A caixa-preta da cultura
Levantamento de VEJA mostra que milhares de projetos que somam quase 1 bilhão de reais recebidos pela Lei Rouanet estão sob investigação por irregularidades
Principal fonte de recursos para a cultura no Brasil, a Lei Rouanet, que concede incentivos fiscais a empresas que patrocinam iniciativas culturais, tornou-se uma peça essencial na divulgação das artes e da literatura. Em seus 26 anos de existência, ela beneficiou mais de 50 000 projetos, e isso é ótimo. Ruim é a contabilidade do negócio: um número significativo dos relatórios de prestação de contas enviados ao Ministério da Cultura contém, no mínimo, imprecisões, e, com frequência, desvios. VEJA dedicou três meses a esmiuçar, no portal de transparência do ministério, os casos de iniciativas que se valeram da Lei Rouanet e apresentam incongruências não resolvidas. O levantamento apontou 2 400 projetos com irregularidades, que somam exatos 934 milhões de reais — valor que daria para erguer mais de 15 000 casas populares. A dinheirama em gastos mal explicados representa 5% dos 16 bilhões de reais concedidos em forma de incentivos fiscais desde a aprovação da lei — e deve crescer: 18 000 projetos não tiveram sequer as contas analisadas até agora. “Vamos abrir licitação e contratar uma empresa especializada para acelerar o trabalho”, antecipou a VEJA o recém-empossado ministro Sérgio Sá Leitão. A ver como isso progride.
A lista de pecados contábeis identificados no levantamento de VEJA é vasta e abarca as mais diversas acepções de cultura. Muitos envolvem notas fiscais frias, ou fora de ordem, ou incompatíveis com o projeto a que se referem. Há quem não tenha apresentado sequer um relatório. Das doze escolas de samba mais importantes do Rio de Janeiro, três têm contas em aberto: Mangueira, Mocidade e Grande Rio, que somam 5,2 milhões de reais em projetos duvidosos, alguns datados de mais de uma década atrás (as duas primeiras estão, inclusive, proibidas de recorrer à Lei Rouanet).
Campeã de contas problemáticas, a Mangueira deve explicações sobre 1,5 milhão de reais captados para o Carnaval de 2006 e para dois projetos sociais realizados em seu centro cultural. Valor a devolver: 775 000 reais. Entre as distorções apontadas estão gastos acima dos limites previstos e despesas sem comprovação. A Mocidade, acusada de atravessar o samba contábil em dois Carnavais, já recebeu uma cobrança de 210 000 reais e aguarda processo ainda em andamento. A VEJA, ambas alegaram que os problemas são relativos a gestões passadas e que estão negociando com o MinC uma solução. Da Grande Rio, o ministério cobra 245 000 reais em despesas realizadas depois de desfilar na Sapucaí (a escola nega). A farra carnavalesca se estende a duas agremiações de São Paulo, Mocidade Alegre e X9.
Do grupo beneficiado pela Lei Rouanet com contas em aberto fazem parte artistas conhecidos, como a cantora Claudia Leitte, que recebeu ordem do MinC para restituir integralmente o valor de 1,2 milhão de reais captado para uma turnê em 2013. No projeto que encaminhou ao ministério, a produtora da artista comprometeu-se a distribuir 8,75% dos ingressos a estudantes de escolas públicas e instituições de assistência social — uma contrapartida habitual nos contratos que envolvem a Lei Rouanet. Segundo o parecer do MinC, falta comprovar esse repasse, e, sem ele, o contrato fica anulado. A produtora recorre na Justiça contra a decisão. “O MinC exige a apresentação de recibos assinados, um a um, pelos beneficiários. Mas isso é impossível, porque foram repassados em lotes”, diz o advogado da produtora, Rodrigo Calábria.
Sendo ou não adequada a justificativa da equipe de Claudia Leitte, a questão é que a burocracia de fato emperra e atrapalha a prestação de contas e serve por vezes de álibi para o calote puro e simples. “O processo precisa ser simplificado em prol das finanças públicas”, diz a advogada Cristiane Olivieri, especialista em cultura e entretenimento. Uma filigrana burocrática é justamente a explicação da Associação Cultural da Arquidiocese do Rio para estar impedida de captar recursos da Lei Rouanet. Entre 2002 e 2005, ela amealhou 1,2 milhão de reais em incentivos fiscais para a reforma da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, onde se casa a alta sociedade carioca. O MinC diz que a associação não prestou contas. A associação afirma que o relatório foi, sim, entregue, mas faltou uma assinatura — e só soube que estava no índex do ministério quando, há pouco, submeteu outro projeto a aprovação. O ministério admite a necessidade de racionalizar o trâmite nos labirintos da burocracia para recuperar o que lhe é devido.
934 milhões de reais captados via Lei Rouanet por 2 400 projetos estão com a prestação de contas irregular
Ao longo da investigação das pendências no Ministério da Cultura, VEJA constatou denúncias que misturam interesses públicos e privados no uso da verba da cultura. A Fundação José Sarney, criada pelo ex-presidente para manter um museu com o acervo reunido em seu governo, jamais prestou contas de dois projetos, que somam 1,6 milhão de reais e estão soterrados em uma avalanche de suspeitas que abrangem desvios, superfaturamentos e emissão de notas frias. A fundação fechou as portas em 2015, mas o processo tramita até hoje no Tribunal de Contas da União. Fundadora do Fórum Faz Cultura, que recebe denúncias de irregularidades em projetos culturais, Flavia Faria Lima levanta outro problema: os encarregados de elaborar pareceres sobre os projetos são pessoas de fora, contratadas, e não servidores. “O sistema gera suspeitas de manipulação. O ideal seria ter na função servidores de carreira bem treinados”, diz.
O entrelaçamento do dinheiro público com os interesses de marketing do setor privado promovido pela Lei Rouanet, aliás, está no centro de uma polêmica que se arrasta há décadas e ganha força quando ocorrem desastres como a extensão dos benefícios à empresa Brasil Connects Cultura, a maior devedora do MinC. É dela o projeto mais caro sem prestação de contas até hoje — uma exposição itinerante sobre os 500 anos do Brasil, que captou 23,2 milhões de reais entre 1999 e 2002. O presidente da Brasil Connects era Edemar Cid Ferreira, dono do Banco Santos, condenado a 21 anos de cadeia por formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e gestão fraudulenta (a sentença acabou anulada). Ferreira faliu, a Brasil Connects fechou e a chance de devolução dos recursos captados é praticamente nula.
A Lei Rouanet foi promulgada em dezembro de 1991 e leva o nome de seu criador, Sergio Paulo Rouanet, secretário de Cultura de Fernando Collor de Mello. Cerca de 90% dos recursos são bancados via mecenato, ou seja, pela iniciativa privada, que em troca abate os valores de impostos devidos (os outros 10% vêm do próprio governo). O modelo é inspirado no que é praticado nos Estados Unidos, que também alivia nos impostos, mas com controles muito mais rígidos. A falta de critérios bem definidos na versão brasileira permite que 3% dos financiadores movimentem metade dos recursos e que 80% irriguem atividades culturais no Sudeste. Para piorar, como mostra o levantamento de VEJA, boa parte do dinheiro captado é pega na malha fina da análise das prestações de contas e lá permanece, anos a fio, sem solução nem retorno. Sim, a Lei Rouanet tem uma boa intenção, mas seu gerenciamento é calamitoso.
Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2017, edição nº 2545