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Por que o fantasma da Usina de Belo Monte volta a assombrar Marina Silva

O projeto da hidrelétrica — a quarta maior do mundo e a segunda do Brasil — foi um dos motivos que a levaram a deixar o cargo em 2008

Por Victoria Bechara, Bruno Caniato 26 mar 2023, 08h00

Responsável pelo maior revés em sua longa e reconhecida história na militância ambiental, a Usina de Belo Monte volta a assombrar Marina Silva em seu retorno ao governo. O projeto da hidrelétrica — a quarta maior do mundo e a segunda do Brasil, atrás apenas de Itaipu — causou um desgaste com o presidente Lula quando ela comandava o Meio Ambiente no segundo mandato do petista e foi um dos motivos que a levaram a deixar o cargo em 2008 — depois, também romperia com o PT, ao qual era filiada desde 1985. Marina defendeu o adiamento do leilão e questionou a viabilidade do empreendimento, preocupada com os impactos ambientais e sociais na Amazônia — à época uma das pautas que mais mobilizavam os grupos ambientalistas. Não adiantou. Belo Monte saiu do papel em 2010, ainda sob Lula, quando foi concedida à empresa Norte Energia, e iniciou a operação em 2016, com Dilma Rousseff, uma defensora da obra e desafeta de Marina. A implantação definitiva ocorreu em 2019, quando Jair Bolsonaro inaugurou a última turbina. Mas o incômodo provocado pela obra em Marina ainda está longe do fim.

O fantasma de Belo Monte volta a assombrar a ministra em forma de um documento que está desde o ano passado sobre a mesa do Ibama, uma autarquia que fica sob o guarda-chuva da ministra: o pedido de renovação da licença de operação da usina, vencido desde novembro de 2021. A decisão do órgão envolve uma rigorosa análise técnica, mas o processo já é alvo de pressão por ambientalistas, ONGs, Ministério Público Federal, indígenas, moradores e pescadores da região do Rio Xingu, que pedem que o governo garanta a proteção do meio ambiente e das comunidades locais antes de dar novo aval à hidrelétrica. O que fornece fôlego à pressão é um parecer do próprio Ibama, de junho de 2022, que afirma que a Norte Energia cumpriu integralmente apenas treze das 47 condicionantes socioambientais impostas quando da concessão da licença. Outras 21 ainda estão em andamento e oito foram cumpridas com pendências, como a realização de ligações domiciliares à rede de esgoto de Altamira, principal cidade da área.

PROTESTO - Altamira: pescadores reclamam do sumiço de peixes no Rio Xingu
PROTESTO - Altamira: pescadores reclamam do sumiço de peixes no Rio Xingu (Coletivo de Comunicação MAB PA/.)

Um dos maiores focos de tensão é a questão habitacional. Em torno de 10 000 famílias tiveram de deixar as suas casas, mas 1 000 delas ainda aguardam nova moradia, como determina uma das contrapartidas exigidas na concessão da licença. Outro grande problema é o sumiço dos peixes. Uma das medidas cobradas é um projeto de assistência para os pescadores — a atividade é fundamental para a comunidade. Sem moradia e sem condição de sobrevivência, o quadro social tem se deteriorado. “As pessoas estão vivendo de doações e cestas básicas, estão ficando doentes e morrendo, não entendem o processo tão violento que sofremos, muitas estão vivendo de favor de parentes”, diz uma das integrantes do Conselho Ribeirinho, que falou a VEJA sob anonimato.

POSIÇÃO - A ministra: “Tem muita coisa que não tem como reparar”
POSIÇÃO – A ministra: “Tem muita coisa que não tem como reparar” (Evaristo Sá/AFP)

Um dos nós da discussão envolve a retirada de água do Xingu para alimentar a usina. Em algumas épocas do ano, ela chega a 80%. Um trecho de 130 quilômetros, chamado de Volta Grande do Xingu, banha duas terras indígenas — Juruna e Arara — e concentra os maiores impactos ambientais. “O Xingu tem uma fauna aquática que só existe ali e a redução da vazão prejudicou os peixes. Há uma perda de biodiversidade que não pode mais ser reposta”, afirma André Sawakuchi, professor do Instituto de Geociências da USP. A vazão reduzida também secou as florestas aluviais, que deveriam ficar embaixo d’água em algumas estações. “Isso gera uma cadeia de impactos, porque é onde os peixes se reproduzem”, afirma Sawakuchi. A solução seria desviar menos água do rio, mas isso impactaria a produção de energia.

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A volta de Lula — e de Marina — ao poder abre brecha para aumentar a pressão, que já é intensa. “Quando há picos de falta d’água, temos de partir para as mobilizações na sede da empresa”, diz o engenheiro Jackson Dias, coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e um dos reassentados. No último dia 15, um grupo de pescadores foi a Altamira protestar no Ibama e na Justiça Federal — muitos alegam que não receberam uma indenização de 20 000 reais prometida pela Norte Energia em novembro passado por conta da redução da pesca. No dia anterior, em Brasília, ambientalistas, pesquisadores, indígenas e os presidentes da Funai, Joenia Wapichana, e do Ibama, Rodrigo Agostinho, se reuniram em um seminário convocado pelo MPF para tratar do caso. “Vamos fazer um trabalho técnico, considerando todos os dados e informações trazidos aqui”, prometeu Agostinho.

arte BM

Em sua defesa diante das recentes manifestações e acusações, a Norte Energia diz que as condicionantes foram desdobradas em 71 e que cumpriu 28 e dá andamento às outras 43. Afirma ainda que providenciou moradia de alvenaria em locais com infraestrutura para 20 000 pessoas que “moravam em palafitas em meio ao esgoto a céu aberto”, que cadastrou 1 976 pescadores para prestar assistência, pagou indenizações e que tem apoiado os ribeirinhos.

A despeito da pressão crescente sobre a Norte Energia, ninguém cogita um desdobramento radical do caso, terminando por suspender a atividade da usina. “O que queremos é garantir que todas as condicionantes sejam cumpridas e discutir como manter a vida da Volta Grande do Xingu”, afirma o procurador regional da República Ubiratan Cazetta. A licença está vencida, mas a usina segue operando, já que pediu a renovação dentro do prazo previsto em lei.

NO ALVO: Mensagem no Rio Xingu: polêmicas marcaram o projeto
NO ALVO: Mensagem no Rio Xingu: polêmicas marcaram o projeto (Atossa Soltani/Amazon Watch/AFP)

Cancelar a operação da usina seria mesmo um ato que nem os ativistas mais xiitas cogitam, dada a importância que ela adquiriu. Mesmo operando com menos da metade da capacidade instalada de 11 233 MW (por questões hidrográficas), a sua produção é suficiente para levar energia a 60 milhões de residências — o país tem 72 milhões, segundo o IBGE. “Mesmo com o crescimento relativamente baixo do consumo nacional de energia, se Belo Monte parar, isso afetará a produção em todas as usinas”, diz o professor Roberto D’Araújo, ex-conselheiro de Furnas e diretor do Ilumina (Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético). O erro, avalia, foi construir uma usina tão grande, com enormes impactos socioeconômicos. Agora que está instalada, não dá para voltar atrás.

SOB PRESSÃO - Audiência no MPF: Funai e Ibama prometeram rigor técnico
SOB PRESSÃO - Audiência no MPF: Funai e Ibama prometeram rigor técnico (LeoBark/SECOM/MPF/.)

A atual polêmica é apenas mais uma no conturbado histórico de Belo Monte. Sua construção foi paralisada sete vezes pela Justiça e autuada 36 vezes pelo Ibama. Depois de uma trégua com Bolsonaro, quando nenhuma multa foi aplicada, Belo Monte volta a se tornar alvo. A ministra Marina Silva procura se manter distante do caso, alegando que a decisão será técnica e de responsabilidade do Ibama. Mesmo assim, declarou recentemente que “tem muita coisa que já não tem como reparar”, mas que é preciso verificar “o que tem que não deve ser agravado”.

Será questão de tempo para que a polêmica ambiental de Belo Monte incomode de novo a ministra. Pode também constranger o governo, obrigando-o a se equilibrar entre as promessas de priorizar o meio ambiente e os indígenas e a importância que a usina adquiriu para o país. O que o Brasil espera é que a questão seja resolvida de forma técnica e justa, contemplando os interesses sociais, ambientais e econômicos envolvidos. Belo Monte, em que pese a oposição, é uma realidade — que sempre é possível ser melhorada.

Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834

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