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A Guantánamo tupiniquim

VEJA entrou na penitenciária de segurança máxima e entrevistou os primeiros brasileiros adeptos do Islã condenados por terrorismo

Por Thiago Bronzatto, de Campo Grande
Atualizado em 12 ago 2017, 06h00 - Publicado em 12 ago 2017, 06h00

Não é só a rotina da ala Alfa da penitenciária de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, que é diferente. Tudo ali segue outro protocolo. Os presos pulam da cama de cimento antes do amanhecer. Como ninguém tem relógio, uma discreta fresta de luz e a troca de plantão dos agentes indicam o momento certo de despertar. Voltados para o nascente, em direção a Meca, a cidade sagrada do Islã, eles interrompem o silêncio do pavilhão entoando o “azan” (chamada para a oração, em árabe), seguido pela repetição da expressão “Allahu Akbar” (“Deus é grande”), puxada por uma voz grave que ecoa de uma das celas de 6 metros quadrados. Depois, todos rezam juntos, em voz alta, ajoelhados, inclinando a cabeça até tocar a testa no chão, em movimentos sincronizados, apesar das celas separadas. O ritual dura meia hora e termina com um cântico em homenagem a Alá. Essa liturgia é repetida mais quatro vezes ao longo do dia, sempre distante dos olhos dos outros 146 detentos. Por questões de segurança, a ala Alfa, que tem capacidade para abrigar 26 criminosos, é ocupada por apenas quatro — os primeiros brasileiros adeptos do islamismo presos, julgados e condenados por tramar um atentado terrorista.

Alfa – A ala onde ficam os condenados: dieta especial e isolamento dos demais (Cristiano Mariz/VEJA)

VEJA visitou essa pequena Guantánamo brasileira e entrevistou, sempre por escrito, os quatro condenados por terrorismo. Todos foram presos no âmbito da Operação Hashtag, nome da investigação da Polícia Federal que prendeu dez pessoas acusadas de planejar ataques terroristas durante a Olimpíada do Rio de Janeiro, em 2016. O mais destacado dos quatro condenados é Leonid El Kadre de Melo, de 33 anos. Na prisão, é sempre o primeiro a acordar. Como líder do grupo, é o responsável por conduzir o “azan”. Antes de ser preso, trabalhava como mecânico no interior de Mato Grosso, tinha uma renda de 3 200 reais e havia abandonado a faculdade de engenharia mecânica pela dificuldade de pagar o curso. El Kadre de Melo começou a trabalhar aos 9 anos, fazendo bicos como vendedor de picolé, engraxate e ajudante de pedreiro. Quando atingiu a maioridade, deixou a casa dos pais e foi acusado de participar de um assalto e cometer um homicídio. Condenado a dezoito anos e oito meses de prisão, ficou quase sete anos no cárcere e, atrás das grades, converteu-se ao Islã. Ao deixar a cadeia, passou a frequentar mesquitas e se dedicar à religião, participando de discussões virtuais com o codinome Abu Khalled. Em julho do ano passado, ele foi preso depois de dizer estar “cansado de combater com a língua” e que era hora de agir “com as próprias mãos”. Numa rede social, arregimentou parceiros para comprar armas e financiar um atentado durante a Olimpíada.

“Já sofri torturas físicas e psicológicas. Já sofri todo tipo de coação moral. Já fui jogado no chão e pisado.”LEONID EL KADRE DE MELO (//Reprodução)

El Kadre de Melo, segundo os agentes penitenciários, tem ascendência sobre seus parceiros. A chegada dele e de outros três terroristas à penitenciária de segurança máxima de Campo Grande provocou certo rebuliço desde o primeiro dia. El Kadre de Melo, mesmo advertido pelos guardas, recusou-se a aparar a barba e os cabelos, alegando que isso feriria os preceitos do islamismo. Diante do impasse, o mecânico foi retirado da cela e levado algemado nas mãos, nos pés e na cintura até uma quadra vazia, onde lhe rasparam a cabeça e a barba. Em seguida, ficou trinta dias no setor de isolamento, para onde são levados os detentos considerados indisciplinados. El Kadre de Melo relatou a VEJA que já “sofreu diversos maus-tratos” na penitenciária. Contou que já teve “a mão queimada com leite quente na hora do café” e que os carcereiros costumam apertar “suas algemas de forma excessiva”. “Já sofri torturas físicas e psicológicas. Já sofri todo tipo de coação moral. Já fui jogado no chão e pisado. Já sofri privação de sono e exposição constante à luz, entre outros tipos de tortura.” Para protestar contra o tratamento cruel, diz que já fez greve de fome por 45 dias — e emagreceu 28 quilos no período de um ano.

“Não sei produzir explosivo. Não tenho experiência com isso. Eu trabalhava como ajudante de cozinha.” – LUIZ GUSTAVO DE OLIVEIRA (//Reprodução)

Os outros três condenados da Operação Hashtag também reclamam de maus-tratos e de discriminação religiosa. Alisson Luan de Oliveira, de 20 anos, conta que alguns guardas costumam interromper os momentos de oração do grupo. “Já usaram spray de pimenta em nós enquanto fazíamos o ‘azan’ ”, afirma ele. “Anotaram falta grave por um irmão estar rezando no pátio, e há sempre comentários preconceituosos de alguns agentes”, diz o jovem, que estudou até o 9º ano do ensino fundamental. Desempregado, Alisson de Oliveira fazia bicos como jardineiro e empacotador em um supermercado em Saquarema, no Rio de Janeiro. Morava com a mãe e o padrasto quando foi preso pela Polícia Federal. Acusado de planejar um ataque à Olimpíada, o jovem criou um grupo de mensagens num aplicativo de celular chamado “Defensores da charia”, código de leis seguido pelos muçulmanos radicais, e escreveu antes de ser preso: “Já imaginaram um ataque bioquímico contaminar as águas em uma estação de abastecimento de água, por exemplo?”. Alisson de Oliveira nega ser terrorista e diz que essas mensagens foram forjadas pelos investigadores.

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“O tratamento que a pessoa recebe neste lugar eu não desejo nem para meu pior inimigo. É horrível, desumano.”
ALISSON LUAN DE OLIVEIRA (//Reprodução)

Num pedido feito à Justiça para transferir os presos muçulmanos a outro presídio no interior de São Paulo, o advogado Rodrigo Mendonça Duarte relata que seus clientes são expostos diariamente a uma “situação de violência e constrangimento”. Segundo ele, os detentos da ala Alfa, antes de ser levados ao parlatório ou ao banho de sol, são obrigados a tirar o uniforme azul, marcado com uma numeração, e as sandálias. Em seguida, mostram a palma das mãos, a língua, os lábios, erguem os braços, passam a mão nas axilas, viram de costas, exibem a sola dos pés, erguem os testículos e se agacham três vezes. A razão do procedimento é evitar que escondam qualquer objeto no corpo. Liberados, vestem-se e são algemados, podendo caminhar apenas em cima de uma linha amarela demarcada no chão em frente às celas. “Prefiro ficar 24 horas trancado a ter de passar todos os dias por um procedimento humilhante para ficar só duas horas em um grande pátio vazio”, diz Fernando Pinheiro Cabral, de 23 anos, acusado de ter ordenado um ataque que não aconteceu em São Paulo. Eles combinavam pelas redes sociais explodir um artefato durante uma parada gay. Cabral nega que seja terrorista e admite a autoria das mensagens virtuais, mas alega que eram feitas apenas para chamar atenção.

Vigilância – Câmeras transmitem imagens em tempo real, inclusive para Brasília (Cristiano Mariz/VEJA)

O diretor da penitenciária, Rodrigo Almeida Morel, rebate as acusações de maus-tratos e diz que oferece aos detentos condições igualitárias. “Em alguns momentos, eles se utilizam dessa crença para tentar subverter uma norma interna, como a de fazer a barba. Mas toda crença tem de respeitar as normas internas, que o preso conhece bem”, diz ele. Morel conta que o próprio presídio forneceu o Corão a cada um dos quatro detentos e os trata, dentro do possível, de acordo com seus costumes. Na Guantánamo americana, encravada no sul da ilha de Cuba, também há respeito a certos preceitos islâmicos, da alimentação à rotina religiosa. Na porta das celas da ala Alfa em Campo Grande, está afixado um bilhete com a dieta diferenciada dos quatro detentos muçulmanos: “hipolipídica (pouca gordura), sem carne suína, com ovos, peixes, lactose e proteína de soja”. Seguida à risca, a dieta foi burlada uma única vez, quando três dos quatro condenados aceitaram um ovo de Páscoa, tradicional festa cristã.

Rotina – O dia começa bem cedo, logo ao amanhecer, com orações nas celas (Cristiano Mariz/VEJA)

A penitenciária de Campo Grande já abrigou traficantes da pesada, como Marcinho VP, Elias Maluco, o colombiano Juan Carlos Abadía e Fernando Beira-Mar, que apelidou o lugar de “fábrica de loucos”, diante do rigor com a segurança. A entrada de visitantes só é permitida com prévia autorização da Justiça. Logo na primeira guarita, quatro agentes fazem a revista e confiscam qualquer objeto. Uma nova triagem, mais rigorosa, é feita na sequência. Após cadastrar os dedos num leitor biométrico, o visitante tira os sapatos, o cinto e submete-se a uma máquina de raios X. O pente-fino faz com que os servidores se orgulhem de nunca ter encontrado um aparelho telefônico dentro da unidade desde a sua inauguração, em dezembro de 2006. Há mais de 200 câmeras espalhadas no local — que transmitem as imagens em tempo real para Brasília e Campo Grande. Com os olhos grudados nessas telas, agentes observam a movimentação nos pavilhões Alfa, Bravo, Charlie e Delta. Os setores são divididos para agrupar detentos com perfis semelhantes — e evitar que uma facção criminosa tenha contato com outra, ou que um preso de alta periculosidade se comunique com outro. Na ala Alfa, chama atenção o silêncio durante a maior parte do dia.

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“Eles nos forçam a fazer a barba, mesmo sabendo que, por motivos religiosos, não devemos fazê-la. Em Guantánamo, esse direito é respeitado.”FERNANDO PINHEIRO CABRAL (//Reprodução)

Dos dez presos na Operação Hashtag, o Ministério Público Federal denunciou oito pelos crimes de promoção de organização terrorista e associação criminosa. Em maio deste ano, os oito foram condenados com base na lei antiterrorismo — a primeira condenação desse tipo na história jurídica brasileira. A maioria recebeu pena de seis anos de prisão. Somente El Kadre de Melo, apontado como o cabeça da célula terrorista, pegou quinze anos de reclusão. Os quatro condenados de maior periculosidade foram enviados à penitenciária de Campo Grande. Os outros quatro estão em liberdade provisória. Entre as prisões e o julgamento, o lavrador Valdir Pereira da Rocha, de 36 anos, irmão de criação de El Kadre de Melo e também investigado por suspeita de terrorismo, foi assassinado com golpes de barra de ferro dentro de uma cela no presídio do Capão Grande, em Mato Grosso. Os autores do crime confessaram que não queriam a presença de Valdir junto aos demais detentos. A advogada Zaine El Kadre, mãe adotiva de Valdir da Rocha, garante que seu filho não era terrorista e que ele morreu simplesmente porque suspeitavam que fosse. A polícia investigou o caso e concluiu que o crime foi provocado por desentendimentos entre os presos.

Fora as trocas de mensagens que realmente tratam de planejamento de ataques terroristas, de fato não há maiores evidências de que o grupo tivesse capacidade real para promover um atentado. “Não sei produzir explosivo. Não tenho experiência com isso. Sei fazer pastel, sei fazer esfiha, sei fazer coxinha”, diz o ajudante de cozinha Luiz Gustavo de Oliveira, de 28 anos, o Nur Al Din, acusado de, entre outras coisas, ensinar a fazer bombas. Para o juiz Marcos Josegrei da Silva, da 14ª Vara Federal em Curitiba, responsável pela primeira sentença baseada na lei antiterrorista, as provas contra os oito condenados eram claras. “Analisando o caso, entendi que a situação ali era mais que simplesmente emitir uma opinião. Tratava-se de engajamento. Pelas mensagens utilizadas como prova, dava para supor que eles estavam preparando algo para a Olimpíada”, diz o magistrado (leia a entrevista na pág. 55). As investigações da Polícia Federal e do Ministério Público foram concluídas há dois meses. Mais seis suspeitos se tornaram réus em outro processo, que deve ser julgado no início do próximo ano. Nesse ritmo, a Guantánamo brasileira vai enchendo aos poucos, mas, felizmente, pelo menos até agora, não abriga terroristas altamente perigosos como a Guantánamo original.

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“O país faz parte do cibercalifado”

O juiz Marcos Josegrei da Silva foi o responsável pela condenação dos primeiros terroristas brasileiros adeptos do islamismo. O caso chamou a atenção do mundo. No mês passado, o magistrado foi convidado para um seminário nos EUA sobre o extremismo islâmico na América Latina. Durante o evento, ele expôs a sua preocupação com a expansão do que chama de “cibercalifado”.

Atentados – O juiz Josegrei: os condenados tinham capacidade de incutir ideias extremistas (Ernani Ogata/Codigo19/Folhapress)

Pode-se dizer que o Brasil abriga células terroristas ligadas ao Estado Islâmico? Durante as audiências, ficou evidente que o Brasil faz parte de um fenômeno que tem se intensificado no mundo inteiro — que é a autorradicalização pela internet. Há um conceito do “cibercalifado”, que é criar uma comunidade virtual de gente que estaria constituindo o califado do Estado Islâmico em vários países. Essas pessoas, conectadas pela internet, estariam dispostas a atender ao chamamento em qualquer lugar do mundo, a qualquer instante.

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Os brasileiros presos realmente eram capazes de praticar um atentado? Consigo identificar claramente dois grupos de condenados. O primeiro deles, formado por quatro pessoas, era mais vulnerável. É o que os teóricos chamam de “operativo”, ou seja, que é mais suscetível ao convencimento de cometer algum ato terrorista. Esses réus passaram à liberdade provisória no fim do ano passado. Já o segundo grupo, composto de outras quatro pessoas, que estão no presídio de Campo Grande, é caracterizado por ter maior poder de articulação e uma alta capacidade de incutir ideias extremistas em outras pessoas. Por isso, estão na penitenciária de segurança máxima. Um deles, por exemplo, postou num grupo de mensagens de celular como fazer uma bomba detalhadamente. É muito preocupante.

Os condenados negam ser terroristas e dizem que postavam textos e fotos do Estado Islâmico apenas para “chamar a atenção” dos outros. A maior parte das pessoas envolvidas na Operação Hashtag tinha um conhecimento restrito da religião islâmica. Elas liam artigos na internet e, em alguns casos, até frequentavam mesquitas, mas a sua formação vinha do mundo virtual. Apesar dessa superficialidade no conhecimento da cultura islâmica, era evidente que havia potencial de um ato lesivo. As pessoas me perguntam: “Eles iam realmente fazer algum atentado na Olimpíada?”. Não sei lhe dizer. A Polícia Federal não encontrou explosivos na casa deles. Mas, hoje em dia, o sujeito pode, de uma hora para outra, pegar um veículo e passar por cima das pessoas. Então, não sei dizer. Quando falamos desse tipo de crime, de perigo, o objeto da legislação é evitar o fato, e não lidar com o fato já consumado.

 

Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2017, edição nº 2543

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