Sem rumo e sem propostas, oposição enfrenta seu pior momento
Sem estratégias de atuação, em minoria e ainda dividida, a esquerda amarga derrotas
Passados sete meses do mandato de Jair Bolsonaro, a oposição ainda não mostrou força para se contrapor ao governo. Um dos motivos é o tamanho de suas bancadas. Na Câmara, apenas 132 dos 513 deputados são oposicionistas (quase todos de esquerda). No Senado, só dezesseis dos 81 senadores estão nesse time. Não bastasse a desvantagem numérica de suas tropas parlamentares, a oposição cultiva a própria debilidade ao não apresentar propostas para o país e envolver-se em disputas internas de poder. O caso da reforma da Previdência é emblemático. Logo no início da tramitação do texto, líderes da oposição se declararam contrários às mudanças encaminhadas, apesar de reconhecerem a situação de calamidade das contas públicas. Com discursos no plenário, tentaram insuflar a população a aderir à resistência à reforma, sob a alegação de que esta, se aprovada, pesará mais sobre os ombros dos mais pobres. Deu em nada — para sorte dos brasileiros. A Câmara aprovou o texto-base, em primeiro turno, com 379 votos.
Derrotas assim inapeláveis costumam resultar em mudança de estratégia e até em mea-culpa. Com a oposição não funciona dessa maneira. Em entrevista recente, o líder da oposição na Câmara, deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), disse que a população não saiu às ruas contra a reforma porque não compreendeu o que está em jogo. A tese é controversa. De duas, uma: ou a população não compreendeu porque a mensagem oposicionista não foi clara e cristalina ou não só compreendeu como decidiu trilhar um caminho diferente do sugerido pelos oposicionistas. A segunda opção parece mais razoável. Segundo pesquisa recente do Datafolha, o número de brasileiros que apoiam a reforma da Previdência subiu de 41% para 47% entre abril e julho. Já o porcentual dos que rejeitam a iniciativa caiu de 51% para 44% no mesmo período. Apesar do placar elástico registrado no primeiro turno, Molon também defendeu a tese de que seu grupo saiu vencedor da votação ao impedir que o regime de capitalização prosperasse e que fossem modificadas regras para a concessão de benefícios assistenciais, pontos que eram defendidos pela equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes. Essa avaliação encerra outro mal crônico da oposição: o autoengano.
Tanto a capitalização quanto as alterações em benefícios caíram por obra do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e dos partidos do chamado Centrão, que juntos determinam os destinos das votações no plenário da Casa. Os oposicionistas foram meros coadjuvantes no enredo. Sem fazer oposição ao governo, Rodrigo Maia, um expoente do centro na política, é hoje o principal contraponto a Bolsonaro, que lidera a direita radical. A disputa se dá entre eles, com a esquerda, que governou o país de 2003 a 2016, completamente escanteada. “As esquerdas estão perdidas. Não tiveram uma leitura do processo eleitoral em 2018, perderam e, de lá para cá, não souberam se refazer. É sintomático que na discussão da reforma da Previdência nem o PT, que esteve no governo e fez a sua, nem o PDT, em cujo programa de governo constava uma reforma previdenciária, tenham apresentado alternativas, sem propor nenhuma outra discussão”, diz o cientista político Paulo Baía, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “A proposta alternativa acabou saindo do Centrão”, acrescenta.
Retumbante, a derrota na Câmara provocou fissuras. Dos 32 deputados do PSB, onze se manifestaram a favor da reforma da Previdência. Dos 27 do PDT, oito fizeram o mesmo. Desde então, as duas legendas estudam punir aqueles que descumpriram a decisão partidária de votar contra o texto. O PDT — cujo candidato à Presidência em 2018, Ciro Gomes, defendeu uma reforma da Previdência na campanha — já abriu processo contra os desertores da sigla. Eles estão suspensos de qualquer atividade partidária e podem ser substituídos nas comissões da Câmara. Também correm o risco de ser expulsos do partido. A decisão foi tomada pelo presidente do PDT, Carlos Lupi, aquele que foi demitido do cargo de ministro do Trabalho, durante a chamada faxina ética, pela então presidente Dilma Rousseff. Entre os oito processados pelo PDT, está a deputada Tabata Amaral (SP). Egressa de um movimento de renovação política, Tabata mostrou desde o início do mandato uma postura independente, escapando da armadilha do Fla-Flu que impera na política brasileira. Resultado: passou a ser atacada tanto pela esquerda como pela direita, tanto por governistas como por oposicionistas.
Antes da votação da Previdência, o PDT a considerava um trunfo, uma lufada de renovação em sua imagem desgastada. Agora, julga-a uma traidora. O recado da cúpula partidária é claro: se Tabata repetir o voto no segundo turno, será expulsa. É tudo o que querem outras legendas, como o DEM e o PSDB, que a cortejam abertamente. Festejada como um exemplo da “nova política”, a deputada já incorreu em prática típica da “velha política”. Conforme revelado pelo site de VEJA, ela contratou com dinheiro público, proveniente do fundo de financiamento eleitoral, o seu namorado, o colombiano Daniel Alejandro Martínez, para prestar serviços à sua campanha nas eleições do ano passado. Martinez recebeu 23 000 reais. Tabata explicou, numa rede social, que seu namorado abriu mão de propostas de emprego para trabalhar na campanha e realmente se empenhou na disputa. “Além de todos os documentos que ele gerou, são centenas de voluntários que ele coordenou e que até hoje têm seu número pessoal. Reafirmo minha gratidão ao Daniel e a toda a equipe que esteve ao meu lado durante a campanha, que abriram mão de muitas coisas por acreditarem em um sonho coletivo.”
Para o cientista político Paulo Baía, o PDT e a oposição erram ao jogar nos braços da direita uma parlamentar que tenta estabelecer diálogos para além de seu campo político — e que evita a polarização e o sectarismo. “Deveria ser o papel do Ciro Gomes, que ficou em terceiro lugar nas últimas eleições, apontar o caminho que fuja da dicotomia PT e Lula versus PSL e Bolsonaro, mas sua atuação é caricata. Ao contrário, a parlamentar, apesar de nova, e talvez por isso, vinha rompendo com os radicalismos de lado a lado. Ela sairá ainda maior desse processo”, afirma Baía. Além de fustigarem Tabata, Ciro e o PDT disputam com o PT o protagonismo no campo da esquerda e, assim, a liderança da oposição ao governo Bolsonaro. Os petistas ainda têm de lidar com uma queda de braço interna, em que se confrontam os defensores do mantra “Lula livre” e os advogados de uma renovação das bandeiras e do discurso do partido, em processo que poderia ser capitaneado pelo ex-ministro Fernando Haddad. Até aqui, é cada um por si — e todos contra todos.
Diz um dos mais influentes parlamentares nos governos petistas: “Pelos erros do governo Dilma, pelo erro de colocar no centro do debate o que chamou de golpe e depois o “Lula livre”, sem nenhum projeto para o Brasil e com pouca capacidade de mobilização social, o PT se isolou e vai se isolar mais ainda. O Ciro, o PDT, o PCdoB e o PSB não acertaram a mão, como fica claro na reforma da Previdência. Eu não acredito que essa esquerda resolva os seus problemas e vire alternativa para a sociedade”. O diagnóstico é preciso. Bolsonaro também não acredita. Talvez por isso, como diz a reportagem anterior, ninguém faça mais oposição de fato ao seu governo do que ele próprio, seus filhos, o guru Olavo de Carvalho e o seu partido, o PSL.
Colaborou Nonato Viegas
Publicado em VEJA de 31 de julho de 2019, edição nº 2645