Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Marco da redemocratização, Constituição faz 25 anos

Reportagem de VEJA mostra como a Carta Magna fez do Brasil um país democrático, mas suas fraquezas intrínsecas impedem que ela desfrute, ao completar 25 anos, da aura de outras Cartas, como a americana

Por Gabriel Castro e Daniel Jelin
5 out 2013, 07h49

As fotos que ilustram esta página mostram dois momentos da história recente em que o Congresso Nacional foi tomado por pessoas comuns. A primeira data de 1º de fevereiro de 1987: enquanto no plenário da Câmara se instalava a nova Assembleia Constituinte, do lado de fora centenas comemoravam nas ruas e escalavam a cúpula desenhada por Oscar Niemeyer. A segunda é um flagrante da noite de 17 de junho de 2013, quando uma multidão marchou por Brasília para protestar, gritar palavras de ordem, pedir “mudança”. A primeira foto fala da esperança de que uma nova Constituição pudesse lançar as bases de um país democrático e moderno. A segunda lembra que a esperança só se cumpriu em parte. Não há dúvida de que a democracia avançou no Brasil no último quarto de século e de que a Constituição teve um papel essencial nesse processo. Mas é significativo que na miríade de cartazes levados às ruas durante as manifestações de junho, e na enxurrada de mensagens postadas nas redes sociais, a Carta raramente tenha sido mencionada como um ponto de referência simbólico. Quando ela se tornou assunto, foi de modo negativo: em resposta àqueles que expressavam na rua o seu repúdio à corrupção e à classe política, o governo sugeriu, de maneira funesta, que se reformasse o sistema político por meio de uma “Constituinte específica”. Entre o esquecimento dos manifestantes e o perigoso arroubo do Executivo, fica claro que a Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988 não desfruta, em seu 25º aniversário, da aura quase sagrada de que se reveste, por exemplo, a Carta dos Estados Unidos. Por que isso aconteceu? Em grande parte, devido às suas fraquezas intrínsecas. O que não significa que ela não deva ser, para além de respeitada, defendida.

100 visões da Constituição de 1988

O que a Constituição significa para você? O site de VEJA fez essa pergunta políticos, empresários, intelectuais, artistas e profissionais das mais diversas áreas. O resultado é um grande painel das impressões que a Carta de 1988 causa nos brasileiros.

Em todas as 341 sessões consumidas na redação da Carta Magna, o fantasma do regime militar permaneceu na assembleia ao lado dos constituintes. Isso deixou uma marca profunda no texto final, que não se limita a elencar alguns direitos fundamentais. Para assegurar que os abusos da ditadura não se repetissem, os constituintes crivaram o texto de dispositivos “garantistas”. Pelas mesmas razões, o ambiente era propício para que todas as vozes e todos os pleitos que gozassem de alguma representatividade – e tivessem sido calados nos anos anteriores – fossem acolhidos. Hoje senador, Paulo Paim (PT-RS) admite que se esforçou para incluir no texto o máximo de dispositivos trabalhistas: “Eu tinha clareza de que tudo aquilo que ficasse gravado, só com uma emenda à Constituição, que exige três quintos dos votos, poderia ser retirado. Por isso, trabalhei muito para que o tratamento do tema fosse o mais amplo possível”, diz ele. A declaração de Paim reflete bem o espírito com que os constituintes abordaram sua tarefa e explica por que a Constituição pode ser descrita como prolixa (a décima mais extensa do mundo), segundo dados do projeto Comparative Constitutions (CCP), paternalista (apenas dez fixam mais direitos) e quase surrealmente detalhista: ela incluiu até mesmo um parágrafo dedicado à administração do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Como muitos direitos previstos necessitam de leis para se materializar, criou-se um enorme ônus de regulamentação: ainda hoje, 112 dispositivos aguardam nessa fila.

Continua após a publicidade

Infográficos

Anatomia da Carta de 1988

Constituições comparadas

Continua após a publicidade

As sete constituições da história do Brasil

Os mais graves pecados foram cometidos na área econômica. O exemplo notório é o artigo 192, do capítulo que trata da ordem financeira. Ele fixou em 12% o teto da taxa de juros no Brasil. “Foi um desastre”, lembra o economista Maílson da Nóbrega, que era ministro da Fazenda em 1988. “A Constituição reforçou o dirigismo um ano antes da queda do Muro de Berlim e incorporou preconceitos infantis contra o capital estrangeiro, a empresa privada e os direitos de propriedade.” Nos anos que se seguiram à promulgação, os artigos sobre economia e tributação se chocaram continuamente com a realidade. E o pragmatismo, felizmente, acabou prevalecendo sobre o pensamento mágico. A maior parte das 74 emendas aprovadas desde 1988 tem a ver com esses dois temas. No começo dos anos 90, por exemplo, durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, os dispositivos que limitavam a entrada de capital estrangeiro foram derrubados, permitindo revoluções como a da telefonia. Segundo um estudo recente realizado pelo gabinete do constituinte e atual senador Francisco Dornelles (PP-RJ), a lógica tributária instituída pela Carta de 1988 foi totalmente desmontada nos últimos 25 anos. Ah, sim: o artigo sobre os juros de 12% foi expurgado em 2003.

Continua após a publicidade

Seja pela necessidade de desfazer o que não faz sentido, seja pela necessidade de regulamentar o que foi deixado em aberto, o fato é que a Constituição brasileira nunca atingiu a plena eficácia em seus próprios termos. É instrutivo, mais uma vez, o paralelo com a Constituição americana – exemplo máximo de Carta “sintética”. Promulgada em 1789, ela cuidou unicamente de fixar um sistema de governo, criando pesos e contrapesos para a atuação de cada um dos três poderes, e de estabelecer os limites da atuação do governo central, assegurando a autonomia dos estados. A famosa Bill of Rights (Carta de Direitos), coleção de dez emendas que tratam das garantias individuais, só veio à luz em 1791 – e mesmo assim depois de muito debate sobre a conveniência de incluir ou não regras desse tipo na Constituição. O desenho austero faz com que a Constituição americana mantenha seu vigor, apesar dos mais de dois séculos de vida.

Vídeos

Testemunha da história

Continua após a publicidade

Os constituintes esquecidos

Atolados em processos

Continua após a publicidade

VEJA pediu a mais de 100 políticos, empresários, intelectuais e artistas brasileiros que falassem sobre a Carta de 1988 (os testemunhos podem ser lidos na edição para tablet e no site de VEJA). Muitos reconhecem avanços no texto que enterrou o arbítrio do regime militar, mas a nota que soa com maior frequência é a do ceticismo em relação a ela. “A nossa Constituição dá margem a muita confusão”, diz o cantor Ney Matogrosso. “Para mim, a Constituição é coisa para inglês ver – e ingleses nem têm Constituição”, diz o filósofo Luiz Felipe Pondé. “A Constituição de 1988 foi um avanço, um marco, um símbolo da conquista de todos os brasileiros. Mas já estou querendo saber é da nova Constituição, de dois mil e…”, brinca o humorista Fábio Porchat.

A Constituição não é perfeita. Mas também é verdade que redigir uma Constituição é trabalho para momentos históricos especiais – aqueles em que uma sociedade passa por ruptura ou transição. Fora dessas circunstâncias, o trabalho de uma Assembleia Constituinte, em vez de expressar uma vontade comum, construída em meio ao ruído e a duras penas, pode expressar tão somente a vontade do grupo político momentaneamente mais forte. “Soa aventureiro e até mesmo irresponsável clamar por uma Constituinte ou querer colocar um termo nesta Constituição”, diz o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. A Carta de 1988 é o marco da redemocratização do país, e nem seus críticos questionam sua legitimidade. Bem ou mal, o texto proporcionou o mais longo período ininterrupto de democracia que o país já atravessou. Não é o caso, portanto, de ceder à tentação de reformá-la em grandes blocos, muito menos de deitar abaixo o edifício inteiro. É o caso de depurá-la, segundo os mecanismos que ela mesma prevê. O especialista em direito comparado americano Tom Ginsburg, um dos mentores do CCP, lembra que a Carta de 1988 já nasceu sob críticas. “Alguns estudiosos previam que ela não duraria nem cinco anos”, diz. “Ao contrário, ela tem ajudado o país a construir uma base de governança e pelo menos parcialmente motivou iniciativas para tornar a sociedade mais justa. Há um longo caminho pela frente, mas, por ser flexível e contar com mecanismos para a sua reforma, o Brasil pode seguir com ela nessa caminhada.”

Para ler outras reportagens compre a edição desta semana de VEJA no IBA, no tablet ou nas bancas.

Outros destaques de VEJA desta semana

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.