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Jogos diplomáticos: como nasceu o texto da Rio+20

Diante da falta de consenso, Brasil ofereceu aos países da ONU duas possibilidades: concordar ou aceitar imposição. Falou mais alto o 'mago' das conferências, o embaixador Luís Alberto Figueiredo Machado, o mesmo que salvou o encontro de Durban em 2011

Por Luís Bulcão e Marco Túlio Pires
24 jun 2012, 11h02

“Vocês chegaram a um acordo? Preferem que eu arbitre? Eu posso arbitrar. Já fiz isso muitas vezes. Por favor, cheguem a um acordo, caso contrário eu vou decidir”, dizia Figueiredo Machado para os negociadores da reunião fechada

“Grupo G-77, vocês chegaram a um acordo?”, vociferava o embaixador brasileiro Luiz Alberto Figueiredo Machado ao coordenar uma das últimas rodadas de negociações a portas fechadas da Rio+20. Em resposta, o representante do grupo hesitava: “Desculpe embaixador, parece que não temos concordância”.

Três dias antes, quando Figueiredo Machado anunciou que o Brasil assumiria as rédeas das negociações, a conferência estava à beira do colapso. Após quatro encontros preparatórios – três em Nova York e um já no Rio -, que tiveram início no dia 19 de março, os grupos e subgrupos liderados pelos copresidentes indicados pela ONU, John Ashe, de Antigua e Barbuda, e Kim Sook, da Coréia do Sul, se engalfinharam na composição de um texto que passou de 19 páginas, quando foi publicado o rascunho pela primeira vez, para mais de 200 páginas, diante das sugestões dos países. Após o terceiro encontro, o documento retornou para 80 páginas, mas chegou ao Rio com 259 parágrafos marcados por colchetes, que, na diplomacia, são sinal de contestação. Os três dias de Comitê Preparatório, iniciados no dia 13, não representaram avanço significativo. O documento tinha pouco mais de um terço do seu conteúdo sob consenso – apenas os parágrafos mais evasivos e retóricos – e o fantasma da conferência do clima de Copenhague (2009) parecia assombrar também aquela que foi pensada e organizada para ser a maior cúpula da história, a Rio+20.

Em meio à tensão, a avaliação era de que Ashe e Sook haviam estabelecido um processo complexo e demorado, ainda que democrático, que envolvia projetar trechos do texto na tela e estimular as discussões parágrafo por parágrafo, enquanto os impasses permaneciam em conceitos maiores. Além disso, os dois pareciam não se comunicar muito bem e, nos corredores, delegados afirmavam que ambos tinham uma concepção divergente do que a Rio+20 deveria ser.

À meia-noite do dia 16, quando a equipe do Itamaraty assumiu os trabalhos, não havia mais tempo a perder. Era preciso energia e certa dose de autoridade. Começou então a nascer o documento que se tornaria a versão final da Rio+20, um resultado contestado por ONGs e autoridades mas que, pelo que indicavam as negociações, talvez jamais chegasse a algo “ambicioso” como se queria por uma razão simples: o processo, até aqui, tornava impossível conciliar ambições e medos tão diferentes entre os países-membros da ONU.

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O chanceler Antônio Patriota reuniu a equipe e começou a apresentar as cartas. A primeira foi um novo texto, completamente limpo, sem qualquer colchete. Liderados por Figueiredo Machado e pelo negociador chefe, André Corrêa do Lago, os diplomatas reorganizaram a discussão e começaram a dura tarefa de fazer o texto do Brasil passar pelo ajuste e pela aprovação de todos.

O mago – Figueiredo Machado não é figura desconhecida dos delegados que acompanham as negociações internacionais para o meio ambiente. Desde 2005, ele integra as comissões brasileiras para as maiores conferências e, em 2011, assumiu a subsecretaria do Itamaraty para Meio Ambiente, Energia, Ciência e Tecnologia. Seu grande feito ocorreu há pouco mais de seis meses, mas já circula nos bastidores da ONU como lenda diplomática. Quando a Conferência das Partes para a Convenção sobre Mudança Climática de Durban (2011) estava a ponto de seguir os passos do fantasma Copenhague, o embaixador soprou uma frase nos ouvidos dos colegas e, no último minuto da “prorrogação” – as negociações já haviam se estendido 36 horas além do previsto – , aquele palpite salvou a conferência.

A mágica de Figueiredo Machado foi uma demonstração de habilidade jurídica. Diante de um impasse aparentemente sem solução, o embaixador cunhou a expressão “resultado acordado com força de lei”, que pareceu conciliar duas posições contraditórias. A Índia não queria assinar um tratado com comprometimento legal e a União Europeia exigia que o tratado tivesse vínculo jurídico. Ao contrário de Copenhague, Durban figura no hall recente de conferências bem-sucedidas.

Por isso, às 21h05 do dia 18, a figura no centro da mesa da sala B do Pavilhão 3 do Riocentro impunha respeito. “E então G-77, vocês chegaram a um acordo? Preferem que eu arbitre? Eu posso arbitrar. Já fiz isso muitas vezes. Por favor, cheguem a um acordo, caso contrário eu vou decidir”, dizia Figueiredo Machado para os negociadores da reunião fechada. Sob pressão do presidente de mesa, o G-77, grupo formado por mais de 130 países, entre eles o Brasil, levou seis minutos para consultas, mas cedeu. “Embaixador, desculpe a demora, mas temos boas notícias. Concordamos com o parágrafo referido, que foi oferecido pela União Europeia”, afirmou o representante do grupo.

O embaixador brasileiro ordenou então a leitura do novo parágrafo acordado para que todos tomassem nota, mas sem perder em vista os ponteiros do relógio. “Poderia ler mais rápido e não tão devagar?”, pediu, com firmeza, sendo novamente atendido. Se alguém ainda não tinha entendido, ficou claro: os trabalhos, além de sérios, naquele ponto precisavam ser também rápidos – ou o Brasil começaria a cúpula de chefes de estado desmoralizado por não cumprir o prazo alardeado na véspera, para a conclusão do texto.

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Duas outras deliberações foram discutidas na reunião, mas dessa vez o embaixador não conseguiu vencer a resistência de um negociador irredutível. “Agradeço os esforços dos amigos do G-77 em tentar rever a condição apresentada, mas a nossa posição é clara: os dois parágrafos devem ser descartados, isso é inegociável”, disse o representante dos Estados Unidos, ao rejeitar textos que mencionavam tratados anteriores e a questão da erradicação da pobreza. A reunião terminava ainda com muitos impasses.

A madrugada do dia 19 foi escaldante. Após uma confusão de troca de salas e desorientação geral, a plenária convocada pelo Brasil para apresentar o documento havia atrasado três horas. Janez Potocnik, comissário do meio ambiente da União Europeia e chefe de delegação do bloco, reclamava à imprensa que não poderia votar, pois ainda não tinha visto o texto final. Avisado por assessores, Figueiredo Machado deixou a sala e foi em direção ao colega. Potocnik sorriu e estendeu a mão para o embaixador brasileiro. Machado cumprimentou o europeu. “É linda essa cidade, é um prazer estar aqui. Essa é sua cidade?”, perguntou Potocnik. “Sim, sou do Rio. É bom tê-lo aqui”, respondeu Machado, olhando firme, sem soltar a mão do colega. O embaixador falou algo em tom baixo e depois retornou à sala. Potocnik sentou e compartilhou um pacote de biscoitos com jornalistas até que, às 2h18, o chanceler Patriota anunciou que Brasil tinha chegado a um texto final. Mas o europeu e as demais delegações tiveram que aguardar até as 7h para ver o resultado.

A mágica – Ao meio-dia do dia 19, as olheiras e bocejos de delgados não arrefeciam os embates. O texto apresentado pelo Brasil tinha passado por cinco horas de avaliação e o país anfitrião queria aprová-lo. Em frente à mesa principal, Patriota ouvia os protestos. “O texto diz fortalecer o PNUMA, mas na verdade o enfraquece”, dizia um delegado do Quênia. “O termo upgrade pode aos poucos retirar o PNUMA de Nairóbi e enfraquecê-lo no território africano”, protestava outro. O chanceler rebateu os argumentos até o último minuto. Subiu à mesa e falou, ainda em meio à agitação. “Não ouço objeções. Assim está decidido”. E bateu o martelo às 12h18, desagradando a gregos, troianos e alemães- que se uniram em uma vaia pouco calorosa -, mas exorcizando o fantasma de Copenhague.

Os 283 parágrafos do “Futuro que Queremos”, o texto que os chefes de estado acabaram ratificando na sexta-feira sem ousar reabrir negociações, certamente está aquém da expectativas de todos. O G-77 queria financiamento e transferência tecnológica. A Europa queria que o mundo adotasse a economia verde. A ONU desejava promover os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Os Estados Unidos esperavam aprovar o direito de reprodução. Os africanos lutavam para que o PNUMA fosse elevado à condição de agência especializada – algo semelhante à OMS, na saúde. Na verdade, o documento não define nenhuma dessas intricadas e difíceis ambições – ainda mais sob as nuvens negras da crise econômica. Patriota pondera: “O resultado não deixa de ser satisfatório porque existe um resultado. A perspectiva era de ter texto ou não ter texto. Temos um texto. As críticas são bem vindas”, disse.

A saída diplomática que o Brasil administrou foi um truque similar ao de Durban. Em vez de acordarem a criação de um fundo para financiamento e dizer o quanto vão doar, os países usam a conferência para prometer a criação de um fundo até 2014. Em vez de criar uma agência para o PNUMA, estabelecem formas de fortalecimento e abrem espaço para uma futura atualização. E se não define metas claras para o desenvolvimento sustentável, cria-se um processo intergovernamental para discutir a criação dos objetivos.

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Em Durban, sob a batuta de Figueiredo Machado, os países não substituíram o caquético Protocolo de Kyoto, tampouco estipularam novas metas para a redução de emissões de gases. Mas eles prometeram que vão criar metas até 2015 para serem adotadas a partir de 2020. No final, só o futuro – seja ele o que queremos ou não – vai dizer se as mágicas da diplomacia brasileira vão funcionar. Ou se mais um texto vai virar abóbora quando as promessas vencerem.

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