Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Secretaria de Cultura amplia aval a projetos religiosos via Lei Rouanet

Reduto bolsonarista que vai com fé na guerra ideológica, a pasta teve aumento expressivo no número de iniciativas desse tipo, segundo levantamento de VEJA

Por Tulio Kruse 24 out 2021, 08h00

O secretário especial de Cultura, o ex-ator de Malhação Mario Frias, costuma repetir que a palavra “cultura” tem sua origem em “culto” — a rigor, vem do latim colere (cultivar) —, termo que dá nome às reuniões de fiéis em templos. “A cultura é um insight espiritual de primeira grandeza, é o evento teofânico (manifestação divina) em que o culto (cultura) brota em uma sociedade e define todos os demais aspectos da existência humana”, disse em julho na reunião de ministros da Cultura do G20, em Roma. A referência é um aceno aos religiosos, que constituem uma base fundamental de apoio ao governo Bolsonaro, em especial os evangélicos. O secretário não perde a oportunidade de mostrar sua fé: ele já descreveu o Brasil como uma “nação majoritariamente cristã” e prometeu que o orçamento de sua área refletiria esse ponto de vista.

Sucessor da atriz Regina Duarte no setor, o ex-ator de Malhação vem sendo muito questionado desde a posse devido à inexpressividade de seu currículo. Frias só não pode ser criticado por descumprir a promessa de transformar a cultura em um instrumento da guerra ideológica bolsonarista — em prejuízo de uma visão mais ampla e arejada da ação do Estado no fomento à cultura. Levantamento feito por VEJA constatou um aumento expressivo no número de iniciativas com teor religioso que tiveram aval para a captação de dinheiro via isenção fiscal permitida pela Lei Rouanet: foi de um projeto em 2020 (Frias assumiu em junho) para dezenove neste ano (veja o quadro).

arte Lei Rouanet

A lista inclui peças de teatro com personagens bíblicos, festivais com temática cristã, livros e filmes sobre santos, álbuns de música gospel e oficinas musicais ou pedagógicas capitaneadas por entidades religiosas. Uma produtora, a Oinc Filmes, teve a chance de captar 187 000 reais para shows de inspiração religiosa com público infantil, que reúnem hits como Cristo Ama as Criancinhas e O Céu É um Lindo Lugar. A companhia de teatro BR116 vai poder buscar 997 000 reais para a peça Qohélet/O-Que-Sabe, baseada em um poema do livro de Eclesiastes. Dois cantores gospel, Thais Souza e Iago Santos, tiveram aval para obter 200 000 reais cada um para os seus discos.

Outra figura essencial na implementação dessa política é o assessor André Porciuncula. Capitão da Polícia Militar, ele já defendeu que a arte cristã ganhe espaço no fomento oficial. Nas redes sociais, Porciuncula publica trechos da Bíblia, elogia o escritor e astrólogo Olavo de Carvalho, guru da direita brasileira, e, ao lado do chefe Frias, posa empunhando armas. Até o início do ano, uma comissão julgava as propostas, mas o mandato dos 21 membros venceu em abril e Porciuncula passou a ser o único responsável pela aprovação. Adeptos da exótica mistura de fé e armas, a dupla age o tempo todo como se travasse uma espécie de “guerra cultural”, cujos inimigos mais citados são os anticristãos e o comunismo. O termo era usado à exaustão no início do governo, mas foi caindo em desuso com a saída de baluartes como o ex-ministro Abraham Weintraub (Educação). A Cultura acabou se tornando uma espécie de último reduto dessa cruzada.

Continua após a publicidade
BARRADO - Festival de Jazz do Capão (BA): parecer cita Deus para negar recursos -
BARRADO - Festival de Jazz do Capão (BA): parecer cita Deus para negar recursos – (FestivJazzCapao/Facebook)

Curiosamente, o uso da lei de incentivos fiscais está no alvo de Jair Bolsonaro e de seus seguidores mais radicais desde a campanha. Segundo o capitão, era preciso acabar com a “mamata da Rouanet” (tradução: dificultar a aprovação de projetos de artistas “de esquerda”). A dupla Frias e Porciuncula tem levado ao pé da letra a missão. O novo viés na secretaria pode ser sentido não só no aval, mas também na rejeição de projetos. Em julho, eles negaram o pedido do Festival de Jazz do Capão, que acontece há dez anos na Chapada Diamantina (Bahia), após o evento divulgar que teria caráter “antifascista”. “O objetivo e finalidade maior de toda música não deveria ser nenhum outro além da glória de Deus e a renovação da alma”, diz trecho do parecer, citando frase atribuída ao compositor alemão Johann Sebastian Bach. Apoiada pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, a organização está recorrendo à Justiça. O escritor Paulo Coelho também entrou na polêmica e transferiu 145 000 reais de sua fundação para bancar o evento.

Essa tentativa de aparelhamento tacanho do setor cultural é uma marca registrada da era Bolsonaro e não ocorre de hoje. Entre outros episódios tristemente célebres do passado, houve o pronunciamento em que o ex-secretário Roberto Alvim reproduziu a estética e a frase de Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista (“A arte brasileira da próxima década será heroica e nacional”). Devido à avalanche de críticas, acabou sendo defenestrado do cargo. O governo também já teve na direção da Funarte um maestro que classificava o rock como “coisa do diabo”. A gestão atual da Lei Rouanet é o exemplo mais recente de direcionamento ideológico. Além de pôr em dúvida o uso de critérios técnicos para a distribuição de verba pública, ela representa mais um lamentável — e desnecessário — capítulo da confusão entre igreja e Estado promovida pelo atual governo.

Publicado em VEJA de 27 de outubro de 2021, edição nº 2761

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.