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A alma da opinião pública

O desafio dos institutos de pesquisa para entender e traduzir o que pensa essa estranha entidade que fala de tudo

Por Eduardo Oinegue*
Atualizado em 30 jul 2020, 20h25 - Publicado em 9 mar 2018, 06h00

Há uns dez anos, o Ibope conduziu uma pesquisa sobre corrupção. Durante a execução, constatou que as pessoas até admitiam a prática de atos ilícitos, mas apontavam seus vizinhos e familiares como antiéticos de verdade, bem mais do que elas próprias. Esses, sim, costumavam subornar o guarda, comprar produtos piratas, falsificar documentos, sonegar impostos ou fazer gato de luz e de TV a cabo. Como é estatisticamente improvável que o Ibope tenha cruzado apenas com os mais íntegros, dá para arriscar que os entrevistados não foram exatamente francos. Quando se pergunta aos fumantes se pretendem parar de fumar, a maioria diz que sim porque pega bem. Quando se entrevistam os motoristas sobre as razões que os levam a usar o telefone ao volante, quase 40% dizem que é para atender ligações urgentes. Convenhamos: pega mal dizer que eles adoram uma selfie no carro.

Em 2013, a psicóloga Terri Fisher, da Universidade de Ohio, publicou um artigo na revista científica Sex Roles para mostrar como o ser humano pode ser imaginativo nas pesquisas sobre comportamento sexual. O trabalho relata a enquete feita com um grupo de jovens heterossexuais aos quais foram feitas as mesmas perguntas. Detalhe: metade deles foi ligada a um falso detector de mentiras apresentado como verdadeiro. O que aconteceu? Os rapazes “sem aparelho” disseram ter se relacionado com um número maior de parceiras do que os “com aparelho”, e as garotas “sem aparelho”, com um número menor de parceiros do que as “com aparelho”. “Quando o assunto é delicado, as pessoas têm o impulso de tentar impressionar até mesmo alguém que jamais viram nem voltarão a ver”, afirma Márcia Cavallari, diretora do Ibope Inteligência.

Economista Antonio Lavaredas (Isadora Brant/Folhapress)

Pois é com esse personagem complexo e de perfil gelatinoso, o entrevistado, que os institutos de pesquisa contam para investigar a chamada opinião pública — que se comporta de maneira muito parecida em qualquer país do mundo. As pessoas se enxergam ou se dizem mais conscientes e mais íntegras do que são e, por que não?, sexualmente mais ou menos ativas, conforme o gênero.
Nas pesquisas sobre o candidato a presidente da República ideal, os brasileiros pedem alguém honesto, preparado, firme, de boa formação, equilibrado e inovador. Nas que pedem um nome, citam Lula e Jair Bolsonaro. Toda atividade profissional opera segundo premissas. Na engenharia, é premissa que se possa calcular o comportamento do solo e do clima no local de uma grande obra com base em curvas históricas de variação de temperatura, intensidade dos ventos e índice pluviométrico. Os profissionais de pesquisa também têm premissas. Uma delas é que, quando vão a campo, capturam o que as pessoas pensam ou sentem, valendo-se de técnicas para superar a criatividade e interpretar as mensagens aparentemente contraditórias.

Marcia Cavallari, diretora de pesquisas do Ibope (Claudio Belli/Valor/Agência O Globo)

Além de tentar impressionar o pesquisador, o entrevistado muitas vezes quer “acertar” a resposta. Ainda que pesquisa não seja prova de conhecimentos gerais, com alternativas corretas e incorretas, uma parte dos entrevistados se guia por eventuais pistas contidas nos enunciados. Daí a importância de preparar perguntas o mais isentas possível. Questões enviesadas comprometem o resultado final. Para mensurar o poder pernicioso da indução, este autor pediu ao Instituto Vox Populi que realizasse uma pesquisa-­teste com o tema “pena de morte”. A amostra, que traduz fielmente as estatísticas oficiais de composição da sociedade brasileira, contém 2 000 entrevistas. O teste, supervisionado pessoalmente por Marcos Coimbra, presidente do Vox Populi, consistiu em apresentar uma única pergunta direta (“Você é a favor ou contra a pena de morte?”) após a leitura de um breve texto introdutório. Metade da amostra ouviu um texto, metade outro, antagônicos entre si e tendenciosos. O primeiro texto tem um viés a favor da pena de morte. O segundo tem inclinação oposta, contra a pena de morte.

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(Arte/VEJA)

Como reagiram os entrevistados? Tomemos apenas o conjunto de respostas contra e a favor, uma vez que as respostas “nem a favor, nem contra” e “não sabe” ou “não respondeu” ficaram mais ou menos do mesmo tamanho nos dois casos. Placar do primeiro texto, com ênfase na criminalidade: 53% a favor, 47% contra. Placar do segundo texto, com ênfase nos erros judiciais: 38% a favor, 62% contra. A força da indução foi de significativos 15 pontos porcentuais. “Num caso, mais da metade apoiou a pena de morte. No outro, quase dois terços ficaram contra”, comenta Marcos Coimbra. “O trabalho que fizemos reforça a responsabilidade dos institutos de capturar a informação de forma técnica e isenta, já que a divulgação dos dados pode produzir desdobramentos políticos e sociais significativos.”

Coimbra observa que o teste não autoriza ninguém a achar que a opinião pública é massa de manobra. “A sociedade sabe o que quer e sabe o que não quer. Se o Brasil estivesse debatendo pena de morte, o assunto estaria na pauta do dia, nos meios de comunicação e nas redes sociais, e haveria um sentimento sobre ela nas ruas”, afirma Coimbra. “Dificilmente as pessoas se deixariam influenciar como na pesquisa que fizemos.” Coimbra está dizendo que as pessoas se mobilizam quando surge o “clima”. Num certo sentido, é como se existissem duas opiniões públicas. A natural, que responde e reage aos assuntos concretos (Diretas Já em 1984, impeachment de Collor em 1992, manifestações de 2013), e a opinião pública de laboratório, que responde porque alguém teve a ideia de perguntar. “As pessoas sempre terão opinião sobre tudo. Até sobre física quântica ou se os aliados erraram ao desembarcar na Normandia. Cabe aos institutos submeter à sociedade temas em que ouvir as pessoas faça sentido. Do contrário, saímos da ciência e entramos no mundo das curiosidades”, diz o cientista político Antonio Lavareda, presidente do Conselho Científico do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe) e um dos grandes especialistas brasileiros em pesquisa e comportamento social.

Mauro Paulino, o diretor do DataFolha
Foto: Silvia Zamboni/Valor/Agência O Globo (Silvia Zambon/Valor/Agência O Globo)

Um bom exemplo de curiosidade é uma pesquisa sobre viagem a Marte feita anos atrás nos Estados Unidos. Os entrevistadores queriam saber se as pessoas tomariam parte em uma missão só de ida para colonizar Marte. Dos entrevistados, 33% simpatizaram com o projeto — 7% dizendo que viajariam, e 26% que considerariam a possibilidade. A pergunta surgiu a frio, sem maiores esclarecimentos sobre a missão. Por exemplo: em Marte há temperaturas de até 140 graus Celsius negativos, tempestades frequentes com ventos de até 300 quilômetros por hora, radiação altíssima e atmosfera rarefeita — tão rarefeita que, na maioria dos pousos, a espaçonave se espatifou no solo. Lá quase não há oxigênio e a água precisa ser obtida a partir do aquecimento de partículas de gelo do subsolo. Seria correto afirmar que um terço dos americanos encararia a viagem ao Planeta Vermelho? É evidente que não. As pessoas possivelmente selecionaram uma das alternativas apenas porque foram consultadas. Imagine a pesquisa repetida no dia do embarque. Quem dissesse que sim, ou que consideraria a hipótese, seria encaminhado ao foguete. Teríamos 33% de adesão?

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Em qualquer país democrático, há um interesse geral pelas pesquisas de intenção de voto. Não será diferente no Brasil em 2018 quando entrarmos no clima de eleição. Ainda é cedo. Acabamos de sair do clima de Carnaval, e em breve entraremos em clima de Copa. O clima de eleição virá no segundo semestre. Faltam sete meses para o dia D. Na gravidez, a sete meses do parto, uma parcela reduzida das mães definiu o nome da criança. Seria estranho que os eleitores já tivessem escolhas firmes se nem os partidos resolveram quem lançar ou apoiar. As convenções ocorrem entre julho e agosto. É precipitado querer tirar grandes conclusões a esta altura do campeonato. Quem tentou quebrou a cara. No começo de 1989, a Federação das Indústrias de São Paulo declarou que suas pesquisas capturavam uma inclinação da sociedade por “candidaturas de centro-esquerda”. Deu Fernando Collor. Na largada da corrida de 1994, Lula estava na frente e a candidatura de Fernando Henrique Cardoso foi descrita como “obra de ficção”. Nos primeiros levantamentos de 2002, Roseana Sarney aparecia em segundo lugar. Nem candidata foi. No início de 2010, o tucano José Serra parecia ter chances reais de vitória. Foi derrotado por Dilma.

Os responsáveis pelos institutos estão roucos de repetir que a ferramenta não se presta a prognósticos porque o eleitor muda e o cenário muda, mas não adianta. É sair uma pesquisa e surgem as críticas. Uma hora as pesquisas são ruins porque erram demais. Outra hora porque influenciam o voto do eleitor. “Fica difícil imaginar como as pesquisas podem cometer dois erros que se anulam”, comenta Márcia Cavallari, do Ibope. “Ou bem erram demais porque o eleitor vota de modo diferente do que elas sugerem, ou influenciam o voto, e nesse caso não erram demais.” Em janeiro, o Datafolha recebeu as primeiras e injustas críticas por ter divulgado uma rodada com nove cenários distintos. Qualquer pesquisa feita nessa fase só poderia reproduzir o ambiente caótico recorrendo a combinações múltiplas. “Os institutos lidam com hipóteses”, diz Mauro Paulino, diretor-geral do Datafolha. “As pesquisas existem para simular a realidade, e sua divulgação para dar a todas as pessoas, de forma democrática, uma noção de como a sociedade vai se comportar quando os fatos surgirem à sua frente”.

Nem todo mundo enxerga as pesquisas dessa forma. No Congresso Nacional, a toda hora surge uma iniciativa liberticida querendo limitar o trabalho dos institutos. Os políticos gostam das pesquisas, tanto que não dão um passo sem elas. O que os incomoda é a divulgação dos resultados. Querem as informações só para eles. A sociedade que fique às cegas. Na segunda-­feira 5, o Tribunal Superior Eleitoral baixou uma resolução sem precedentes, tirando do cidadão o direito básico de receber e triar as pesquisas livremente. Pela resolução, pesquisas que colhessem intenção de voto não poderiam tratar de outros assuntos. E pesquisas que tratassem de outros assuntos não poderiam colher intenção de voto. Fazer avaliação de governo e colher intenção de voto, como o instituto MDA fez para a Confederação Nacional do Transporte há alguns dias, ficaria proibido, por exemplo. A decisão equivale, em absurdo, à vigilância sanitária proibir os restaurantes de servir pizzas com dois sabores. Tem de decidir. Ou só mussarela, ou só calabresa. Pegou tão mal que o TSE voltou atrás três dias depois.

* Eduardo Oinegue é jornalista, palestrante, consultor de empresas e colunista do Grupo Bandeirantes de Rádio e Televisão

 

Publicado em VEJA de 14 de março de 2018, edição nº 2573

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