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Os pastores evangélicos que rejeitam a mistura de religião e palanque

‘Voto do cajado’, em que fiéis são induzidos por líderes religiosos, foi criticado por representantes de denominações presbiterianas, batistas e luterana

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 21 set 2018, 18h36 - Publicado em 19 set 2018, 23h25

Em outubro de 1517, Martinho Lutero cravou na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg suas 95 teses sobre fé e religião, ato que marcou o movimento Reforma Protestante. Os ideais do reformista acenderam uma fagulha no que viria a ser o conceito de separação entre Estado e Igreja, ao questionar o poder absoluto do papa católico como responsável pelo perdão dos pecados e como cabeça do governo. Em 2017, diversas denominações cristãs ao redor do mundo celebraram os 500 anos do episódio — mas poucas destacaram sua herança política, que ecoa agora, nas eleições 2018. O mesmo não pode ser dito das descendentes diretas do movimento, as chamadas igrejas históricas, das quais ganham destaque os presbiterianos, batistas e luteranos.

reverendo Valdinei Ferreira, 49 anos, líder da Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo, conhecida como Catedral Evangélica, critica o uso por políticos de títulos religiosos, como pastor, bispo, missionário, padre, entre outros. “É um erro, confunde o eleitor. Eles chamam para a atividade política uma credibilidade que é oriunda de um espaço religioso que tem outra lógica de relação”, diz. “A posição protestante histórica não quer um Estado religioso e nem antirreligioso. Cada um deve exercer seu papel, com liberdade. Ouvi um deputado dizer que seu trabalho no Congresso é um ministério (termo usado para designar uma atividade religiosa). Mas ele está ali como representante público, custeado pela população, que é formada por diversas religiões. Se ele quiser fazer ministério, então abra mão de todos os benefícios e salário que ele tem como deputado, e viva com o que ele recebe da igreja.”

Esse posicionamento, no entanto, não inviabiliza a igreja como espaço para discussão política. A Catedral Evangélica, por exemplo, lançou no ano passado o movimento apartidário Reforma Brasil. O manifesto pede por sete pontos, que vão desde o fim do foro privilegiado e das reeleições até uma revisão dos mecanismos de nomeação para os tribunais e dos custos da representação política. “Não indicamos ‘vote no candidato tal’. Preferimos falar sobre critérios”, diz Ferreira.

O reverendo Valdinei Ferreira, da Catedral Evangélica (Heitor Feitosa/VEJA.com)

O projeto ajudou a minimizar a polarização entre esquerda e direita, que tomou o país e se refletiu dentro dos templos. Tanto que todos os presidenciáveis foram convidados pelo reverendo para palestrar sobre o tema reforma política — em um espaço fora da igreja. Alvaro Dias (Podemos) e Marina Silva (Rede) já participaram. João Amoêdo (Novo) confirmou presença, e Jair Bolsonaro (PSL) avaliava o convite, antes do atentado. Amoêdo, Dias e Marina, aliás, são os que parecem mais interessantes ao reverendo. Contudo, ele não revela para quem vai seu voto. “Falar em quem vou votar não ajuda o candidato. Quem vem à igreja para ouvir o pastor, quer ouvir outro registro, não da influência política”, diz.

 

Candidato que usa título religioso é um erro, confunde o eleitor. Eles chamam para a atividade política uma credibilidade que é oriunda de um espaço religioso que tem outra lógica de relação

Reverendo Valdinei Ferreira

Postura parecida tem a pastora Denise Coutinho Gomes, 32 anos, também parte da Catedral Evangélica. “Entendo que uma pessoa que segue determinada fé deve ser pautada por isso, mas não para promover sua religião ou impor suas ideologias”, diz. “Creio que uma pessoa guiada por Deus pode fazer nossa nação melhor. E a política deve sim ser parte do cotidiano da igreja, mas como reflexão e não imposição.”

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A pastora Denise Coutinho Gomes, da Igreja Catedral Evangélica (Heitor Feitosa/VEJA.com)

Responsável pelas ações sociais da igreja, Denise se preocupa com o trato que o próximo governo dará aos mais pobres. “Vemos pessoas atingidas pelo desemprego, que moram em ocupações ou na rua, que não tem condições de mudar este cenário. É uma situação desumana”, conta. “Eu gostaria muito de ver o próximo presidente trabalhando por isso, para tentar pelo menos amenizar essa situação que é crônica.”

O anseio é o mesmo do pastor Valdir Steuernagel, 68 anos, parte da Igreja Evangélico de Confissão Luterana no Brasil, com sede em Porto Alegre. Ele ressalta a importância da defesa da democracia, da reforma política e de um governo voltado para a prática da justiça social. “Almejo do próximo presidente uma gestão econômica financeira que saiba cuidar dos mais frágeis e vulneráveis, que empenhe-se por diminuir o abismo entre ricos e pobres e reformule o Estado marcado por práticas que beneficiam uns poucos em detrimento da totalidade da nação”, diz o pastor, que também é vice-presidente da Visão Mundial, ONG cristã voltada para crianças vulneráveis e pessoas em situação de risco.

Steuernagel ressalta como preocupações em relação à política a crise de credibilidade que tomou o Congresso Nacional e a tendência de governos que ameaçam à democracia ao redor do mundo. “Qualquer candidato que não afirme a democracia com absoluta firmeza e que questione, ainda que uma fagulha dela como princípio de governo, não é digno do voto.”

Púlpito e palanque não pertencem um ao outro. Programaticamente falando, eles se excluem. Ou seja, quando eu transformo o púlpito em palanque eu me desautorizo em minha liderança pastoral.

Pastor Valdir Steuernagel
O pastor luterano Valdir Steuernagel (Adriano San/Arquivo pessoal)

O pastor também engrossa o coro dos líderes evangélicos que preferem não revelar para quem vai seu voto nas próximas eleições. “Púlpito e palanque não pertencem um ao outro. Programaticamente falando, eles se excluem. Ou seja, quando eu transformo o púlpito em palanque eu me desautorizo em minha liderança pastoral.” A divisão entre o povo brasileiro, situação que chama de “trágica”, é outro motivo para que ele prefira não apoiar um candidato específico. “A polarização desconstrói, exclui, discrimina e ataca o outro. É a construção de um processo de animalização selvagem da vida, no qual o outro precisa ser eliminado. Por isso, como pastor evangélico preciso afirmar que a nossa presente polarização é a negação de uma identidade que se qualifique como sendo cristã.”

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João Haroldo, pastor da Igreja Batista da Liberdade, em São Paulo (SP) – 17/09/2018 (Bruno Menezes/VEJA.com)

O pastor João Haroldo Bertrand, 34 anos, da Igreja Batista da Liberdade, em São Paulo, conta que sua comunidade também foi afetada pela divisão entre opiniões em relação aos candidatos. “As conversas sobre política ficaram mais acaloradas e com muito espaço para as generalizações”, diz. “Uma senhora me disse certa vez que apesar da admiração, estava decepcionada comigo porque havia descoberto que eu era ‘petista’. Depois de alguns minutos de conversa, ela percebeu que pensávamos igual em muitas coisas e que o único ano que votei no PT foi em 2002. Dependendo de alguns posicionamentos, somos logo taxados.”

Bertrand afirma, contudo, ser impossível separar religião de política. “São assuntos que sempre caminharam juntos”, diz. Para ele, não é um problema que a fé faça parte do discurso do candidato, contanto que seja acompanhada do respeito e das garantias dos direitos de pessoas que possuam crenças diferentes.

Com esta visão, aliada ao desejo de ver o problema da corrupção resolvido, Bertrand afirma que está inclinado a votar em Marina Silva. “Vejo coerência na sua vida pública e no seu discurso, principalmente na maneira como ela se posiciona separando a Igreja do Estado.” Garante também que, de todos os candidatos, Jair Bolsonaro é o que menos o atrai. “Ele tem um discurso muito distante do discurso de Jesus. Ódio e preconceito não cabem nas falas do Cristo. Sei que em tempos de incertezas e maldades, um discurso extremista parece trazer consigo uma certa segurança, mas quando olhamos para a história, percebemos que isso nunca funcionou. É uma pena ver tantos cristãos embarcando nessa.”

Pastor Levi Araújo, da Igreja Batista da Água Branca (Ibab) (Heitor Feitosa/VEJA.com)

Quem também apoia Marina é o pastor Levi Araújo, 55 anos, membro da equipe pastoral da Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo. Para ele, a candidata, que é uma amiga pessoal, é o melhor nome para apaziguar os ânimos da polarização. “Nós precisamos de uma pausa para poder respirar diante dessa divisão, que tem sido alimentada de uma maneira terrível pelos dois lados”, diz. “Precisamos de sanidade. De quatro anos para que os partidos façam uma autocrítica, coloquem os pés no chão.”

Araújo foi uma das pessoas que Marina procurou para se aconselhar quando decidia se sairia ou não como candidata novamente. Ele conta que não teve dúvidas em apoiá-la. “É uma mulher com uma história linda de superação. É forte, firme, ética e pacífica. Que pensa na sustentabilidade, nas gerações futuras. Voto na Marina pensando nos meus netos.”

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Com fortes convicções sobre a importância da seguridade social, o pastor fica alerta ao ver a população perdendo direitos em reformas como a trabalhista. “No Brasil é muita gente com pouco e pouca gente com muito. E o pouco que conquistamos no passado está sendo tirado. Então o retrocesso que chega à nossa sociedade agora não é só moral, é um movimento que traz um sucatear de toda a proposta do cuidado social”, diz. “A democracia não pode ser colocada em risco em nome da economia. Parece que se a economia vai bem a democracia não interessa, os direitos humanos não interessam. Tá bem para quem, cara pálida?”

Tem uma coisa no meio evangélico conhecido como ‘voto de cajado’. Que é o pastor fechando o rebanho e falando, ‘esse aqui é de Deus e vamos votar nele’. E isso não é correto

Pastor Levi Araújo

Por fim, o pastor ressalta que não fez tal escolha pela fé de Marina, que também é evangélica, nem a indica aos seus liderados — tanto que ele reforça à reportagem que sua opinião é particular, e não está ligada à igreja que frequenta. “Tem uma coisa no meio evangélico conhecido como ‘voto de cajado’. Que é o pastor fechando o rebanho e falando, ‘esse aqui é de Deus e vamos votar nele’. Isso não é correto”, conta. “A Marina também não segue este viés, o do ‘vote em mim, porque sou cristã’. Não usa o discurso que vai defender a moral cristã. Ela é uma estadista. Não é despachante de igreja, nem despachante de pastor.”

O reverendo Davi Charles Gomes, 51 anos, chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie, também é crítico do “voto de cajado”, que ele chama de “voto de cabresto”. “Não é legítimo um líder religioso conduzir e pressionar pessoas de forma direta a votarem em um indivíduo. O que é legítimo é a conversa política que trata sobre medos, opiniões, o que é diferente de usar uma máquina eclesiástica para conduzir alguém”, diz.

O reverendo Davi Charles Gomes, chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie (Gustavo Luizon/VEJA.com)

Na mesma linha, Gomes reforça que “pessoas que almejam cargos no Estado não deveriam usar a Igreja como massa de manobra”, mas lembra que fé e política são indissociáveis no sentido de fonte de valores. “Todo conhecimento é baseado em compromissos e inclinações de crença. E são essas crenças que vão influenciar o ser político. A política não é em si uma fonte de valor. O conceito do que é bom para cada indivíduo vem de outras esferas, como a ética, moral e religiosa”, analisa.

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Sobre seus almejos para o próximo governo, o chanceler cita o estadista e teológo holandês Abraham Kuyper. “Ele desenvolveu a teoria das esferas, que diz que existem esferas de soberania, como do Estado, da Igreja, do comércio, das associações livres, por exemplo. Uma sociedade bem construída dá a essas esferas autonomia relativa, nenhuma tem autonomia absoluta, nem o Estado”, conta. “Eu quero para o Brasil uma sociedade mais organizada e estabilizada, com suas esferas distintas de ação. Que abandonássemos a megalomania em relação ao Estado, acreditando que ele seja o salvador da pátria, que uma pessoa vai resolver todos os nossos problemas.”

Eu quero para o Brasil uma sociedade mais organizada e estabilizada, com suas esferas distintas de ação. Que abandonássemos a megalomania em relação ao Estado, acreditando que ele seja o salvador da pátria, que uma pessoa vai resolver todos os nossos problemas

Reverendo Davi Charles Gomes

Gomes relembra uma tese proposta por Santo Agostinho, em que ele fala sobre a cidade de Deus e a cidade dos homens. Uma é terrestre e turbulenta, baseada no egoísmo e no amor impuro. Outra é sobrenatural, baseada no amor puro, na tranquilidade e na união. “Nessa obra, Agostinho enfatiza que é comprometido com as duas cidades. Que desprezar a cidade dos homens e viver só na cidade de Deus é ilusório. Um cristão verdadeiro vive a cidadania celeste por meio da sua cidadania terrena. Ou seja, seu comportamento tem que trazer paz, benção e redenção à cidade dos homens”, conta o reverendo, que finaliza com um poema.

“Gregório de Matos tem um texto extraordinário sobre a natureza humana, que todo cristão deve refletir. Ele diz: ‘Uma só natureza nos foi dada/ Não criou Deus os naturais diversos/ Um só Adão criou, e esse de nada/ Todos somos ruins, todos perversos/ Só nos distingue o vício e a virtude/ De que uns são comensais, outros adversos’. Então, nestas eleições, é nossa escolha sermos comensais ou adversos do mal.”

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