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Os efeitos do possível fim da condenação em segunda instância

Mudança de entendimento do STF soltaria Lula, José Dirceu e mais de dez condenados na Lava-Jato, mas não Sérgio Cabral e Eduardo Cunha

Por João Pedroso de Campos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 1 nov 2019, 10h18 - Publicado em 1 nov 2019, 06h00

Quando retomar a análise da legalidade das prisões após condenação em segunda instância na próxima quinta, 7, o Supremo Tribunal Federal, ao que tudo indica, mudará o entendimento que adotou em 2016 e voltará a vetar essa possibilidade, considerada um dos pilares no combate à corrupção. Em tom apocalíptico, autoridades como o coordenador da Lava-Jato em Curitiba, o procurador Deltan Dallagnol, disseram que a mudança colocaria nas ruas mais de 100 000 bandidos. O cenário é ruim, mas não tanto. Na verdade, seriam beneficiados 4 895 encarcerados, conforme uma estimativa mais precisa do Conselho Nacional de Justiça. Eles ganhariam a liberdade até o trânsito em julgado de seus processos ou pelo menos até serem julgados no Superior Tribunal de Justiça. O mais notório beneficiado é o ex-­presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que desde abril de 2018 cumpre pena de oito anos, dez meses e vinte dias de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tríplex no Guarujá.

O veto do STF à prisão em segunda instância também colocará nas ruas outros famosos condenados da Lava-­Jato como o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu (PT) e seu irmão, Luiz Eduardo de Oliveira e Silva, além de pelo menos mais doze apenados pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), entre empreiteiros, operadores de propinas e ex-funcionários da Petrobras. Há ainda aqueles que estão em regime semiaberto e poderão tirar a tornozeleira, como os ex-tesoureiros do PT João Vaccari Neto e Delúbio Soares, ou deixar de dormir na cadeia, como o empresário Natalino Bertin.

NÃO SAI TÃO CEDO - Condenado a 267 anos, Cabral está preso desde 2016 (Rodolfo Buhrer/La Imagem//Fotoarena)

De fato, os criminosos de colarinho branco serão os principais beneficiados de um recuo do STF. Ao contrário do alardeado pelo ministro Luiz Fux durante o julgamento, suspenso na quinta-feira 24, condenados por assassinatos notórios, como Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, que mataram a filha dele Isabella, e Elize Matsunaga, que esquartejou o marido Marcos Kitano Matsunaga, não seriam alcançados, pois também são alvo de prisões preventivas, decretadas quando há risco à ordem pública, de embaraço à investigação ou de fuga.

A mesma situação ocorre com alguns tubarões fisgados pela Lava-Jato, especialmente os que podem se articular fora da cadeia para atrapalhar investigações ainda em andamento. Encaixam-se nessa categoria o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral e o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, ambos do MDB. Nenhum dos dois deixará o xilindró. Condenado a 267 anos de prisão em doze processos, Cabral tem quatro preventivas decretadas pelo juiz Marcelo Bretas nas investigações sobre a organização criminosa instalada no governo fluminense durante sua gestão, entre 2007 e 2014. Preso em novembro de 2016, o ex-governador encontra-se em Bangu 8, no Rio, cumprindo provisoriamente a pena de catorze anos e dois meses a que foi condenado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Detido em outubro de 2016, o outrora poderoso Cunha tem duas preventivas em vigor determinadas nos processos sobre corrupção e lavagem de dinheiro em contratos da Caixa Econômica Federal e na construção da Arena das Dunas, em Natal. Ele cumpre, também em Bangu, os catorze anos e seis meses de prisão impostos pelo TRF4.

CAUSA - Gilmar Mendes: no STF, ele é o maior crítico dos métodos da Lava-Jato (Adriano Machado/Reuters)

Condenados em segunda instância e presos há mais de três anos, tanto Cabral quanto Cunha negociaram acordos com o Ministério Público Federal ou Polícia Federal (ainda não formalizados) para diminuir o tempo na prisão. Cabral, que até o início de 2019 negava ter se corrompido, trocou de advogado e pediu para ser reinterrogado — passou, então, a admitir o recebimento de propinas e a compra de votos para sediar a Olimpíada de 2016. A possibilidade de começar a cumprir a pena já em segunda instância é um dos fatores usados pela Lava-­Jato para estimular delações. O temor é que, se o réu puder recorrer em liberdade por muitos anos, fique mais difícil ele topar ser delator. “Se ocorrer uma mudança no Supremo sobre a segunda instância, a Lava-Jato e sua estratégia sofrerão um enfraquecimento, pois alguns réus poderão desistir das delações premiadas”, diz o ex-­presidente do STF Carlos Velloso.

Toda a discussão sobre a segunda instância tem origem no artigo 5º da Constituição, escrita sob a marca de “cidadã”, com foco na garantia de direitos individuais, como é a presunção de inocência. O texto determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O sistema judicial brasileiro tem na prática quatro instâncias: o juiz de primeiro grau, que decide sozinho; o tribunal de segunda instância, que já é um colegiado; o Superior Tribunal de Justiça (STJ); e, quando envolvido princípio constitucional, o próprio STF. A longa trajetória até o esgotamento de todos os recursos favorece os réus de crimes de colarinho-branco, que geralmente têm mais condições de garantir a sua defesa nos tribunais até o fim.

SEM ADEREÇO - Vaccari: sem tornozeleira se cair a prisão em segunda instância (Rodolfo Buhrer/Reuters)

Mesmo com o texto da Constituição, de 1988, cada juiz decidia na prática se o condenado seria ou não preso em segunda instância. Por isso, em 2009, o STF decidiu reforçar a orientação, determinando que o réu só poderia ser preso após o esgotamento de todos os recursos. Essa posição acabou sendo alterada pela própria Corte em 2016, em meio ao avanço da Lava-­Jato, que vivia o seu auge, e ao clamor da população, que, em grandes manifestações de rua, exigia maior rigor contra a corrupção. Mas agora os ventos viraram: a operação vive o seu pior momento e o STF se tornou o depositário de todo tipo de reclamação contra a execução antecipada de pena, o que levou à mudança de posição de alguns ministros, como Gilmar Mendes, e à pressão para que a Corte se debruçasse novamente sobre o tema. Eduardo Bastos Furtado de Mendonça, coordenador do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais, avalia como normais essas alterações nas interpretações do Supremo, mas alerta para a insegurança jurídica quando elas são tantas e em tão pouco tempo: “Mudar a jurisprudência não é incomum, mas mudar tão rápido e mais de uma vez passa a mensagem ruim de que a jurisprudência é instável e de que as pessoas não devem poder confiar nela”.

Os principais países democráticos do mundo adotam a prisão em segunda instância, porém em alguns casos, como Alemanha, França e Itália, há uma nuance: no primeiro grau, não é um juiz solitário que decide, mas um colegiado. Nos Estados Unidos, a prisão é possível após o primeiro julgamento, mas, na maioria dos casos, a decisão também é colegiada, por um júri popular. Tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra, boa parte dos réus é presa antes mesmo de ser julgada, após se declarar culpada. Em Portugal, o réu aguarda em liberdade o trânsito em julgado, porém lá não há tantas possibilidades de recurso como no Brasil.

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Por aqui, o novo debate deve chegar ao voto do presidente Dias Toffoli com o placar em 5 a 5. Já decidiram a favor da prisão em segunda instância Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux — eles devem ganhar a adesão de Cármen Lúcia. Já se posicionaram contra Marco Aurélio Mello, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber — ao lado deles ficarão Gilmar e Celso de Mello. Toffoli diz estar “pensando” em seu voto: “Muitas vezes o voto nosso na presidência não é o mesmo voto, em razão da responsabilidade da cadeira presidencial”. Em meio às críticas de que o recuo favoreceria a impunidade e faria o país regredir à era pré-Lava-Jato, ele levou ao Congresso uma proposta para alterar o Código Penal e suspender a prescrição até o julgamento de recursos em tribunais superiores.

Embora possa ser beneficiado pela decisão do STF de rever a prisão em segunda instância, Lula quer provar na Justiça a suspeição do juiz Sergio Moro para conseguir a anulação de todos os seus processos da Lava-Jato, que voltariam ao estágio da denúncia. O petista diz que somente isso corrigirá uma injustiça. A estratégia traz embutido também um cálculo de ordem prática. Como é réu em sete ações penais e já foi condenado em outro caso além do tríplex (o do sítio de Atibaia, em primeira instância), Lula vai precisar de uma reviravolta ainda maior da Justiça para não correr o risco de sair e voltar para a cadeia em um curto espaço de tempo.

(./.)

Publicado em VEJA de 6 de novembro de 2019, edição nº 2659

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