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EXCLUSIVO: o depoimento que fez Vaticano intervir nos Arautos do Evangelho

Práticas heterodoxas como ordenações de sacerdotes sem formação e exorcismos no nome do fundador chamaram a atenção de Roma

Por Maria Clara Vieira Atualizado em 10 out 2019, 22h00 - Publicado em 10 out 2019, 22h00

Desde o final do mês de setembro, o grupo católico brasileiro Arautos do Evangelho está sob a tutela do Vaticano, como resultado de um processo de investigação iniciado em 2017. O estopim foi a circulação de um vídeo no qual os membros do grupo realizavam rituais de exorcismo heterodoxos, bem diferentes dos aprovados pela Igreja Católica. No documento divulgado pela Santa Sé no último dia 28, consta que as razões para as várias visitas de Roma à sede do Arautos e suas filiais no Brasil e a decisão de fazer uma intervenção nesta associação católica se devem a “deficiências no estilo de governo, na vida dos membros do Conselho, na pastoral vocacional, na formação de novas vocações, na administração (…)”, entre outras áreas. Por tudo isso, o Vaticano designou um cardeal para acompanhar os trabalhos dos Arautos.

VEJA teve acesso com exclusividade ao depoimento de um ex-membro dos Arautos do Evangelho que consta nos autos da investigação promovida pela Santa Sé e que, junto com outros relatos que corroboraram os principais pontos levantados pelo testemunho, levou à interferência no grupo. Os Arautos foram fundados em 2001 pelo brasileiro João Scognamiglio Clá Dias – conhecido como Monsenhor João Clá -, com aprovação papal. Caracterizado por seu hábito marrom e branco, com uma grande cruz no peito que remete aos trajes dos cavaleiros medievais, o grupo é derivado da antiga Sociedade de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, a TFP, movimento tradicionalista de extrema-direita criado em 1960, em São Paulo, por obra de Plinio Corrêa de Oliveira.

No depoimento entregue ao Vaticano, o religioso narra que, apesar de os Arautos do Evangelho terem publicamente abandonado alguns símbolos e atividades típicos da TFP (entre elas as virulentas campanhas públicas contra o comunismo) e aceitado as deliberações do Concílio Vaticano II (como a missa de frente para o fiel e no idioma local, ao invés do latim) e a obediência ao Papa, o movimento persiste com forte teor ultraconservador, avesso à figura de qualquer papa — especialmente a Francisco — e excessivamente apegado às figuras do fundador Plínio (PCO) e do próprio Monsenhor João Clá Dias (MJC), considerado o verdadeiro Pontífice. “No dia do conclave em que Francisco foi eleito, em 13 de março de 2013, MJC convocou seu clero para participar deste evento ao vivo em seu apartamento particular em São Paulo. Quando o resultado foi anunciado, a reação dele e de todos os presentes foi extremamente desagradável e enojada e comentou que o escolhido, “Bergoglio”, seria “pior ainda” que João XXIII e Paulo VI”, conta o religioso, que afirma que Clá Dias jamais aceitou a autoridade sequer de João Paulo II ou Bento XVI.

Com relação à ordenação de padres pelos Arautos, que também chamou a atenção dos investigadores, o depoimento do dissidente do grupo reforça a presença de práticas não canônicas. Ele diz que, desde 2004, quando passaram a formar sacerdotes, os Arautos do Evangelho também criaram seu próprio sistema de estudos, desalinhado com os ritos aceitos pela Santa Sé e vigentes em todos os seminários do mundo. “Em teoria, existe no Arautos (…) um plano de formação, mas, na realidade, é muito livremente aplicado, assim como o processo vocacional”, ele afirma. De acordo com o depoimento, muitos sacerdotes do grupo foram ordenados sem sequer ter tido os estudos básicos de filosofia e teologia – obrigatórios em qualquer seminário. “Alguns nem mesmo concluem a educação básica, seu único treinamento é o que é ministrado internamente, (…) material abundante escrito por PCO e MJC”.

Sobre a a atração de jovens para o grupo, o religioso conta que o processo é iniciado principalmente nos internatos dirigidos pelos Arautos, chamados Thabor, onde crianças e adolescentes cursam o ensino fundamental e médio. De acordo com o depoimento, os membros costumam visitar estes centros educacionais com o aparente objetivo de fazer apresentações musicais e culturais, mas, na realidade, “se aproveitam para recrutar jovens, dizendo-lhes apenas que irão convidá-los para um ‘curso gratuito’ composto por aulas de música, artes, religião etc”.

O religioso dá mais detalhes. “Os jovens desavisados que recrutam são (…) instilados nos princípios básicos do catolicismo, embora na linha mais tradicional e conservadora. (…) Aqueles que parecem ter “thau” (termo usado para designar alinhamento aos princípios dos Arautos) são persuadidos a habitar na sede. (…). Começa um processo que gradualmente os remove do meio ambiente, eles começam a mudar sua maneira de se vestir, de falar, (…) que nem seus antigos amigos, nem parentes, nem pessoas de fora conseguem entender, portanto, eles devem manter o máximo sigilo”, narra. O depoente afirma que, aos novatos, é recomendado que se afastem de todos os seus entes queridos. “Para ser fervoroso na vocação, o membro do grupo deve rejeitar sua própria família, porque é a raiz do mal e do pecado que existe nele. É por isso que até hoje a sigla FMR ainda é usada internamente, o que significa ‘fonte da minha revolução’, uma vez que se considera que a própria família é a origem do pecado da Revolução (leia-se: o avanço dos comunistas e do progressismo dentro da Igreja).

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Os exorcismos irregulares exibidos no vídeo em 2017 também são abordados no depoimento. De acordo com o relato entregue à Santa Sé, quando Clá Dias recebeu autorização para realizar o ritual, em 2013, o processo era feito de acordo com a fórmula pré-conciliar, a mais antiga. Com o tempo, o ritual ganhou novas regras e princípios, ao sabor das vontades do Monsenhor Clá, inclusive lhe rendendo homenagens. “Os casos de possessão não foram verificados como o ritual estabelecido, nem se preocuparam muito com isso, pois um dos principais sintomas da possessão diabólica era não gostar do MJC. E assim surgiu um novo ritual cuja eficácia parecia estar garantida, que consiste basicamente em invocar o nome e a autoridade da MJC e lançar maldições em nome dele, PCO e sua mãe, com suas fotos e relíquias”, fala o depoente.

O ex-membro relata ainda que tudo o que é tocado pelo Monsenhor Clá Dias se torna uma relíquia cobiçada entre os Arautos: guardanapos, copos, pratos, embalagens de doces jogados da janela de seu apartamento particular. Até mesmo a água utilizada para lavar suas roupas era guardada e distribuída pelas filhas da Segunda Ordem (o grupo religioso feminino dos Arautos) como uma arma poderosa na luta contra o mal. Tal prática, de acordo com o documento, nunca foi rechaçada por Clá Dias.

Uma leva de exorcismos irregulares em meados de 2016 descambou, aliás, em algumas das crenças mais heterodoxas hoje adotadas pelos Arautos do Evangelho, segundo o depoimento entregue à Santa Sé. Na ocasião, algumas mulheres da Ordem Segunda foram dadas como possuídas, de acordo com os padrões não-canônicos de Clá Dias. Como que em um passe de mágica, os “demônios” começaram a revelar toda sorte de conspirações feitas contra o Monsenhor. Aos poucos, outras figuras do além passaram a se comunicar com os tais videntes – entre eles, o próprio Plínio Correa e sua mãe, Lucília. “Paulatinamente, novas e mais alucinantes revelações começaram a aparecer. (…)”, relata o ex-membro. Convenientemente, essas vozes não param de aclamar a grandeza de Clá Dias, que passou a ser tratado por títulos usualmente atribuídos a Cristo, como “Cordeiro Imolado”, “Senhor dos Senhores” e, por fim, “Pontífice Eterno”. Entre os recados do além endereçados ao Pontífice João (MJC) está o aviso de que, em salas escondidas no Vaticano, o “antipapa” Francisco trama planos contra o próprio Monsenhor através de rituais satânicos realizados na Basílica de São Pedro. Procurado por VEJA, o grupo não se pronunciou.

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