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A geração desperdiçada

A leva de modernistas russos consumidos pela revolução deveria servir de alerta para artistas e intelectuais empenhados em projetos políticos radicais

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 6 out 2017, 06h00 - Publicado em 6 out 2017, 06h00

Roman Jakobson, nome fundamental dos estudos literários no século XX, planejava havia muito uma monografia sobre a obra do amigo Vladimir Maiakovski. A notícia do suicídio do poeta conferiu uma urgência desesperada ao projeto. Em seu exílio em Berlim, o linguista russo escreveu um ensaio que, centrado no autor que morrera, aos 36 anos, em 14 de abril de 1930, também presta tributo a outros talentos da literatura de seu país. Citava mais quatro poetas que tiveram a vida abreviada, de um modo ou outro, pela opressão do novo regime bolchevique: Alexander Blok, depressivo, impedido de viajar para o exterior em busca de tratamento médico, morreu aos 40, em 1921; no mesmo ano, Nikolai Gumiliov, 35, foi fuzilado sob a acusação de conspirar com monarquistas; Vielimir Khlébnikov, desbravador da poesia de vanguarda russa, tinha 36 anos quando adoeceu e morreu em razão das privações por que passou em Moscou, em 1922; Serguei Iessienin, 30, cortou os pulsos, escreveu seu último poema com o próprio sangue e depois se enforcou, em 1925. O título do estudo de Jakobson soa como um epitáfio para o modernismo russo das primeiras décadas do século XX: “A geração que desperdiçou seus poetas”. Não foi assim apenas com os poetas. Todos os grandes artistas — da literatura, do cinema, das artes plásticas, do teatro — que não seguiram para o exílio acabaram se defrontando com a censura, a repressão, a prisão. A mão pesada do totalitarismo caiu até sobre aqueles que, como Maiakovski, levantaram a bandeira da revolução em sua primeira hora.

A Rússia pré-revolucionária viveu uma explosão criativa: os Ballets Russes de Serguei Diaguilev, com música de Igor Stravinski, encantavam e escandalizavam Paris; as telas de Marc Chagall, Wassily Kandinsky, Kazimir Malevich e do casal Mikhail Larionov e Natalia Goncharova desbravavam novos temas, formas e cores; o diretor Vsevolod Meyerhold libertava o teatro das amarras realistas de seu mestre Constantin Stanislavski. A despeito da privação, da fome, da guerra civil, a efervescência modernista não foi interrompida de imediato depois de outubro de 1917. Muitos artistas e intelectuais partiram para o exílio, mas outros tantos se engajaram na luta revolucionária, convencidos de que a vanguarda estética e a vanguarda política andariam no mesmo passo. Foi um engano trágico.

Subjetivismo – Mulheres do Campo (1929): sob pressão, Malevich volta à arte figurativa — mas com ironia (Kazimir Malevich/Reprodução)

A suspeita de assassinato pela polícia política já foi levantada tanto no caso de Iessienin quanto no de Maiakovski. Jakobson usou, para ambos, a expressão “suicídio anunciado”: a implicação é que eles foram levados ao ato extremo pelo isolamento artístico imposto pelo regime. Expoente do movimento LEF, uma frente de artistas futuristas de esquerda, Maiakovski dispersou seu talento em peças de propaganda, cartazes, slogans. Queria uma poesia de combate, feita para um novo mundo mecanizado — dizia preferir as fábricas e a iluminação elétrica à natureza, que seria um “objeto não aperfeiçoado”. Esse imperativo industrial foi abraçado com entusiasmo pelo futurismo russo, e até Dmitri Shostakovich, compositor de temperamento clássico, incorporou apitos de fábrica em sua Segunda Sinfonia (A Outubro) — tudo de acordo com os ditames de produtividade do partido, sobretudo depois da NEP, a nova política econômica (leia a respeito na pág. 96). Lenin, no entanto, detestava a vanguarda, e os comissários do partido logo começaram a cercear os artistas mais independentes com acusações de “formalismo”. A experimentação modernista, diziam, distanciava o artista do povo. Maiakovski era “incompreensível para as massas” (expressão que ele usou como título irônico de um poema). O cineasta Serguei Eisenstein, que inovou a técnica da montagem em O Encouraçado Potemkin (1925) e Outubro (1928), se viu obrigado a narrativas mais convencionais e lineares — nunca se adaptou e viveu trombando com a censura. Acossado no fim dos anos 20 pela pecha do “subjetivismo”, Malevich, radical inovador da pintura abstrata, voltou ao figurativismo em uma série de pinturas que retratavam camponeses desumanizados e sem rosto.

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A partir dos anos 30, o ardor de um Maiakovski deu lugar à mediocridade do “realismo socialista”, e a literatura relevante passou a ser feita por dissidentes, como Anna Akhmatova e Boris Pasternak — ou, mais tarde, Alexander Soljenitsin e Joseph Brodsky. O entusiasmo pela revolução, aliás, contagiou a intelectualidade ocidental. Alguns dos que admiraram o monstro a distância se espantaram ao vê-lo de perto: em 1936, o francês André Gide, em visita à União Soviética, horrorizou-se com o totalitarismo stalinista, e a brasileira Patrícia Galvão, a Pagu, desencantou-se ao constatar que havia crianças pedintes nas ruas de Moscou. O filósofo francês Jean-Paul Sartre, porém, voltaria da União Soviética, em 1954, dizendo que lá se respirava liberdade. Tentou se explicar em sua última entrevista, em 1980: “Um intelectual precisa encontrar algo em que se apegar, e eu encontrara aquilo (o Partido Comunista), como tantos outros”. E mais tantos outros seguiram apegados a projetos políticos salvacionistas, como demonstrado pelo desfile de estrelas da academia e de Hollywood que ainda ontem cortejavam o autoritarismo de Hugo Chávez e Nicolás Maduro na Venezuela.

“A poesia só é respeitada neste país. Não há outro lugar em que mais gente seja morta por causa dela”, disse Ossip Mandelstam, mais um poeta da geração desperdiçada — morreu em um campo de prisioneiros na Sibéria, aos 47 anos, em 1938. A amarga ironia de Mandelstam lembra que o poder que lisonjeia o artista — em Moscou, Berlim, Caracas ou Brasília — pode ser o mesmo que o esmaga.

Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2017, edição nº 2551

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