvar a pele dos petistas envolvidos no escândalo. A tramoia também não deu certo — e os petistas acabaram na cadeia.

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Marcela Mattos


EXAGEROS, CHICANAS E BIZARRICES

A defesa do ex-presidente Lula já impetrou mais de 125 recursos desde o início do processo que o condenou a doze anos e um mês de prisão. Entre eles há pedidos legítimos, chicanas clássicas, manobras protelatórias e tentativas de tumultuar o caso. Foram aproximadamente trinta ações na primeira instância, quase cinquenta na segunda, 23 no Superior Tribunal de Justiça e 22 no Supremo Tribunal Federal

(Nelson Almeida/AFP)

SUSPEIÇÃO: A defesa do petista apresentou trinta pedidos para que o juiz Sergio Moro e o desembargador João Pedro Gebran Neto fossem afastados do processo, sob a alegação de que eles não eram isentos

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PROVAS: Para produzirem provas a favor do ex-presidente ou tentarem desqualificar as que o prejudicam, os advogados impetraram 25 recursos só na primeira instância. A maioria dos pedidos foi negada pela Justiça

HABEAS-CORPUS: Os tribunais em Brasília receberam onze recursos da defesa em que se pede a liberdade do ex-presidente. Depois do episódio Favreto, só o STJ contabilizou 145 habeas-corpus em favor de Lula, apresentados sem o aval dos advogados do petista — todos negados

CHICANAS: O caso tríplex envolveu o depoimento de 37 testemunhas arroladas pelos advogados do ex-presidente. Boa parte nada sabia sobre o esquema de corrupção na Petrobras. Ao final, como a intenção era só protelar o caso, a defesa desistiu de várias delas

BIZARRICES: Para tumultuar o processo, a defesa questionou aspectos da vida privada do juiz Moro e filigranas sobre a condução do caso. Em um dos recursos, queria usar cinegrafista próprio para gravar o interrogatório de Lula

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Publicado em VEJA de 18 de julho de 2018, edição nº 2591

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