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Totalitarismo kitsch

A esclarecedora atualidade do mau gosto na política

Por José Francisco Botelho
Atualizado em 3 Maio 2019, 07h00 - Publicado em 3 Maio 2019, 07h00

Há palavras que, embora vagas ou de sentido confuso, obcecaram gerações, transformaram paisagens, abriram ou encerraram capítulos na história: uma delas é o kitsch, insulto volátil que ao longo do último século atormentou a cultura ocidental. Suas origens são incertas — mas sabe-se que nasceu em alemão, talvez com influxo do iídiche. Para alguns historiadores, o termo surgiu nos ateliês de Munique por volta de 1870, significando a obra de arte barata, vendida como suvenir ou feita para agradar ao gosto da pequena burguesia. Na década de 30, o crítico Clement Green­berg descreveu o kitsch como o oposto da vanguarda; o alvo principal de seu petardo era a pintura figurativa. Outros definiram o kitsch como qualquer recurso à sentimentalidade excessiva: para Theodor Adorno, ele é “o besteirol açucarado, a beleza sem sua contraparte de feiura”.

O kitsch virou tabu estético — mas, na falta de uma definição final, qualquer um poderia tornar-se um herege sem saber. A fuga desarvorada a essa mácula misteriosa acabou virando, ela própria, uma espécie de clichê: hoje qualquer portaria de prédio pode amanhecer adornada com uma pintura abstrata sem que as concepções existenciais dos moradores sejam sacudidas de forma profunda. No mundo das artes, o conceito de kitsch envelheceu mal, e talvez seja hora de guardá-lo por um tempo na gaveta; mas há uma área da ação humana em que a ideia do mau gosto essencial, metafisicamente insidioso, continua atual e esclarecedora: a política.

Devemos ao romancista checo Milan Kundera uma das melhores passagens sobre o assunto. Assim escreveu ele em A Insustentável Leveza do Ser, de 1984: “O kitsch é o ideal estético de todos os políticos, e de todos os partidos e movimentos políticos. Quem vive em uma sociedade onde várias tendências políticas existem lado a lado e onde influências antagônicas cancelam-se ou limitam-se mutuamente pode dar um jeito de mais ou menos escapar à inquisição do kitsch: o indivíduo pode preservar sua indivi­dualidade; o artista pode criar obras fora do padrão. Mas, assim que um único movimento político toma o poder, nós nos achamos no reino do kitsch totalitário”.

Não sei quanto concordo com a primeira frase da citação; mas não tenho dúvida de que a última esteja correta. O kitsch político ocorre quando o discurso sobre assuntos públicos incorpora os trejeitos da má ficção: a catarse fácil, a santimônia sentenciosa, a negação triunfal das complexidades da vida. Em seu romance, Kundera se referia à uniformização dos espíritos sob a antiga União Soviética, mas todas as doutrinas e ideologias tendem a desenvolver seu kitsch particular.

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Afinal, quem não se encantaria com um deus ex machina nas coisas reais? Cedo ou tarde, todos acabam acreditando que nossas agruras possam se resolver num lance de vulgaridade narrativa, sem o empecilho dos fatos, esses esnobes estéticos. Nesse sentido, podemos aplicar ao kitsch político algo que Roger Scruton escreveu sobre o kitsch musical: “É a pretensão do sublime, sem o esforço necessário para chegar lá”.

Publicado em VEJA de 8 de maio de 2019, edição nº 2633

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