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A crise das crises

Os pensadores Michel Onfray e Roger Scruton concordam em um ponto: o Ocidente vai mal. O francês acha que a fé é o problema, e o inglês, que ela é a solução

Por Joel Pinheiro da Fonseca
Atualizado em 19 ago 2017, 06h00 - Publicado em 19 ago 2017, 06h00
Décadence, de Michel Onfray (Flammarion; 656 páginas. Ainda sem edição no Brasil) (//Divulgação)

Os opostos se tocam, ainda que (ou talvez porque) caminhem em direções contrárias. Vivemos o fim, os últimos suspiros, de nossa civilização? Vozes à esquerda e à direita o afirmam. O Ocidente — a civilização cristã (ou judaico-cristã), a Europa das catedrais e sinfonias e suas filhas no Novo Mundo — encontra-se em franca decadência, tendo perdido as crenças que o sustentaram no passado. Contra bárbaros externos e internos que o atacam, está armado apenas de dúvidas e indecisão. Não há nada no estado atual do mundo que demande de nós esse tipo de leitura. A história recente teve muitas outras crises que pareciam prenunciar o fim. Sempre existiram medos apocalípticos e, crise por crise, aquelas que vivemos agora (econômica, política, cultural) não parecem particularmente graves. Mesmo assim, há um clima de mal-estar em certos círculos.

Michel Onfray é a voz mais radical na França a falar do declínio do Ocidente. Em seu livro mais recente, Décadence, lançado neste ano e ainda não traduzido para o português, ele narra o que seria a biografia da civilização cristã: seu nascimento no Império Romano, sua conquista do poder, seu apogeu medieval e o lento declínio desde então. Em geral, associamos a ideia de decadência civilizacional ao pensamento conservador. O fim da civilização, para o conservador, é motivo de tristeza. Não para Onfray. Sua narrativa do crescimento do cristianismo é uma narrativa de como a neurose, a violência e a dominação venceram e se consolidaram sobre a sanidade, a paz e a liberdade. Mais do que na figura quase incognoscível de Jesus, o cristianismo foi erguido pelo zelo apostólico e pela neurose anticorpo de Paulo e pela astúcia totalitária do imperador Constantino.

Tudo o que veio dessa raiz, seja a produção intelectual (teologia, universidades, arte), sejam ações práticas (Cruzadas, Inquisição, legislação), é marcado pelo desejo de dominar a população e instilar o ódio ao corpo e a esta vida. Mesmo quando negava a religião cristã — como na Revolução Francesa ou na União Soviética —, nossa civilização jamais fazia outra coisa senão reafirmar seu desejo de controle e sua filosofia idealista. Para completar o rol de maldades, a coroação da civilização cristã foi o Holocausto nazista, o desabrochar do antissemitismo que fez parte de sua essência desde as cartas de Paulo. E não seríamos particularmente piores do que os outros. A diferença para o Islã, por exemplo, é apenas que nele foi tudo mais intenso e mais rápido. As funções de Jesus, Paulo e Constantino foram desempenhadas por uma mesma pessoa: Maomé. Apesar de sua inegável decadência, o mundo islâmico ainda acredita na verdade que carrega e está disposto a fazer o que os cristãos não mais ousam: matar em seu nome. Nosso niilismo nada pode contra o fervor muçulmano, diz Onfray.

O autor recheia seu livro de anedotas e pensadores obscuros, tornando a leitura gostosa e muito instrutiva. Ao mesmo tempo, é tudo escolhido sob medida para contar a história que ele queria contar. Não há a menor tentativa de adicionar complexidade à trama. Por exemplo: a Inquisição não representava, ao mesmo tempo que uma violência contra a liberdade de crença, um avanço sobre o justiçamento da turba enraivecida sobre o herege? Seus métodos de tortura, chocantes para os padrões atuais, não eram menos brutais que os métodos comuns aplicados pelos governos da época? O Estado romano pagão não foi tão intolerante quanto à Roma cristã? Não espere esse tipo de nuance. O que salva Onfray de ser apenas mais um pregador é o bom humor com que monta sua narrativa. Ainda assim, no campo das ideias ou da historiografia, não tem o menor rigor; ele constrói um mito.

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Do outro lado do Canal da Mancha e do espectro político, ideológico, filosófico e mesmo espiritual está o pensador conservador inglês Roger Scruton. O tema do declínio civilizacional é lugar-comum em sua obra, embora ele não partilhe da verdadeira celebração de Onfray perante o espetáculo. Ao olhar para o nosso passado, Scruton encontra muito que gostaria de preservar. E, embora não advogue um retorno reacionário a formas antigas, gostaria de resgatar aquilo que Onfray vê como irremediavelmente perdido: a fé. Mas haverá lugar para ela em um mundo cada vez mais desvendado pela ciência? Esse é o tema de A Alma do Mundo, livro de 2014 recentemente publicado pela Record.

A Alma do Mundo, de Roger Scruton (tradução de Martim Vasques da Cunha; 238 páginas; 44,90 reais) (Divulgação/Divulgação)

O mundo visto apenas pelas lentes da ciência, diz Scruton, perde tudo aquilo que faz a vida valer a pena. Nossos relacionamentos, nossa contemplação da natureza, nosso fruir da arte, todos dependemos de algo que não se reduz aos átomos que nos compõem: dependemos de significados que atribuímos às coisas. O valor de uma pessoa está em ela ser algo além de sua carne; algo que nunca propriamente tocamos, apenas vislumbramos no rosto, mas sentimos que está lá. Em última análise, é o que indagamos ao mundo: não teria o universo um significado maior do que nós? Que é a mesma coisa que perguntar se, por trás desse rosto cósmico, há um alguém. Já estamos às portas da fé.

A fé de Scruton tem seu charme, mas ela é acima de tudo uma atitude pessoal — um abrir-se ao mundo de significados humanos —, e não a crença literal numa verdade que está além da razão. Tanto é assim que Scruton estende sua fé mesmo a agnósticos e ateus. Ela tem pouco a ver com a fé de milênios atrás: a crença no que pareciam ser histórias da carochinha sustentada por homens adultos que chocava os filósofos pagãos antigos. Foi a força desse tipo de crença que originou uma nova civilização e causou uma verdadeira revolução na ordem social e no pensamento, com todos os seus erros e acertos.

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Bom, mas, se for mesmo o fim, qual o próximo passo: o que vem depois do Ocidente? Onfray vê duas possibilidades. Uma é a mesma predita por seu conterrâneo Michel Houellebecq no romance Submissão: o domínio da Europa pelos muçulmanos. E aí teremos mais alguns milênios de barbárie.

A segunda é o advento da civilização transumanista, que supera a história e mesmo o caráter geográfico da vida humana e nos leva a um novo tipo de existência. Um rasgo de otimismo tecnológico? Nada disso. Para Onfray, os protótipos desse novo mundo foram desenhados pelos romances Admirável Mundo Novo e 1984, e serão formas de opressão muito maiores do que as que a humanidade jamais viveu ou sonhou. Sendo assim, talvez atrasar um pouco esse processo e lutar, com a fé de Scruton, para preservar o que soubemos construir de bom (ainda que imperfeito) não seja má ideia.

Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2017, edição nº 2544

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