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O jogo sujo contra a Lei da Ficha Limpa

Parlamentares inserem no pacote anticrime um artigo que pode ressuscitar políticos banidos da vida pública por improbidade

Por Laryssa Borges Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 16 nov 2019, 13h28 - Publicado em 15 nov 2019, 06h00

Desde que chegou ao Congresso, há nove meses, o pacote anticrime proposto pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, sofreu diversas alterações — algumas que aprimoram os mecanismos de combate à corrupção, como a ampliação do tempo máximo de cumprimento de penas, outras que corrigem exageros, principalmente em relação ao abuso das prisões preventivas. Mas existe uma em especial que está sendo apontada como um grande retrocesso na luta contra a corrupção. Hoje, pessoas condenadas por improbidade administrativa e que tenham a sentença confirmada por um tribunal colegiado são proibidas de disputar eleições ou ocupar qualquer cargo público. A lei que prevê isso baniu uma horda de criminosos do colarinho branco, gestores mal-intencionados e empresários trapaceiros — os chamados fichas-sujas. Na surdina, os parlamentares querem mudar essa regra.

Há cerca de duas semanas, enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) discutia a prisão em segunda instância, um grupo de trabalho da Câmara dos Deputados aprovou uma proposta que abre uma janela para recolocar os fichas-­sujas no jogo eleitoral já em 2020. De acordo com o texto, que ainda será submetido ao plenário, a lei de improbidade passa a contar com um artigo que abre a possibilidade de acusados ou condenados firmarem acordo com o Ministério Público, por meio do qual pagariam uma multa, ressarciriam aos cofres públicos eventuais prejuízos e escapariam da maior das punições — a suspensão dos direitos políticos. “Não tem cabimento o réu só pagar a multa e devolver o valor. Sem trazer elementos de prova contra outras pessoas, essa lei incentiva a impunidade e vira uma farra”, afirma o promotor Silvio Marques, do Ministério Público de São Paulo, especialista em casos de improbidade administrativa.

O “libera geral” ensaiado por deputados que discutiram o pacote anticrime acendeu a luz de alerta nos tribunais superiores. Caso o texto aprovado pelo grupo de trabalho entre em vigor, em tese até mesmo os mensaleiros, condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) há sete anos, poderão tentar um acordo com o Ministério Público nos casos em que respondem a ações de improbidade. Até hoje tramitam processos de ressarcimento aos cofres públicos contra próceres petistas como José Dirceu e José Genoino. Esse último, por exemplo, foi condenado por corrupção, sua pena foi extinta em 2015 e, com um eventual acordo, ele estaria totalmente livre para se candidatar a partir de 2023.

CONTRABANDO – Plenário da Câmara: o texto que abre uma janela para os fichas-sujas ainda será analisado no Congresso (Wilson Dias/Agência Brasil)

Em outros casos de improbidade, o acordo para encerrar o processo pode ser ainda mais benéfico ao mau gestor, como nas situações em que, embora irregulares, não há dano a ser reparado. Isso ocorre, por exemplo, quando um prefeito contrata garis ou merendeiras de forma irregular, mas os serviços são efetivamente prestados pelos funcionários. Apesar de teoricamente essa prática não gerar prejuízo financeiro aos cofres municipais, os dividendos eleitorais para o prefeito são notórios. Com a aprovação da lei inserida no pacote anticrime, na hipótese mais extrema o gestor público limparia a ficha sem precisar devolver um único centavo.

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De tão sorrateiro, o texto final do projeto nem ao menos foi disponibilizado a todos os integrantes do colegiado. “Essa manobra ocorreu à minha revelia e à revelia do ministro Moro”, disse o relator, deputado Capitão Augusto (PL-SP), que não sabe explicar como o artigo que beneficia os fichas-sujas foi inserido. Esse tipo de manobra é conhecido no Congresso como “jabuti”. Sergio Moro também não sabia da manobra até ser informado por VEJA. Disse o ministro em nota: “O que foi retirado ou inserido pelo Comitê formado na Câmara será objeto ainda de discussão com o governo e depois no Plenário. O governo está trabalhando para aprovar o pacote anticrime em sua totalidade ou maior parte”. Cuidado com o jabuti, ministro. Esse morde.

Atualização: Após a publicação da reportagem, a coordenadora do grupo de trabalho, Margarete Coelho, enviou a nota abaixo a VEJA:

“No dia 15 de novembro de 2019, Veja publicou uma matéria intitulada “O jogo sujo contra a Lei da Ficha Limpa”. Nessa matéria, o Grupo de Trabalho criado para analisar o denominado pacote “anticrime” (dentre outros projetos de lei) é acusado de ter inserido, de forma sorrateira, dispositivo que possibilita a realização de acordo no âmbito da Lei de Improbidade Administrativa.

Como Coordenadora do referido Grupo, repudio, de forma veemente, essa acusação. Todas as decisões do Grupo foram tomadas de forma pública e democrática. O dispositivo a que a matéria se refere, por exemplo, foi aprovado no dia 03 de setembro de 2019. A aprovação se deu, inclusive, por acordo entre todos os presentes, incluindo o Relator, Deputado Capitão Augusto (a íntegra dessa reunião, em vídeo, e as notas taquigráficas, podem ser acessadas no sítio eletrônico da Câmara dos Deputados).

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É preciso que se esclareça, ainda, que a possibilidade de realização de acordo na Lei de Improbidade Administrativa foi sugerida no próprio pacote “anticrime” (Projeto de Lei nº 882/2019, em seu art. 6º), assim como no Relatório inicial do Deputado Capitão Augusto. O dispositivo sugerido, porém, não possuía maiores detalhamentos, limitando-se a afirmar que a negociação seria possível mediante “acordo de colaboração ou de leniência, de termo de ajustamento de conduta ou de termo de cessação de conduta, com aplicação, no que couber, das regras previstas na Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, e na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013”.

O que o Grupo decidiu, portanto, foi conferir maior detalhamento a essa possibilidade de acordo. E o texto aprovado, é preciso que se ressalte, foi inspirado no Projeto de Lei nº 10.887/2018, elaborado por uma Comissão de Juristas presidida pelo Ministro Mauro Campbell Marques, do Superior Tribunal de Justiça, e que, com toda a certeza, não tinha a intenção de promover o que a matéria publicada chama de “retrocesso na luta contra a corrupção.”

Publicado em VEJA de 20 de novembro de 2019, edição nº 2661

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