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A guerra do crédito

Enquanto as cédulas desaparecem das operações bancárias, a luta para baixar o custo do dinheiro mobiliza todo o sistema — ainda em vão

Por Marcelo Sakate Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 10 ago 2018, 07h00 - Publicado em 10 ago 2018, 07h00

O dinheiro é, atualmente, quase invisível. Acredita-se que ele esteja em uma conta e que seja transferido de uma pessoa para outra, que o repassa para alguém — e assim por diante. É uma ilusão, claro. Tal como os meios de comunicação se tornaram majoritariamente digitais, é possível, por exemplo, abrir uma conta, fazer transferências, usar o cartão de crédito ou escolher as melhores opções de investimento via internet, pelo computador ou celular, sem precisar pôr as mãos no papel-moeda — ou os pés em uma agência bancária. As fintechs, como são chamadas as startups que atuam no setor, trazem ainda mais inovação para os serviços financeiros, oferecendo aos clientes uma série de avançados recursos.

O Brasil faz parte dessa nova realidade bancária, mas em um ponto fundamental o sistema nacional continua atrasado em comparação com o que se observa no restante do mundo, como se ainda estivéssemos no país de, digamos, cinquenta anos atrás: o custo do crédito para os consumidores e para as empresas. Na Colômbia, a taxa média de juros de empréstimo pessoal é de 14% ao ano. Na Índia, 10%. No México, 7%. No Brasil, chega perto de 40%. Em alguns casos, como o do cheque especial e o do cartão de crédito, passa dos 200%. É uma atrocidade financeira.

NO AZUL, NO VERMELHO - Financeira em São Paulo: novas regras (Roberto Setton/Divulgação)

O diagnóstico desse problema brasileiro foi feito há alguns anos, porém jamais o país esteve em condições tão propícias para tratar dele, de forma estrutural, como agora. A missão é liderada pelo Banco Central. A instituição, chefiada desde junho de 2016 por Ilan Goldfajn, economista respeitado no mercado, abraçou a causa de maneira inédita. Em primeiro lugar, buscou resgatar a credibilidade da política monetária: trouxe a inflação para perto de 3% ao ano, muito abaixo dos quase 11% registrados em 2015. Com isso, abriu espaço para que a taxa básica de juros, a Selic, fosse reduzida de 14,25% para 6,5%. É a menor taxa nominal da história recente do Brasil.

Contudo, a redução da Selic, referência para muitas taxas praticadas no mercado, não é suficiente para alterar o cenário econômico. É preciso também atacar o chamado spread bancário, nome dado à diferença entre o custo de captação de uma instituição financeira no mercado e os juros cobrados do tomador do empréstimo. No cenário internacional, o spread médio brasileiro, altíssimo, só não é maior que o de Madagascar. Diante disso, o Banco Central criou um plano para atacar os fatores que impedem que os spreads caiam — e, por tabela, que os juros recuem na ponta final. Cortou os porcentuais dos depósitos compulsórios — que os bancos são obrigados a manter no BC para regular o volume de recursos em circulação — e começou a reduzir as barreiras que desencorajam a entrada de competidores em cena (aprovou, por exemplo, um conjunto de regras para estimular a atuação das fintechs). O objetivo do Banco Central é que a redução do custo do dinheiro ocorra por forças de mercado, ou seja, por iniciativa das instituições financeiras, a partir de um novo ambiente de competição, em que serão levadas a uma atuação mais agressiva para não perder clientes.

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O BC não quer que a queda se dê por força da ingerência e pressão política do próprio governo. A experiência recente não deixa dúvida das sequelas que surgem quando isso acontece. Na gestão de  Dilma Rousseff, os juros caíram por meio de pressões do Planalto sobre os bancos públicos e a diretoria do BC, que reduziu a taxa Selic sem que a inflação estivesse devidamente controlada. Resultado: os preços subiram com força, as instituições estatais que diminuíram as taxas tiveram perdas com a inadimplência e, depois de algum tempo, o Banco Central se viu obrigado a elevar os juros básicos.

Um próximo passo para superar as dificuldades no âmbito do crédito é a implantação do cadastro positivo, um registro histórico do pagamento de contas pelos brasileiros. Isso permitirá à maior parte da população negociar melhores condições de empréstimos. Hoje, os bancos cobram, em geral, uma taxa média de juros mais alta mesmo de quem não está inadimplente (e os que estão, por sua vez, só conseguem ter acesso a crédito com quem cobra um preço exorbitante). A formulação recente de novas regras para facilitar a portabilidade do crédito — permitir que alguém que tenha contraído um empréstimo possa trocar de instituição se encontrar condições mais vantajosas — abriu caminho para a redução do custo de tomar emprestado para quem aderiu à novidade. A queda no spread ficou, na média, em 21%, segundo estudo de Gabriela Avancini Rodrigues, mestre em administração pelo Insper.

ALTO LÁ – O BC, em Brasília: desafio de domar juros estratosféricos (Rafael Neddermeyer/Agência Estado/Divulgação)

Apesar de tantos entraves, nas duas últimas décadas o sistema financeiro construiu uma reputação de solidez. Enquanto alguns bancos americanos e europeus quebraram, ou se socorreram junto ao governo de seu país na colossal crise de 2008 e nos anos subsequentes, seus pares brasileiros atravessaram o período com expressivos resultados operacionais — e ganhos bilionários. A recessão prolongada de 2015 a 2017 foi outro teste dificílimo, enfrentado com galhardia pelos bancos. A comparação internacional atesta o bom desempenho. Os bancos nacionais não estão entre os vinte maiores do planeta em ativos administrados (chineses, americanos e japoneses estão muito à frente), entretanto se destacam no critério de rentabilidade sobre o patrimônio — ou seja, a capacidade de gerar ganhos em relação ao seu tamanho. Três instituições financeiras brasileiras aparecem na lista das dez com melhor desempenho, segundo a consultoria Economatica, que analisou 466 bancos no mundo. Com rentabilidade de 18%, o Itaú-Unibanco ocupa a liderança entre os brasileiros. Bradesco e Banco do Brasil também estão no ranking.

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Os cinco maiores bancos do país — aos já mencionados, juntam-se Santander e Caixa — respondem por quase 90% dos empréstimos concedidos. É uma forte concentração que até encontra paralelo em outras nações. Só que, no exterior, não existe a distorção dos altos juros bancários praticados no Brasil, que se situam entre os mais elevados do planeta. Os fenômenos estão parcialmente interligados: a limitada competição oferece aos bancos nacionais as condições para que mantenham suas enormes margens de ganhos. Há outros fatores que ajudam a explicar a anomalia doméstica dos juros estratosféricos: a inadimplência elevada, a falta de informações sobre os tomadores de empréstimo e a tributação. Outro desequilíbrio do sistema financeiro está no fato de haver muitas linhas de crédito subsidiado, caso das oferecidas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social ­(BNDES). Como não existe almoço grátis, para dar dinheiro mais barato em uma ponta é necessário cobrar mais caro na outra.

No campo do aumento da concorrência, um papel relevante tem sido cumprido pelas fintechs. Trata-se de uma realidade global que aqui, no entanto, ganha impulso pelas deficiências no mercado de crédito. As fintechs oferecem serviços a custo mais baixo, de maneira mais personalizada ou com maior praticidade do que o sistema financeiro tradicional. Existem por aqui cerca de 400 dessas empresas, segundo a Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs). Uma em cada seis atua com empréstimos, mas elas ainda representam uma fatia minúscula do mercado: estima-se que o volume acumulado de crédito concedido pelas fintechs seja equivalente a 0,3% do total do sistema financeiro nacional, que é de 3,1 trilhões de reais. Em valores absolutos, porém, esse total corresponde a um montante de até 2 bilhões de reais já emprestados sem passar por bancos, cooperativas ou financeiras. E o ritmo com que aquelas startups se expandem é acelerado, prova cabal de que há demanda por crédito mais barato no país.

Esse fenômeno planetário, contudo, está só no começo e ainda é cedo para avaliar qual será o impacto das fintechs sobre o setor bancário tradicional. “A verdade é que ainda não sabemos”, já admitiu a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), a francesa Christine Lagarde. “Um investimento significativo vai para as fintechs, entretanto a maior parte das aplicações no mundo real ainda está sendo testada”, avaliou Lagarde. O investimento global nessas companhias quase dobrou entre 2014 e 2017 — de 20 bilhões para 39 bilhões de dólares. Seja por meio da atuação crescente das fintechs, seja em razão das mudanças nas regras efetuadas pelo BC, o fato é que o sistema bancário nacional tem uma oportunidade única de se transformar para melhor, tornando-se mais acessível e a um preço menor para a sociedade. E isso acontece justamente no momento em que começa a se firmar no horizonte uma nova fase da relação entre as instituições financeiras e o dinheiro, como mostra a reportagem que vem a seguir.

Publicado em VEJA de 15 de agosto de 2018, edição nº 2595

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