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Universidade na mira

O corte de verbas do ensino superior vem revestido de ideologia, mas não traz proposta concreta para pôr as instituições federais entre as melhores do mundo

Por Maria Clara Vieira Atualizado em 10 Maio 2019, 07h00 - Publicado em 10 Maio 2019, 07h00

Ao ser sabatinado por senadores na terça-feira 7 sobre o vultoso corte de verbas previsto para as universidades federais, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, mordeu com voracidade: “É sacrossanto o orçamento? Não podem economizar nenhuma migalha?”, perguntou, para em seguida assoprar. “Tudo vai depender do andar da economia. Talvez nem haja cortes.”

O que está em jogo é o contingenciamento (ou seja, congelamento até segunda ordem) neste ano de 30% dos recursos destinados ao custeio das 63 universidades sob a guarda do Ministério da Educação, porcentual que, subtraído assim de supetão, pode comprometer seu funcionamento. Enfurecida, a comunidade acadêmica traçou cenários dramáticos e saiu às ruas. O governo não se abalou: podar as asas das federais (“ineficientes” e “esquerdistas”) é uma ideia presente desde sempre no púlpito do presidente Jair Bolsonaro, que capitalizou o movimento: numa só tacada, fez a alegria de sua base conservadora e da ala liberal.

Nos últimos tempos, a temperatura foi subindo via tuítes do guru Olavo de Carvalho e do filho Zero Dois, Carlos Bolsonaro. Olavo já se referiu às universidades como “centros de distribuição de drogas”, de “geração da ignorância” e de “propaganda comuno-­petista”. Na segunda-feira 6, à margem da fissura que o anúncio dos cortes causara, o presidente visitava um colégio militar no Rio de Janeiro (que, como seus similares, não sofrerá corte algum) quando foi abordado por estudantes do tradicional Colégio Pedro II, também federal e na mira da faca de Weintraub. Carlos postou na mesma hora, escancarando a batalha ideológica: “Pedro II: de um dos melhores colégios do Rio a um dos principais polos formadores de militantes políticos da esquerda”.

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O clima de hostilidade às instituições federais não deixa claro o que, afinal, a corte bolsonarista pretende — se vai sacudir ranços genuínos nas universidades ou se tudo não passa da rasa intenção de “desconstruir muita coisa”, como já disse o presidente em relação ao que foi construído antes dele. Há várias demonstrações de que o diagnóstico do governo não é lá muito preciso. Em meio à confusão dos cortes, o ministro afirmou que o maior quinhão da pesquisa nacional vem das universidades particulares. Errou feio: 95% dela se dá nas universidades públicas sob sua administração. O ministro Weintraub se saiu com outra: quis penalizar três universidades pelo fato de seu desempenho acadêmico ter piorado (também errou feio, pois o desempenho delas melhorou) e por acolherem “balbúrdia” no câmpus, que seria promovida em “eventos ridículos” com “gente pelada”. Causou ele próprio uma balbúrdia que só serviu para incendiar o elo já conflituoso entre academia e governo e enfatizar a falta de consistência na crítica.

DESCASO - O Hospital Universitário Clementino Fraga, no câmpus da UFRJ, em 2018 (Márcia Foletto/Agência O Globo/.)

A tesoura oficial chegou à pós-graduação na quarta-feira 8, suscitando apreensão adicional. As paulistas USP, Unicamp e Unesp vieram a descobrir, sem aviso prévio, que bolsas que seriam preenchidas por novos alunos de mestrado e doutorado não estavam mais disponíveis. Essas vagas foram liberadas por estudantes que concluíram seus cursos em 2018. Em uma lógica de normalidade, iriam para outros candidatos em 2019, mas foram enquadradas como “ociosas” pela Capes, que repassa os recursos para a pesquisa. Em nota, a USP tentou amainar os ânimos, mas reconheceu o momento de “preocupação”. A Capes não precisou o número de vagas subtraídas e garantiu que “nenhum bolsista já cadastrado foi retirado”. Por ora, é isso, mas o temor geral é que o pior ainda está por vir.

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Em uníssono, os reitores garantem que, se houver mesmo derretimento de recursos no segundo semestre, as universidades passarão a operar abaixo da linha da dignidade. Terão menos material para pesquisa e ficarão à míngua para pagar até água e luz. “O risco de não conseguirem abrir as portas é real”, alerta Reinaldo Centoducatte, reitor da Federal do Espírito Santo e presidente da Andifes, associação que reúne os dirigentes das instituições federais de ensino superior (veja o depoimento de mais reitores ao longo desta reportagem). “É possível melhorar a gestão de recursos, sem asfixiar as universidades desse jeito”, pondera Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências. Davidovich toca em um ponto crucial: propor uma reflexão bem embasada sobre o modelo de universidade pública no Brasil é válido; sair chutando números e decepando orçamentos sem nenhum plano ou ideia não é.

BUROCRACIA - Laboratório da UFMG: excesso de normas freia a pesquisa (Leo Drumond / NITRO/.)

O que deveria ser um debate qualificado caiu no vazio. Ninguém no governo mencionou, por exemplo, o arcabouço legal que reforça a dependência das universidades do caixa federal. Elas vivem sob amarras básicas de gestão — é difícil contratar, demitir, comprar materiais — e penam quando tentam amealhar verbas extras, já que as regras de contratos com o setor privado são pouco claras. Em 2016, a Lei do Teto de Gastos estreitou ainda mais os horizontes ao estabelecer que, se a arrecadação da universidade ultrapassar certo valor, o excedente deverá ser devolvido à União. Por essa razão, a Universidade de Brasília deixou de faturar 99 milhões de reais em 2018, produto de consultorias externas prestadas por seus quadros. “Fica uma mensagem ruim: por que a universidade vai se esforçar para ganhar dinheiro se não pode dispor dele?”, provoca o professor de economia Roberto Ellery, que atuou no setor de captação de recursos da UnB.

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O mesmo governo que clama por eficiência põe freios nas universidades. Em janeiro deste ano, o Congresso aprovou a criação de fundos para arrecadar doações de ex-alunos, empresas e entidades filantrópicas. Para se ter uma medida do potencial, a Universidade Harvard, entre as melhores do mundo, conta com um fundo desses na casa de 36 bilhões de dólares. A boa-nova, porém, não veio por inteiro: o presidente vetou o artigo que previa benefícios tributários aos doadores, um motor e tanto para a atração de dinheiro. “O brasileiro não tem o costume de apoiar a ciência. A lei facilitaria muito a filantropia”, avalia o sociólogo Simon Schwartzman.

Uma prática comum em outros países para financiar o ensino universitário público é cobrar mensalidades, sobretudo dos alunos que podem pagar. O assunto, vira e mexe, entra no debate brasileiro e é rechaçado por ferir a ideia de que a gratuidade é uma mola de ascensão social. O antecessor de Weintraub, Ricardo Vélez, manifestou abertamente sua simpatia pela proposta; o hoje ministro já se disse contrário. A turma mais liberal do governo abraça a causa e rebate o argumento da injustiça social: o que é injusto, para esse grupo, é aula de graça para quem pode pagar. Não há resposta fácil para esse debate. Um estudo que a Andifes divulgará na quinta-feira 16 mostra que 70% dos estudantes das federais têm renda per capita de 1,5 salário mínimo e não poderiam arcar com as mensalidades. “Seria uma medida pouco efetiva e que ainda por cima iria contra uma garantia constitucional”, diz o professor Nelson Amaral, da Federal de Goiás, que participou do estudo. Já o economista Ellery, da UnB, calcula que, se metade dos 40 000 alunos da universidade pagasse 2 000 reais por ano, o estrago do atual corte de 38 milhões de reais estaria neutralizado.

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A ORIGEM –  Manifestação contra censura na UFF: atritos desde a campanha (Kevin David/A7 Press/Folhapress)

O modelo em vigor nas universidades federais, criado em 1920, quando a primeira abriu as portas no Rio de Janeiro, dá claros sinais de esgotamento. As instituições brasileiras estão a anos-luz das melhores nos rankings mundiais, jamais emplacaram um Prêmio Nobel (a vizinha Argentina tem cinco) e várias estão caindo aos pedaços por um misto de ineficiência na gestão e bolor burocrático. Um exemplo bem cotidiano: um cientista daqui leva no mínimo três meses, em um processo de nove etapas que ele mesmo percorre, para obter um simples reagente; nos países da OCDE, em apenas uma semana a encomenda chega ao laboratório.

É verdade que houve progressos, mas eles são ainda vagarosos perto da pulsante produção das universidades no topo da academia mundial. O Brasil é o 13º país entre 190 no ranking de publicações de artigos científicos, segundo levantamento da consultoria internacional Clarivate Analytics. Duas décadas atrás, encontrava-se em vigésimo. O gargalo maior está em converter o conhecimento em patentes e riqueza. Nesse termômetro, o Brasil está bem aquém do desejado — patina na 64ª posição, entre 126 nações, no Índice Global de Inovação. Falta uma aproximação mais efetiva entre as universidades e o mundo exterior: apenas 1% das pesquisas publicadas entre 2011 e 2016 foi produzido em colaboração com a indústria. Uma razão é a desconfiança que certos núcleos da academia nutrem em relação à iniciativa privada. “As universidades brasileiras com melhores resultados são as que aprenderam que não é pecado fazer convênios com empresas”, diz o consultor Cláudio Monteiro.

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O primeiro grande impulso às universidades federais veio no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), que plantou dez delas, mas o salto mesmo ocorreu na ditadura militar, que via nessas escolas — corretamente — uma engrenagem para fazer do Brasil uma grande potência. O dinheiro começou a rarear nos tempos de João Figueiredo, quando houve a primeira de uma série de demoradas greves que se sucederiam ao longo das décadas. Lula foi o presidente que deu mais fermento às universidades federais, inaugurando catorze em seus dois mandatos. E o número de alunos duplicou. Em 2014, porém, veio o primeiro abalo no orçamento, produto da crise fiscal da era Dilma Rousseff. Desde então as verbas às vezes sobem, às vezes descem. Nesta descida de agora, o corte chegará a estratosféricos 2,2 bilhões de reais — o maior da história.

ESTÁ NA HISTÓRIA –  Greve das universidades em 1980: já havia cortes (Pedro Martinelli/VEJA/Dedoc)

Uma justificativa dada pelo ministro Weintraub para decepar o orçamento das universidades é que assim conseguirá transferir recursos para o prioritário ensino básico. Em teoria, um raciocínio razoável, tirando dois probleminhas de ordem prática: 1) essa transferência, que envolve estados e municípios, é bastante complexa; e 2) o orçamento da própria educação básica também foi ceifado em meio bilhão de reais. Há chance de que esses bilhões reapareçam dentro do jogo político, quando prefeitos, governadores e parlamentares baterem à porta da Casa Civil de Onyx Lorenzoni. Quanto às universidades, o MEC informa que “os cortes decorrem da necessidade de o governo se adequar à meta de resultado primário de teto de gastos” e que o bloqueio pode ser revisto “caso a reforma da Previdência seja aprovada e as previsões de melhora da economia se confirmem”.

Desde a campanha presidencial bolsonaristas e universitários se estranham. Numa decisão errática, a Justiça chegou a mandar retirar uma faixa com a palavra “antifascista” estendida por alunos na Federal Fluminense, que protestaram contra o que chamaram de censura. No caso de Weintraub, um ressentimento latente contra a esquerda universitária permeou sua carreira. No domingo 5, o ministro que confunde “C” com “S” e Kafka com kafta achou por bem até divulgar um vídeo na internet em resposta ao vazamento (obra dos inimigos de sempre, claro) de um boletim com notas baixas em seus primórdios na graduação de economia na USP. Explicou que havia atravessado um ano duro, em que inclusive sofrera um acidente e pusera pinos — e, nesse ponto, abriu a camisa e mostrou a cicatriz deixada pela cirurgia. É um capítulo de uma briga ideológica cujo resultado é sempre nada, ou menos. “De fato há uma hegemonia do pensamento de esquerda no meio universitário, sobretudo na área de humanas. A resposta não está em cortar verbas, mas em estimular o pluralismo evitando os extremos”, diz o doutor em filosofia pela USP Eduardo Wolf. Simples assim.

Publicado em VEJA de 15 de maio de 2019, edição nº 2634

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