Secretaria de Cultura amplia aval a projetos religiosos via Lei Rouanet
Reduto bolsonarista que vai com fé na guerra ideológica, a pasta teve aumento expressivo no número de iniciativas desse tipo, segundo levantamento de VEJA
O secretário especial de Cultura, o ex-ator de Malhação Mario Frias, costuma repetir que a palavra “cultura” tem sua origem em “culto” — a rigor, vem do latim colere (cultivar) —, termo que dá nome às reuniões de fiéis em templos. “A cultura é um insight espiritual de primeira grandeza, é o evento teofânico (manifestação divina) em que o culto (cultura) brota em uma sociedade e define todos os demais aspectos da existência humana”, disse em julho na reunião de ministros da Cultura do G20, em Roma. A referência é um aceno aos religiosos, que constituem uma base fundamental de apoio ao governo Bolsonaro, em especial os evangélicos. O secretário não perde a oportunidade de mostrar sua fé: ele já descreveu o Brasil como uma “nação majoritariamente cristã” e prometeu que o orçamento de sua área refletiria esse ponto de vista.
Sucessor da atriz Regina Duarte no setor, o ex-ator de Malhação vem sendo muito questionado desde a posse devido à inexpressividade de seu currículo. Frias só não pode ser criticado por descumprir a promessa de transformar a cultura em um instrumento da guerra ideológica bolsonarista — em prejuízo de uma visão mais ampla e arejada da ação do Estado no fomento à cultura. Levantamento feito por VEJA constatou um aumento expressivo no número de iniciativas com teor religioso que tiveram aval para a captação de dinheiro via isenção fiscal permitida pela Lei Rouanet: foi de um projeto em 2020 (Frias assumiu em junho) para dezenove neste ano (veja o quadro).
A lista inclui peças de teatro com personagens bíblicos, festivais com temática cristã, livros e filmes sobre santos, álbuns de música gospel e oficinas musicais ou pedagógicas capitaneadas por entidades religiosas. Uma produtora, a Oinc Filmes, teve a chance de captar 187 000 reais para shows de inspiração religiosa com público infantil, que reúnem hits como Cristo Ama as Criancinhas e O Céu É um Lindo Lugar. A companhia de teatro BR116 vai poder buscar 997 000 reais para a peça Qohélet/O-Que-Sabe, baseada em um poema do livro de Eclesiastes. Dois cantores gospel, Thais Souza e Iago Santos, tiveram aval para obter 200 000 reais cada um para os seus discos.
Outra figura essencial na implementação dessa política é o assessor André Porciuncula. Capitão da Polícia Militar, ele já defendeu que a arte cristã ganhe espaço no fomento oficial. Nas redes sociais, Porciuncula publica trechos da Bíblia, elogia o escritor e astrólogo Olavo de Carvalho, guru da direita brasileira, e, ao lado do chefe Frias, posa empunhando armas. Até o início do ano, uma comissão julgava as propostas, mas o mandato dos 21 membros venceu em abril e Porciuncula passou a ser o único responsável pela aprovação. Adeptos da exótica mistura de fé e armas, a dupla age o tempo todo como se travasse uma espécie de “guerra cultural”, cujos inimigos mais citados são os anticristãos e o comunismo. O termo era usado à exaustão no início do governo, mas foi caindo em desuso com a saída de baluartes como o ex-ministro Abraham Weintraub (Educação). A Cultura acabou se tornando uma espécie de último reduto dessa cruzada.
Curiosamente, o uso da lei de incentivos fiscais está no alvo de Jair Bolsonaro e de seus seguidores mais radicais desde a campanha. Segundo o capitão, era preciso acabar com a “mamata da Rouanet” (tradução: dificultar a aprovação de projetos de artistas “de esquerda”). A dupla Frias e Porciuncula tem levado ao pé da letra a missão. O novo viés na secretaria pode ser sentido não só no aval, mas também na rejeição de projetos. Em julho, eles negaram o pedido do Festival de Jazz do Capão, que acontece há dez anos na Chapada Diamantina (Bahia), após o evento divulgar que teria caráter “antifascista”. “O objetivo e finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma”, diz trecho do parecer, citando frase atribuída ao compositor alemão Johann Sebastian Bach. Apoiada pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, a organização está recorrendo à Justiça. O escritor Paulo Coelho também entrou na polêmica e transferiu 145 000 reais de sua fundação para bancar o evento.
Essa tentativa de aparelhamento tacanho do setor cultural é uma marca registrada da era Bolsonaro e não ocorre de hoje. Entre outros episódios tristemente célebres do passado, houve o pronunciamento em que o ex-secretário Roberto Alvim reproduziu a estética e a frase de Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista (“A arte brasileira da próxima década será heroica e nacional”). Devido à avalanche de críticas, acabou sendo defenestrado do cargo. O governo também já teve na direção da Funarte um maestro que classificava o rock como “coisa do diabo”. A gestão atual da Lei Rouanet é o exemplo mais recente de direcionamento ideológico. Além de pôr em dúvida o uso de critérios técnicos para a distribuição de verba pública, ela representa mais um lamentável — e desnecessário — capítulo da confusão entre igreja e Estado promovida pelo atual governo.
Publicado em VEJA de 27 de outubro de 2021, edição nº 2761