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“Vivo exilado em meu próprio país”

Francisco procurou o Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos ao receber ameaças, mas encontrou um programa ineficaz

Por Júlia Rodrigues
4 dez 2011, 14h04

Presidente de uma organização não-governamental que fiscaliza gastos públicos, Francisco Fernandes da Silva é um homem marcado para morrer. Depois de denunciar um esquema de corrupção montado em Antonina do Norte, cidade cearense de 7 mil habitantes a 473 quilômetros de Fortaleza, passou a receber ameaças e foi espancado no Carnaval deste ano. Incluído em julho no Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PPDDH), Francisco não deveria, em tese, se preocupar com a própria integridade física ou de sua família. Na prática, existem motivos de sobra para continuar amedrontado.

Se o programa funcionasse conforme o prometido, ele teria direito a uma espécie de kit segurança: telefone, bina, ronda policial nos locais onde mora e trabalha, colete à prova de bala e transporte seguro – seja lá o que for isso – para circular pela cidade. Tudo por conta do governo. A assistência recebida se limitou a 1.800 reais divididos em três parcelas de 600 reais. “Estou completamente abandonado pelo programa”, resume. “O governo alega ter um dos melhores programas de proteção do mundo, mas tudo não passa de uma farsa”.

A luta contra o prefeito e os vereadores de Antonina do Norte começou em 2008, quando Francisco criou um perfil no Orkut para denunciar os abusos que havia testemunhado. A página utilizada para difundir as revelações demorou menos de um mês para atingir a marca máxima da rede social: mil amigos. O sucesso na internet o incentivou a alçar voos mais ousados. Amparado por ONGs especializadas no combate à corrupção, Francisco resolveu fundar em 22 de dezembro de 2009 sua própria organização: o Movimento Popular Alerta Antonina do Norte (Mopaan), que fecharia as portas em 2011 em decorrência das represálias sofridas.

Edison Afonso, ex-prefeito de Antonina do Norte
Edison Afonso, ex-prefeito de Antonina do Norte (VEJA)
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Desde o nascimento, a Mopaan manteve sob estreita vigilância a movimentação financeira da prefeitura de Antonina. Nos primeiros 11 meses, os 26 integrantes denunciaram irregularidades encontradas na gestão do então prefeito Edison Afonso (PSB) – cassado em outubro deste ano por compra de votos nas eleições de 2008. Entre as descobertas, destacam-se irregularidades envolvendo desvio de verbas destinadas à saúde e educação, contratação de empresas de fachada e, sobretudo, falcatruas no transporte escolar.

Em 2009, o município repassou para uma empresa chamada A.P.B.J. Construções, Indústria, Comércio e Serviços de Mão-de-Obra LTDA 250 mil reais, referentes à locação de veículos para transporte escolar e prestação de serviços junto à Secretaria de Educação. A empresa, cujo leque de atividades é tão amplo quanto o nome, não tem um veículo sequer. O que se vê em Antonina são crianças transportadas em caminhões pau-de-arara – os caminhões estão registrados em nomes de parentes de vereadores.

No mesmo ano, a A.P.B.J. foi contratada para reformar escolas públicas. Apesar de ter recebido da prefeitura 14 mil reais por escola reformada, só mudou a cor das paredes. Durante as investigações, Francisco descobriu que a sede da empresa fica em uma pequena sala nos fundos de um posto de combustível de Juazeiro do Norte, a 130 quilômetros de Antonina.

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Na tentativa de sanar o problema – lê-se jogar a sujeira para baixo do tapete -, o ex-prefeito concedeu a uma construtora a responsabilidade de levar as crianças para a escola. Em 2010, a prefeitura de Antonina do Norte gastou 475 mil reais no aluguel de veículos da empresa Construtora Cruz & Tenório Ltda. A situação, todavia, continuou a mesma. Um relatório do Tribunal de Contas do Município entregue à Polícia Civil constatou que um dos caminhões utilizados para transportar as crianças pertence ao vereador Silvio Sampaio Neto (PSB).

As descobertas da Mopaan desencadearam o pesadelo vivido por Francisco, que em novembro de 2010, passou a sofrer ameaças de morte em telefonemas anônimos. Vereadores de Antonina endossaram as ameaças durante sessão na Câmara. Desde então, o alvo permanece escondido. Foram meses trocando de cidade até se estabelecer no local que está hoje. “Vivo exilado em meu próprio país”, desabafa. “Nem minha mãe sabe onde moro”.

Em 4 de março, sexta-feira de Carnaval, Francisco foi espancado e ameaçado de morte em público por um grupo chefiado por Severino Afonso de Carvalho (irmão do ex-prefeito Edison Afonso). Como o posto policial de Antonina do Norte se recusou a atendê-lo, Francisco teve de recorrer a delegacias de cidades vizinhas para registrar queixa.

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No mês seguinte, o promotor de Juazeiro do Norte conseguiu incluir o presidente da Mopaan no Programa de Proteção a Testemunhas (Provita) do governo federal. Insatisfeito com as exigências, ele recusou a ajuda. “Queriam que eu me isolasse completamente do mundo e não dariam garantias de que minhas acusações contra o prefeito seguiriam adiante”, exemplificou. “Eu recusei. Não vou abandonar a luta contra a corrupção”.

Outro fator que contribuiu para que Francisco recusasse a ajuda foi a incerteza quanto à continuidade do estudo dos filhos. Pai de três garotos de 11, 15 e 20 anos, ele queria garantir que o primogênito, estudante de direito e bolsista do Prouni, terminasse a faculdade. “O Provita disse que não poderia afirmar que meu filho seria transferido para outra universidade”.

Em julho, o Ministério Público convenceu também o Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PPDDH) a atender Francisco. Mas não chegou nenhum tipo de proteção ou ajuda – financeira, médica ou psicológica. Francisco diz que os dirigentes do programa garantiram que reembolsariam os gastos que ele teve para refugiar-se com a família para outro canto do país além dos demais benefícios oferecidos pela secretaria. De julho a agosto, ele recebeu da ONG Centro Popular de Formação da Juventude 600 reais por mês. Os recibos informam que o valor se prestaria a custear “quatro diárias para a hospedagem”.

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Crianças transportadas por caminhão pau-de-arara
Crianças transportadas por caminhão pau-de-arara (VEJA)

Aos 48 anos e aposentado por invalidez em consequência de uma artrose no fêmur, Francisco garante que nunca se hospedou em hotel algum e que as três parcelas de 600 reais estão muito aquém do que desembolsou. Com a mesma ênfase, afirma que nunca recebeu qualquer assistência por parte do PPDDH. “O governo não sabe nem meu endereço”, registra. “Não confio no programa. Além de nunca terem se interessado pelo meu caso, pertencem ao governo. Justamente quem quer me matar”.

Uma nota enviada ao site de VEJA pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República sustenta que o Centro Popular de Formação da Juventude é a única ONG que mantém convênio com o programa de proteção. A instituição é responsável pelo acolhimento provisório emergencial e pela contratação de equipe técnica federal que atende os ameaçados de morte nos estados que o programa não abrange, como é o caso do Ceará.

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A parceria entre a Secretaria de Direitos Humanos e o Centro Popular de Formação da Juventude começou antes mesmo da criação do Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, em 2006. Em seis anos, o governo federal firmou convênios com a ONG que superam 6 milhões de reais.

A ajuda financeira dada ao presidente da Mopaan aliviou a situação, mas está distante de resolvê-la. Além dos riscos a que se expõe todos os dias, Francisco ainda opera milagres para sustentar a família com os 1.200 reais da aposentadoria. “Em Antonina, eu não pagava aluguel e todos meus familiares criam animais ou têm algum tipo de plantação, não precisava me preocupar com alimentação”, lembra. “O dinheiro até sobrava”. Hoje, não é mais assim. Ele e a família se desdobram para conseguir pagar as contas básicas. “Estou passando necessidade”, revela. “É principalmente por conta disso que gostaria de contar com o programa do governo”.

Apesar de o presidente da Mopaan ter relatado o descaso com que se deparou à Secretaria de Justiça e Cidadania do Ceará e à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o órgão responsável pelo programa de proteção explicou, de maneira sucinta, que ignora a situação alegada por Francisco: “O auxílio é prestado diretamente a ele e até a presente data, o programa não recebeu qualquer reclamação do protegido”, afirma. “Qualquer ausência ou lacuna do programa deve ser informada à coordenação estadual do programa e, uma vez constatada, será resolvida”.

Apesar das sucessivas turbulências, Francisco segue no combate à corrupção. “Às vezes eu me arrependo de ter entrado nessa história”, diz contendo as lágrimas. “Mas se tivesse que fazer tudo de novo, sem dúvida faria”. Ele reitera que todos têm a obrigação de agir. “As pessoas gostam de falar mal, mas ninguém faz nada”, lamenta. “A luta contra a corrupção é dura. Se multiplicarmos por mil o número de ativistas que estão nessa batalha, ainda estaremos na metade do caminho”. E aproveita para dar um puxão de orelha nos manifestantes que se mobilizam só em feriados: “Passeata não basta. Tem que fiscalizar o governo”. Palavra de quem entende do assunto.

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