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A Amazônia é o novo Rio

E isso não é um elogio: na rota do tráfico internacional de drogas, alguns estados brasileiros estão se transformando em polos de violência e medo

Por Leonardo Coutinho Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 20 abr 2018, 06h00 - Publicado em 20 abr 2018, 06h00

Moradores com pavor de sair às ruas à noite. Bares e restaurantes que fecham as portas cada vez mais cedo. Territórios dominados pelo crime organizado. Isso lembra um certo estado sob intervenção federal? Infelizmente, esse cenário desolador está longe de ser uma exclusividade do Rio de Janeiro. O Amazonas é hoje o exemplo mais bem-acabado do processo de carioquização por que passam estados brasileiros que entraram na rota do tráfico internacional de drogas — além do Amazonas, Acre, Rondônia e Ceará.

Em Manaus, o conjunto habitacional Viver Melhor é a síntese de como a tragédia do Rio se replica no país. Erguido há seis anos por meio do programa Minha Casa Minha Vida, o residencial praticamente já se funde com uma favela que brotou ao lado. Somados os números de moradores dos apartamentos e dos barracos quase contíguos, são 70 000 as almas que habitam o local, a maioria egressa de áreas de risco ou de invasões nas bordas de rios e igarapés da região. Da mesma forma que o bairro Cidade de Deus — que nasceu no Rio como alternativa de reassentamento para famílias retiradas dos morros cariocas —, o residencial do Amazonas converteu-se em um terreno fértil para o tráfico. A facção criminosa Família do Norte (FDN) assumiu o controle do local. Trata-se, literalmente, de crime organizado: cada um dos blocos com quatro prédios de quatro andares está hoje entregue ao comando de um gerente do tráfico.

(Arte/VEJA)

Já no Acre e em Rondônia, que fazem fronteira com a Bolívia, é o Primeiro Comando da Capital (PCC) que dá as cartas. Vendedor exclusivo da droga boliviana no Brasil, o PCC controla a faixa de fronteira que se estende para o sul, até o Paraguai. Em Porto Velho, a organização conquistou o mais emblemático dos conjuntos habitacionais da cidade. O Orgulho do Madeira, como é chamado o residencial erguido com financiamento do governo federal, reúne 7 000 moradores e é um antigo conhecido do sistema de execução penal de Rondônia. Nas telas de monitoramento de presos com tornozeleira eletrônica, o Orgulho do Madeira aparece como uma mancha em destaque. “Ali moram quase todos os bandidos rastreados pelo aparelho”, conta o secretário de segurança, Lioberto Caetano de Souza. Aos moradores que não têm conexão com o crime restam apenas duas opções: submeter-­se às regras da facção ou abandonar seu apartamento, que depois será ocupado pelos criminosos. Além da Amazônia, a tomada do controle de residenciais destinados à população de baixa renda já foi identificada em Cuiabá, Fortaleza e Rio de Janeiro.

Descoberta - No lado peruano da fronteira, lavoura com potencial de produzir 270 toneladas de cocaína (Polícia do Peru/.)

O Ceará entrou na rota dos criminosos por ser o lugar a partir do qual a droga segue para a Europa. No mês passado, o medo se instalou em diversas cidades, incluindo a capital, Fortaleza. Setenta veículos foram incendiados e uma série de prédios públicos, atingidos por coquetéis molotov. Era um recado de bandidos presos às autoridades locais: não aceitariam a instalação de bloqueadores de celular nos presídios. Na disputa, que já se arrasta por dois anos, o crime tem levado vantagem. Em 2016, o PCC chegou a estacionar um carro-­bomba em frente à Assembleia Legislativa do Ceará para intimidar os deputados que votariam uma lei para regulamentar o bloqueio. As autoridades cearenses não assumem, mas até as conchas da Praia de Iracema sabem que os bandidos conseguiram o que queriam. Prova disso é que os bloqueadores jamais foram instalados onde deveriam. Com o Ceará transformado em palco de uma guerra de facções que disputam o controle do tráfico na região — estão na briga PCC, Comando Vermelho, Guardiões do Estado e FDN —, Fortaleza tornou-se a capital mais violenta do Brasil.

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A Organização das Nações Unidas reconhece o Brasil como o segundo maior mercado mundial de cocaína, atrás apenas dos Estados Unidos. No que se refere ao crack, droga ainda mais brutal e agressiva, nosso país é líder. As projeções de consumo mostram que o negócio gera um faturamento estimado de 34 bilhões de reais. Se fosse uma única empresa, o tráfico de drogas estaria entre as dez maiores companhias brasileiras. Para competirem nesse mercado bilionário, os criminosos lançam mão de armas variadas — e o medo é uma delas. Ele ajuda a explicar, por exemplo, o que ocorreu no Estado do Amazonas em 2 de janeiro de 2017. Naquele dia, as páginas do noticiário foram tomadas por manchetes sobre a execução de 56 homens no interior do Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus. Os criminosos da FDN fizeram questão de filmar e difundir, por meio do Whats­App, as cenas da selvageria, que tiveram como vítimas preferenciais os integrantes do rival PCC. Um delegado que esteve no interior da prisão descreveu o que encontrou: piso tingido de sangue, cabeças decepadas pelo chão, vísceras expostas e até um coração, que fora arrancado de uma das vítimas, jogado em um dos corredores. Qual seria o motivo da crueldade? Na guerra pelo controle do tráfico de cocaína na Amazônia, a tática de expor publicamente “troféus humanos” virou uma prática tão comum quanto mostrar os dentes para o adversário.

A violência transborda para muito além das facções. Em 2016, foram registrados mais de 61 000 assassinatos no Brasil. VEJA ouviu secretários de Segurança, delegados especializados em investigar homicídios e policiais de uma dezena de estados. Todos afirmaram que o tráfico de drogas é o principal impulsionador dos homicídios no Brasil. São homens e mulheres abatidos em lutas de quadrilhas, em crimes de acerto de contas ou vítimas colaterais das organizações movidas a cocaína. Em Rondônia, estado que tem um dos melhores índices de elucidação de homicídios do país, a estimativa dos agentes de segurança é que, naquela porção da Floresta Amazônica, 90% das mortes tenham vínculo com o tráfico. “O crime mudou. O padrão que marcou a ocupação da fronteira, que era de mortes por rixas, pistolagem, questão fundiária e brigas em garimpo, deu lugar aos crimes do tráfico”, afirma o delegado de homicídios Carlos Eduardo Ferreira, que há mais de três décadas atua na região.

Uma descoberta recente ajuda a mapear a dimensão do problema. Em 2017, os satélites do Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam) detectaram no lado peruano da fronteira uma área desmatada de 9 000 hectares. Seria algo irrelevante no contexto da devastação medida anualmente na Floresta Amazônica. Ao processarem essas imagens, porém, os técnicos brasileiros chegaram a um diagnóstico assustador. Na amostra, detectaram-se lavouras de coca com o potencial de produzir 270 toneladas de cocaína por ano. Pela localização, é certo que essa produção em escala monumental escoa apenas por um caminho possível: os rios amazônicos. Escondida em navios de carga e de passageiros, a droga vai parar nas mãos das organizações criminosas que hoje aterrorizam o país e transformam áreas até há pouco pacíficas em caldeirões de sangue.

“O Estado levou um monte de pessoas para áreas remotas e as deixou nas mãos de bandidos”, diz o delegado Guilherme Torres, diretor do Departamento de Repressão ao Crime Organizado da Polícia Civil do Amazonas. A nascente do problema que deságua no Brasil em forma de morte e tragédia está do lado de lá das fronteiras nacionais, e, enquanto ela não secar, qualquer tentativa de combater o crime organizado e seus efeitos deletérios será inútil. Enquanto a polícia tenta enxugar o gelo, uma parte cada vez maior do Brasil arde nas chamas da violência.


Das Farc, com carinho

Agora no Brasil – Fuzis colombianos: “Novo padrão de violência” (//Reprodução)

Em 2016, o mundo celebrou o fim de uma das mais longas guerrilhas de nosso tempo. As Forças Armadas Colombianas (Farc) depuseram as armas, e seus mais de 7 000 combatentes entregaram parte de seu arsenal. Em janeiro de 2018, VEJA revelou, com base em documentos exclusivos, que alguns ludibriaram o acordo. As Farc conseguiram anistia e entraram para a legalidade ao mesmo tempo que alguns de seus ex-integrantes mantiveram o controle sobre o tráfico de drogas. Cerca de 1 000 ex-membros seguem cuidando do negócio da organização, a produção de drogas.

O ex-delegado federal Mauro Sposito, uma das maiores autoridades brasileiras em assuntos de segurança nas fronteiras, afirma que os “órfãos das Farc” já estão entre nós. Mais: ele diz que bastou a organização selar o acordo de paz para começarem a aparecer por aqui os primeiros fuzis nas mãos de traficantes. No fim de 2016, um delegado da Polícia Civil foi morto em uma operação. Os criminosos (por sinal, colombianos) traziam um fuzil AKM, uma atualização do AK47, reconhecido por especialistas como uma arma-padrão das Farc. Também foram recuperados fuzis FAL idênticos àqueles tirados de uso pelo Exército venezuelano. Como as marcações foram riscadas, é difícil saber com exatidão a origem do arsenal. Mas a Polícia Federal suspeita que as armas tenham sido contrabandeadas pelo regime chavista para os então guerrilheiros, que agora as vendem no Brasil ou prestam serviços como “freelancers” para as quadrilhas locais.

Em Rondônia, ao sul do Amazonas, só em 2017 apareceram os primeiros fuzis nas mãos dos bandidos. Segundo o delegado-geral da Polícia Civil, Eliseu Muller de Siqueira, a chegada dos fuzis acendeu uma luz vermelha: “Teremos de nos preparar para um novo padrão de violência que está por vir”.

 

Publicado em VEJA de 25 de abril de 2018, edição nº 2579

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