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Visão atrasada

Com Bolsonaro, há enorme risco de o Brasil se isolar e perder protagonismo em temas estratégicos do século XXI, como meio ambiente e direitos humanos

Por Marina Silva*
Atualizado em 30 jul 2020, 20h01 - Publicado em 7 dez 2018, 07h00

Depois do desastre econômico, social e ético que a polarização suicida entre as principais forças políticas do Brasil — PT e PSDB, coadjuvados pelo MDB e seus satélites — produziu no país, viveremos em breve sua maior obra-prima: o governo de Bolsonaro. Há grande possibilidade de que esse governo seja marcado pela destruição de parte importantíssima de nosso patrimônio natural e ambiental, pela perda brutal de reputação do país no exterior e por inserir o Brasil numa rota civilizatória de atraso, conflitos e isolamento.

Assim como os megaescândalos de corrupção mancharam a imagem do Brasil, agora, com a chegada de Bolsonaro, alguns conselheiros e uma barulhenta pseudointelectualidade de extrema direita, corremos sério risco de perder rapidamente posição, respeitabilidade e capacidade de influência para mediar negociações em alguns temas estratégicos da agenda do século XXI, como os assuntos relacionados ao meio ambiente e aos direitos humanos. Bolsonaro e seu time parecem não perceber quão importante foi, e continua sendo, para a imagem e para os negócios do Brasil o fato de termos parcialmente conseguido controlar o desmatamento da Amazônia desde 2004. Esse resultado foi fruto de anos de trabalho e acúmulo de competências no Estado brasileiro e nas mais diferentes instituições da sociedade.

Quando Bolsonaro ataca os ambientalistas, o Ministério do Meio Ambiente, o Ibama, o Instituto Chico Mendes, os povos indígenas e as comunidades tradicionais, e cogita deslocar a Funai do Ministério da Justiça para o Ministério da Agricultura, ele ameaça essas e muitas outras conquistas. Como autoproclamado nacionalista, deveria conhecer melhor a nossa história recente, prestar honras e fortalecer essas instituições que tanto tenta desmoralizar.

As ideias primárias de Bolsonaro, sem fundamento científico ou correspondência com a realidade fática, empurram o Brasil para um lugar em que o bom-senso se esvai e a insegurança e as incertezas minam o futuro de investidores da economia de baixo carbono e de outros potenciais parceiros, que desejam estabelecer relações sólidas com o Brasil, base para um novo ciclo de prosperidade condizente com os desafios e esperanças do século XXI. Ao contrário, corremos o risco de atrair uma nova leva de saqueadores de recursos naturais e especuladores predadores, com uma visão de desenvolvimento ultrapassada, que pode até criar uma bolha de atividades econômicas lucrativas no curto prazo, mas que deixará o seu rastro de estagnação socioeconômica e de manutenção da miséria e da desigualdade.

A solicitação de Bolsonaro a Temer protagonizou um dos maiores vexames diplomáticos da nossa história — cancelar o compromisso, assumido há apenas dois meses, de sediar a COP 25 em 2019 —, e isso é só uma amostra do rumo que as coisas tomarão em seu governo. A COP 25 será a última oportunidade para a ONU firmar um plano de ação sólido baseado em compromissos mais fortes das nações que integram o Acordo de Paris, visando a alcançar a meta sobre a elevação da temperatura do planeta: não ultrapassar o 1,5 grau até o fim do século.

Ao fazer o Brasil se comportar como uma nação de terceira categoria, ao arrepio da relevância dos processos multilaterais e convenções internacionais, apesar de sermos o quinto maior país em extensão territorial, a oitava maior economia e o maior detentor de florestas tropicais e biodiversidade do mundo, o futuro governo mostrou que o país ficou acéfalo nessa agenda, liderado por um presidente que nem sabe quanto desconhece sobre um tema tão importante como o aquecimento global.

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“Bolsonaro e sua equipe voltaram ao passado e não estão encontrando o caminho do presente e do futuro”

Suas declarações de que o Acordo de Paris atenta contra a soberania do Brasil e especialmente da Amazônia são uma coleção de chavões dos anos 1950, num desconhecimento sem precedentes a respeito da questão ambiental global. O Acordo de Paris é composto de compromissos voluntários assumidos por cada país, e o Brasil definiu os seus de modo soberano, após longa trajetória de amadurecimento institucional, que envolveu os ministérios de sucessivos governos, intensos diálogos com a sociedade, inúmeros estudos científicos, muitas audiências públicas para a aprovação de leis no Parlamento e um forte protagonismo da diplomacia brasileira nas reuniões internacionais por mais de 25 anos. Curiosamente, o próprio Bolsonaro votou pela aprovação do Acordo de Paris quando este foi ratificado por unanimidade pelo Congresso Nacional.

Por trás dessa decisão de não sediar a COP 25 está a descrença na existência do fenômeno do aquecimento global, a despeito das comprovações científicas, moldada por uma visão simplista do mundo e das relações internacionais. A ideia de que o aquecimento global, o Acordo de Paris, a proteção do meio ambiente e da Amazônia, em particular, são obras do marxismo internacional e de interesses antinacionalistas é assustadora, sobretudo, quando vem de pessoas que vão governar o Brasil neste desafiante e paradigmático século XXI.

O grau de isolamento do Brasil no conjunto das nações pode ser medido pelo resultado do encontro do G20, encerrado no último dia 1º em Buenos Aires, que produziu um documento histórico. Apesar do presidente americano Donald Trump, a maioria dos líderes das principais economias do mundo reafirmou seu compromisso com o combate ao aquecimento global e, explicitamente, com a irreversibilidade do Acordo de Paris. Esses líderes, que compreendem a gravidade da crise climática global, sabem que a economia de seu país e a população sofrerão ainda mais com os eventos climáticos extremos que hoje já são altamente preocupantes, pois serão mais frequentes e mais potentes, produzindo cada vez mais prejuízos humanos, sociais e econômicos.

O Brasil, que já amarga um grave atraso tecnológico, agora corre o risco de perder a possibilidade de inserir-se na corrida pelo desenvolvimento de tecnologias de geração e conservação de energia renovável, restauração florestal e recuperação de biomas degradados. Um país que tem uma economia altamente dependente dos recursos naturais e do clima sofrerá graves dificuldades em sua trajetória de desenvolvimento se não se preparar a tempo. Bolsonaro e sua equipe precisam urgentemente atualizar seus conceitos de segurança nacional, de soberania e de conservação ambiental. Numa viagem no tempo, eles regressaram ao passado e não estão encontrando o caminho do presente e do futuro.

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A ameaça à nossa segurança nacional passa, nos dias de hoje, pela ação de grupos transnacionais altamente eficientes em promover danos gigantescos às economias e extremo sofrimento às pessoas, ricas ou pobres. Eles não dão tiros nem usam bombas, mas com suas decisões políticas equivocadas e sua visão de curtíssimo prazo são capazes de produzir crimes de lesa-humanidade, tais como provocar secas prolongadas e enchentes arrasadoras; matar milhões de pessoas e animais pelo excesso de frio ou de calor ou pela criação de condições que favorecem surtos de doenças; destruir infraestruturas de bilhões de dólares e arrasar a produção de alimentos. Afetam negativamente a democracia e o equilíbrio entre as nações, deslocando milhões de migrantes mundo afora e deixando as fronteiras vulneráveis a todo tipo de conflito e de quebra dos direitos humanos.

Com a escolha de Sergio Moro para a Pasta da Justiça, esperamos um combate implacável e estrutural à corrupção em todas as suas formas no Brasil. Contudo, para combater as ideias corrompidas do presidente e de seus assessores quanto ao meio ambiente e ao desenvolvimento, só mesmo uma opinião pública vigilante e combativa, num ambiente de liberdade democrática. Apenas neste ano, em razão do “liberou geral”, induzido pelo discurso do eleito, o desmatamento já atingiu seu maior patamar em uma década, e a tendência para 2019 é que ele aumente ainda mais. Políticas equivocadas são triplamente prejudiciais, pois afetam os que as praticam, os que as apoiam e os que delas são apenas vítimas. Tudo isso é mais do que preocupante, é assustador.

* Marina Silva (Rede), candidata à Presidência nas últimas eleições, é ambientalista, ex-senadora (1995-2011) e ex-ministra do Meio Ambiente (2003-2008)

Publicado em VEJA de 12 de dezembro de 2018, edição nº 2612

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