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O que há por trás da nova crise entre Bolsonaro e o Congresso

Governo diz que parlamentares são 'donos' de 13 000 cargos — e vai usar essa lista para aumentar a pressão sobre o Legislativo

Por Daniel Pereira, Thiago Bronzatto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 28 fev 2020, 12h57 - Publicado em 28 fev 2020, 06h00

O presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e alguns de seus principais auxiliares acalentam um perigoso, grave e reprovável hábito: o de testar as instituições. Durante a campanha eleitoral, Eduardo Bolsonaro, que se tornaria o deputado federal mais votado da história, declarou que bastariam um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal (STF). Desde então, o Judiciário vive acossado por bolsonaristas radicais, que fazem até ameaças de morte, nas redes sociais, a ministros do STF. A relação com o Legislativo não é diferente. Antes do Carnaval, o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), acusou congressistas de chantagem e exortou o governo a enfrentá-los. “Foda-se”, esbravejou Heleno, sem saber que sua fala vazava pelos microfones do Planalto. Na semana passada, mais uma demonstração de pouco apreço aos outros poderes. Dessa vez, do próprio Bolsonaro.

Durante o feriado, o presidente encaminhou a algumas pessoas, por meio do aplicativo WhatsApp, um vídeo conclamando “o povo” a participar de ato que, além de defendê-lo, tem o objetivo de atacar o Congresso. Marcada para o próximo dia 15, a manifestação é uma reação à intenção de deputados e senadores de derrubar o veto presidencial ao projeto que aumentou a quantidade de recursos da União controlados pelos parlamentares. Briga-se, portanto, por dinheiro e, com ele, pelo poder de agradar aos eleitores. O vídeo encaminhado por Bolsonaro lembra do atentado a faca que sofreu, fala de sua alegada luta contra uma esquerda “corrupta” e diz que é chegada a hora de a população retribuir a dedicação dele ao país. O problema não está apenas no conteúdo do filme, mas no que o presidente escreveu ao distribuir a peça. Ele não só fez referência à dupla “general Heleno e capitão Bolsonaro”, em sinal de que chancela as críticas de seu ministro aos “chantagistas” do Congresso, como arrematou: “O Brasil é nosso / Não dos políticos de sempre”. Estava semeada a crise da vez.

A “NOVA” POLÍTICA –  General Ramos: cargo só para quem vota com o governo (Anderson Riedel/PR)

A contundente e acertada reação ocorreu tão logo a ofensiva de Bolsonaro foi revelada, na terça-feira 25, no site do jornal O Estado de S. Paulo. Com palavras à altura da situação, o decano do STF, ministro Celso de Mello, disse que o caso demonstra “a face sombria de um presidente da República que desconhece o valor da ordem constitucional, que ignora o sentido fundamental da separação de poderes, que demonstra uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce”. Na mesma toada, Celso de Mello ainda alertou: “O presidente da República, qualquer que ele seja, embora possa muito, não pode tudo, pois lhe é vedado, sob pena de incidir em crime de responsabilidade, transgredir a supremacia político-jurídica da Constituição e das leis da República”. Segundo a Constituição, crime de responsabilidade é pré-requisito para o impeachment, palavra que reapareceu nas conversas em Brasília, principalmente entre partidos de esquerda. A proporção das consequências políticas dependerá, sobretudo, do posicionamento dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, ambos filiados ao DEM. Maia, que havia chamado o general Heleno de “radical ideológico”, dessa vez optou pela moderação. Disse o deputado pelo Twitter: “Criar tensão institucional não ajuda o país a evoluir. O Brasil precisa de paz e responsabilidade para progredir”. Alcolumbre ainda não se manifestou.

Os ataques do presidente e de governistas ao Congresso não são por acaso. O governo tem um cenário difícil pela frente na cotação das reformas necessárias ao desenvolvimento do Brasil. A questão é que essa dificuldade decorre da incompetência do Planalto na articulação política e de teorias conspiratórias segundo as quais o país vai virar um caos se os direitos de servidores públicos forem revisados. Além disso, não faz muito sentido agredir justamente quem você precisa conquistar para aprovar as reformas administrativa e tributária, prioridades deste ano. Ambas já teriam a resistência dos parlamentares independentemente da manifestação do dia 15. Diz o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), que foi presidente da comissão da reforma da Previdência: “Na questão das aposentadorias havia uma blindagem, um consenso na sociedade. Para as reformas de 2020, não há nenhuma proteção, muito menos consenso”. Bolsonaro sabe disso. Numa tentativa de atenuar os ânimos, o presidente alegou no Twitter que, ao difundir o vídeo, estava apenas trocando uma mensagem de “cunho pessoal” com alguns amigos. E arrematou: “Qualquer ilação fora desse contexto são tentativas rasteiras de tumultuar a República”.

DECEPÇÃO – Augusto Heleno, antes a esperança de conselheiro equilibrado para Bolsonaro: desprezo pelo Congresso (Alan Santos/PR)

Evidentemente, o problema é bem mais complexo. Existe um roteiro incendiário e pouco eficaz seguido à risca pelo presidente. De modo deliberado e irresponsável, Bolsonaro provoca com frequência assombrosa as instituições e aposta na tensão do sistema político como forma de manter sua base eleitoral mobilizada. Em seguida, recua e se apresenta como um conciliador. Em fevereiro, depois de uma trombada semelhante, ele posou para fotos ao lado dos chefes do Judiciário e do Legislativo e, em público, pregou harmonia e parceria entre eles. Deve fazer o mesmo em breve. Até que lá na frente parta para outro confronto. “Ele faz um jogo de tensionamento e descompressão. No caso do protesto, já recuou, dizendo que a mensagem foi privada. A intuição é que é melhor pagar o custo desse desgaste momentâneo que a manifestação ser um fracasso. No fim, ele conseguiu colocar o tema na pauta de todo o país e criar um clima de polarização. A base bolsonarista está mobilizada”, diz o cientista político Fernando Schüler. Essa estratégia até pode render frutos ao capitão, mas é extremamente prejudicial ao país, afugentando investidores estrangeiros e congelando investimentos nacionais. Os objetivos de curto prazo do presidente, porém, se sobrepõem. São favas contadas que haverá coleta de assinaturas para a criação da sigla Aliança pelo Brasil durante a manifestação. Aliás, a ideia do ato surgiu em 8 de fevereiro, em São Paulo, numa reunião para a formação do novo partido de Bolsonaro. Entre os participantes estava o líder do Movimento Conservador, Edson Salomão, um dos organizadores da marcha do dia 15.

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INSANIDADE –  Convocação para o protesto: generais no papel de golpistas (./.)

Independentemente do tamanho do apoio que colherá nas ruas, o governo se prepara para endurecer as negociações com os parlamentares em outra frente. A ideia, que não tem nada de nova política, é garantir cargos públicos apenas a quem votar a favor dos projetos oficiais. O ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, tem em mãos uma lista com 13 000 postos e os políticos responsáveis pelas respectivas nomeações. São funções variadas da administração, muitas delas carreadoras de votos, já que lidam com o dia a dia dos eleitores. Esse mapa da mina começou a ser levantado em julho do ano passado, quando Ramos assumiu com a missão de reorganizar a articulação política do governo.

DUPLA VISADA –  Alcolumbre e Rodrigo Maia: alvos principais dos extremistas (Jefferson Rudy/Agência Senado)

O general mapeou as nomeações uma a uma. As realizadas até 2016, durante o governo do PT, foram marcadas com caneta vermelha. As realizadas em 2017 e 2018, na gestão de Michel Temer, ganharam a cor amarela. Todas foram revisadas, e os responsáveis por elas avisados de que só manteriam seus apadrinhados empregados caso votassem com Bolsonaro. Quando não conseguia identificar o dono de vagas importantes, Ramos exonerava o funcionário. Era tiro e queda. Ato contínuo, o padrinho do demitido entrava em contato e, enquanto pedia por ele, era avisado sobre as novas regras do jogo. Sob Bolsonaro, que fica jogando para sua plateia ao criticar práticas reprováveis do Congresso, só tem cargo quem vota com o governo. Presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, a senadora Simone Tebet (MDB-­MS) foi fisgada por essa estratégia de Ramos. Ao saber da demissão de um aliado, ela ligou para o ministro e conseguiu rever a decisão. Simone, que defende a agenda econômica do governo, diz que o Planalto “vai cair do cavalo” se insistir na tática de negociação: “Se fizerem isso comigo, terá o efeito contrário”.

SÁBIO AVISO –  Celso de Mello: “O presidente da República não pode tudo” (Cristiano Mariz/.)

Ramos também recebeu um pedido de um deputado do Podemos para nomear um amigo para uma superintendência que, segundo os cálculos do governo, comandaria outros vinte postos. Desconfiado, o ministro resolveu falar com o senador Alvaro Dias, líder do partido no Senado. No encontro, condicionou a liberação do cargo ao apoio da sigla às pautas do Planalto. Dias, que nutre o sonho de lançar o ministro Sergio Moro à Presidência pelo Podemos, recusou a oferta. “Este governo restabeleceu o sistema promíscuo entre os poderes. O governo acusa os parlamentares de chantagem, mas dá as mãos para eles. Vivemos o maior toma lá dá cá dos últimos tempos”, diz o senador.

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TOMA LÁ DÁ CÁ – Simone e Dias: investida para fisgar os parlamentares (Jefferson Rudy/Agência Senado)

Nas redes sociais, os métodos são sujos e antidemocráticos. Os bolsonaristas radicais afirmam que o governo tem uma arma poderosa nas mãos: a presença de generais de quatro estrelas no Planalto. Essa lembrança encerra a ameaça velada de que os militares podem recorrer à força para dobrar as instituições. Numa mensagem que circula como convocação à manifestação do dia 15, vê-se a foto de Augusto Heleno e do vice Hamilton Mourão, entre outros, acompanhada da seguinte mensagem: “Os generais aguardam as ordens do povo / Fora Maia e Alcolumbre”. Antecessor de Ramos na Secretaria de Governo, o general Santos Cruz fez questão de recorrer ao Twitter para rechaçar tal ameaça: “Montagem irresponsável. Não confundir o Exército com alguns assuntos temporários. O uso de imagens de generais é grotesco”. Já Mourão negou que tivesse autorizado o uso de sua imagem. A preocupação com uma possível confusão entre governo e Forças Armadas encontra ressonância entre militares de alta patente, tanto da ativa quanto da reserva. “Temos uma tempestade grave pela frente, e o presidente está arrastando o Exército brasileiro para o turbilhão”, diz um coronel sob a condição de anonimato.

Antes da votação da reforma da Previdência, o governo Bolsonaro também tentou emparedar o Congresso. Foi quando o ministro Paulo Guedes exortou o povo a dar uma “prensa” nos parlamentares. Não deu certo. Guedes, então, desculpou-se publicamente, passou a se reunir com líderes da Câmara e do Senado e mandou a campo auxiliares para negociar com os políticos. O texto acabou aprovado com folga. Esse é o roteiro ao qual o governo deveria se acostumar. No Estado democrático de direito, não há espaço para intimidação nem confronto entre os poderes. Por isso Bolsonaro precisa vir a público e deixar claro que o presidente da República repudia com veemência qualquer movimento que atente contra as instituições — ou admitir de vez que não respeita a democracia, assumindo as consequências que uma atitude desvairada como essa poderia gerar.

Com reportagem de Eduardo Gonçalves, João Pedroso de Campos e Roberta Paduan

Publicado em VEJA de 4 de março de 2020, edição nº 2676

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