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Não há milagre

O ensino a distância voltou ao debate como proposta de Jair Bolsonaro. A modalidade pode funcionar, mas depende da etapa escolar e da forma como é aplicada

Por Simon Schwartzman*
Atualizado em 19 out 2018, 07h00 - Publicado em 19 out 2018, 07h00

Nos últimos anos, a porcentagem de matriculados em cursos superiores a distância no Brasil chegou a 21%. Esses estudantes estão concentrados sobretudo nas instituições com fins lucrativos, onde, hoje, um terço dos alunos segue essa modalidade. São em sua maioria pessoas mais velhas, que precisam trabalhar, têm dificuldade de alcançar boa classificação no Enem para ingressar na universidade pública e não podem pagar mensalidades muito altas. Para elas, a educação a distância, se benfeita, faz muito sentido. Isso dito, é preciso entender que esse modo de ensino, assim como o presencial, pode ser dado de formas bem diferentes, com qualidade muito variada — e não é igualmente aplicável a todos os conteúdos e em todos os níveis.

Uma das vantagens do ensino a distância é que é possível acessar e preparar aulas excelentes com os melhores professores, acompanhadas de material de estudo e sistemas de avaliação, em grande escala. Existem boas experiências de ensino a distância em todo o mundo, a começar pela famosa The Open University, na Inglaterra. Cursos na modalidade semipresencial, em que os estudantes se encontram periodicamente para trabalhar com os professores e têm a possibilidade de um contato com mestres e colegas via internet, podem ser melhores do que os cursos noturnos que proliferam no Brasil. Um dos problemas com os tradicionais programas a distância daqui é que, trabalhando sozinhas, muitas pessoas os abandonam antes do fim. Resolver essa questão não é tão simples quanto parece: não é barato criar um sistema em que os alunos consigam efetivamente interagir com seus professores a distância — e, sem isso, a qualidade dos cursos fica bastante comprometida.

Quando se trata de jovens e, principalmente, de crianças, a situação é muito diferente. O processo educativo não consiste apenas na transmissão de conhecimentos que podem ser gravados em aulas e codificados em sistemas de ensino, mas em um conjunto mais amplo de atitudes, valores e maneiras de pensar e trabalhar que só é passado na interação direta entre quem ensina e quem aprende e na convivência diária entre colegas. Em parte, são as chamadas “competências não cognitivas”, características de personalidade como persistência, capacidade de produzir em equipe, estabilidade emocional, motivação. Elas têm importância cada vez mais reconhecida na educação e no trabalho e se desenvolvem no dia a dia da experiência escolar, quando bem conduzida. Também se aprimoram in loco, na interação, os “conhecimentos tácitos”, como a maneira de construir um argumento, a apreciação de um texto literário ou uma obra de arte, o significado de uma demonstração e tantas outras habilidades que as pessoas só aprendem no contato com outras que já detêm tais saberes e práticas. Dessa interação também se depreendem valores, ensinados pelo exemplo. Na escola, quem pode transmitir tudo isso são os professores — os mestres são insubstituíveis, e toda a evidência internacional é que a excelência dos sistemas escolares, e da educação de um país, se dá justamente pela qualidade deles.

Para crianças, o ensino a distância só faz sentido de forma complementar e com a orientação de um professor

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De novo, é importante distinguir aqui o ensino fundamental do ensino médio. No fundamental, o uso de recursos pedagógicos a distância só faz sentido de forma complementar, sob orientação e com acompanhamento dos docentes. Existe muito espaço para aplicar recursos tecnológicos que os apoiem, como planos de aula, materiais de demonstração e experiências de colaboração com crianças de outras escolas, além dos trabalhos de educação continuada dos próprios professores.

A recente reforma do ensino médio que o Ministério da Educação está tratando de implementar traz duas ideias aparentemente incompatíveis: a preferência pelo ensino médio de tempo integral e a abertura para a possibilidade de fazê-lo a distância. Soa como uma contradição, mas só para quem se esquece da grande variedade dos estudantes e das redes escolares do país. O ensino de tempo integral, como o dos institutos federais e o das escolas militares, pode ser bom, mas é caro, seletivo (os alunos passam por “vestibulinhos”) e não há como estendê-lo de forma significativa às redes estaduais. Hoje, metade dos alunos do ensino médio no Brasil tem 18 anos ou mais, um terço estuda à noite, muitos precisam trabalhar, a maioria não vai para uma universidade, e todos precisam adquirir competências profissionais que sejam úteis e valorizadas no mercado de trabalho. Para estes, uma combinação entre cursos presenciais concentrados nas matérias básicas e cursos mais práticos em diferentes modalidades, incluindo as aulas a distância, pode constituir uma fórmula produtiva para o aprendizado, dependendo de onde vivem os alunos, dos recursos locais disponíveis e das áreas de capacitação.

Uma questão importante é refletir se é realmente vantajoso para o governo estimular o desenvolvimento do ensino a distância no nível superior, seja nas instituições públicas, seja via financiamento das particulares, como substituto para o ensino presencial. Uma justificativa seria a necessidade de ampliar o acesso à universidade, que ainda é limitado. No entanto, vale lembrar que o principal obstáculo à expansão do ensino superior no Brasil não é a falta de vagas ou cursos, mas sim o número ainda pequeno de pessoas que terminam o ciclo médio preparadas para estudos mais avançados. Milhões se candidatam todos os anos ao Enem, poucos se classificam, metade dos que entram em universidades nunca termina o curso, e muitos dos que se formam acabam trabalhando em atividades de nível médio. Para os que ficam pelo caminho, a educação universitária é uma grande fábrica de ilusões que custa dinheiro e tempo que poderiam ser usados para um aprendizado mais prático. Multiplicar vagas de ensino a distância, em que as taxas de abandono são muito mais altas, pode significar agravar esse quadro.

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Em suas diferentes modalidades, o ensino a distância, quando benfeito e aplicado aos conteúdos, níveis e tipos de aluno, sobretudo na educação continuada de adultos, é um excelente recurso, mas não um substituto para boas escolas e bons professores, especialmente nos anos iniciais de formação. De um modo ou de outro, os problemas das escolas brasileiras não se resolverão com novas tecnologias, nem com educação a distância, mas com bons mestres, currículos adequados e altos padrões de exigência de desempenho de estudantes, professores e instituições.

* Simon Schwartzman é sociólogo, especialista em educação e membro da Academia Brasileira de Ciências

Publicado em VEJA de 24 de outubro de 2018, edição nº 2605

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