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Inspiração de Veríssimo, ‘Velhinhas de Taubaté’ perderam crença no governo

Criada pelo escritor gaúcho, personagem que acreditava em tudo o que os políticos diziam não encontra mais identificação entre moradoras da cidade paulista

Por Mario Mendes
28 Maio 2018, 17h02

Ao contrário do que se tem notícia, a célebre Velhinha de Taubaté, assim como Elvis Presley, não morreu. Apesar de seu criador, o escritor Luis Fernando Veríssimo, ter decretado há mais de uma década, em crônica publicada em O Estado de S.Paulo, o falecimento da venerada senhora, vira e mexe alguém insiste em descobrir seu atual paradeiro para perguntar a quantas anda sua convicção sobre a credibilidade do governo e a situação política do país.

Para refrescar a memória, ou informar os mais jovens que não conheceram tão ilustre personagem, vale lembrar que a Velhinha de Taubaté — criada durante o último governo militar, do presidente João Baptista Figueiredo (1979-1985) — era uma alma inocente, que acreditava em tudo que lhe diziam, principalmente se a fonte era Brasília. “Ela acredita em anúncio, acredita em nota de esclarecimento, acredita até nos ministros da área econômica”, segundo Veríssimo.

Porém, mesmo a inabalável fé da Velhinha sucumbiu diante do choque de realidade provocado pelo escândalo do Mensalão. Em 2005, sofreu um piripaque na frente da televisão e partiu desta para melhor. Dizem que foi desgosto ao descobrir que seu ídolo, o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, estava mergulhado em um mar de lama. Mas ainda paira a suspeita de suicídio. Ela teria se envenenado, com uma xícara de chá batizado, tamanha a desilusão com o governo que vinha carregando havia algum tempo.

Corte rápido para 2018 — quando se aguarda um tremor em solo pátrio, não apenas por ser ano de Copa do Mundo, mas sobretudo por ser ano de eleição presidencial — e VEJA foi até a conhecida cidade do Vale do Paraíba, localizada a 130 quilômetros da capital paulista e terra de outros brasileiros notáveis, como Monteiro Lobato e Hebe Camargo, para verificar a veracidade dos fatos: estaria mesmo, morta e enterrada, a crédula Velhinha?

Mesmo sem ter em mãos o endereço da senhorinha em questão, resolvemos arriscar e tentar encontrá-la nos locais onde ela poderia frequentar: o Mercado Municipal, a praça Santa Terezinha, no centro da cidade, e a Casa do Figureiro, o maior centro de artesanato da região. Procura daqui, vasculha dali, pede-se informação a um transeunte e outro, e nada.

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A Velhinha de Taubaté, a própria, realmente saiu de circulação na década passada, mas encontramos aquelas que podem muito bem representar a versão atual do personagem. Em 2018, não podemos dizer que elas são exatamente velhinhas, mas têm lá suas crenças. O governo, decididamente, não é uma delas.

Por exemplo, trabalhando em sua barraca de frutas no Mercado Municipal, está d. Aparecida (Medeiros da Silva, 80 anos), semblante altivo, voz firme e sem meias palavras vai avisando: “Nunca votei na vida. Aprendi com meu pai, que era da lavoura e ensinou assim para todos os filhos”. Ela também conta que está ali, trabalhando no mesmo local, há 53 anos — antes ela passou 20 anos “na roça”. Levanta-se todos os dias às três e meia da manhã, porque antes de pegar no batente faz potes de doces e compotas, vendidos para reforçar o orçamento doméstico. “O senhor acha que é possível que com 80 anos eu ainda tenha que trabalhar, porque a minha aposentadoria é de apenas um salário mínimo?”, indaga indignada. E declara com todas as letras: “Lá (em Brasília) são todos ladrões, sempre quem ganha são os políticos, o povo está vendo toda essa pouca vergonha e continua votando nessa gente”, diz inconformada. Na sua casa, conta, filhos, netos e bisnetos dizem que vão votar nas eleições: “Mas isso é com eles, eu não me meto”. E dispara: “A minha opinião eu não mudo, porque tem duas coisas que eu não gosto nessa vida, dívida e mentira”. Declaração impensável para a Velhinha de Veríssimo.

Apressada para apanhar a condução de volta pra casa, dona Marinalva (Rosa de Souza, 68 anos, aposentada) diz que não é de Taubaté: “Sou baiana, de Irecê, mas vim para cá muito menina e nunca mais saí”. Ela olha desconsolada para o repórter: “Faz tempo que o Brasil não está bem, não é? Mas quer saber, nunca vi muita diferença entre um governo e outro. Acho que está na hora de mudar alguma coisa”, pondera. Não, ela não acredita em governo nem em políticos: “No começo eu achei que o Lula foi bom para os pobres, mas depois danou-se tudo”. Sim, ela pretende ir às urnas, com indicação do neto: “Ele diz que esse aí, o (Jair) Bolsonaro, é para votar nele. Ele parece ser sincero e diz que tem pulso. Vamos ver, né?”. Em sua convicção nas ações do governo, a Velhinha de Taubaté jamais deu espaço para a dúvida.

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Aos 80 anos, d. Maria do Carmo (Nogueira) é professora aposentada e se diz afastada dos acontecimentos. Postura elegante, discreta, ela arrisca falar apenas da condição dos aposentados: “Não houve aumento para nós, mas tudo ficou mais caro”. Claro que o tema “educação” está entre seus interesses, entretanto não se mostra animada com o cenário atual: “Antigamente era muito melhor. Fico horrorizada com o que leio no jornal e vejo na TV, sobre aluno agredindo professor na sala de aula”. A desilusão também se estende ao governo e também ao eleitor: “Você se lembra quando apareceu o Collor e todo mundo queria votar nele porque era rico, bonito… Deu no que deu”. Na verdade, d. Maria do Carmo se diz confusa tanto com a polarização ideológica que divide o eleitorado quanto com as investigações da Operação Lava Jato e as declarações dos investigados e acusados: “Não se sabe onde está a verdade, porque todos se dizem inocentes. Meu marido gosta muito de política e diz que é preciso votar. Olha, para ser sincera, eu nem sei quem são os candidatos”. Segue puxando seu carrinho de compras dando sinais de querer distância do insensato mundo do governo e seus políticos.

‘Você se lembra quando apareceu o Collor e todo mundo queria votar nele porque era rico, bonito… Deu no que deu’, diz a professora aposentada Maria do Carmo Nogueira, 80 anos (Reinaldo Canato/VEJA.com)

Claro que existe aquela senhora (sim, porque não se trata exatamente de uma velhinha) disposta a falar com a reportagem, porque está forte, sacudida e engajada. É o caso de d. Lucia Maria (de Souza Ferreira, pedagoga, 62 anos). Vaidosa, antes de dar seu depoimento, quer saber se o cabelo está bom e fica um tanto insegura, porque está sem batom e sem os brincos (a irmã, logo vem em seu socorro). Com o melhor dos sorrisos, fala sem pausas como se estivesse se dirigindo às câmeras de uma emissora de TV de grande audiência: “Sou de Rondônia e desde dezembro resido em Taubaté. O governo? Uma decepção! Nunca votei no PT, porque sou PMDB. Aliás, me candidatei a vereadora em Porto Velho, mas não fui eleita, faltaram 200 votos. Fui secretária no governo Valdir Raupp (atual senador), então trabalhei muito na política. Tive alguma esperança de melhora quando houve o impeachment da presidente Dilma (Rousseff), mas não melhorou nada. Foi só decepção, meu Deus! A política está desacreditada. Não há opção para as próximas eleições. Geraldo Alckmin, talvez? Não sei. O Brasil precisa de alguém com a capacidade de acabar com a corrupção, investir pesado na educação e promover o respeito e apoio aos idosos”. E vai correndo passar batom e colocar os brincos para ficar bem na foto. A Velhinha de Taubaté jamais se comportaria assim, de forma tão midiática.

‘Tive alguma esperança de melhora quando houve o impeachment da presidente Dilma, mas não melhorou nada. Foi só decepção, meu Deus! A política está desacreditada. Não há opção para as próximas eleições’, afirma a pedagoga Lucia Maria de Souza Ferreira, 62 anos (Reinaldo Canato/VEJA.com)

De longe se avista d. Edivania (Moreira de Lima). Chapéu vistoso sobre vasta cabeleira e macacão animal print (estampa de bicho). Ela é auxiliar de enfermagem e ainda está na casa dos 50 (53 anos, para ser exato). Mas que figura: “Vou ser sincera, eu já fui PT”, abrindo um largo sorriso. Despachada, vai falando sem esperar por pergunta nenhuma: “Eu acreditei no Lula, que ele faria um governo bom para nós, mulheres e trabalhadores. Acabamos todos presos na tal maracutaia, não é mesmo?”. Sem perder o bom humor, conta que não votou em Dilma Rousseff: “Mas antes ela tivesse acabado o governo, porque com Temer piorou muito. Em quem votar agora? Não sei, porque quando acreditei caí do cavalo”. Apesar dos pesares diz que iria de Geraldo Alckmin: “Mas só porque ele é aqui do Vale (do Paraíba). Eu converso muito de política com o meu marido e com meus amigos, mas no trabalho sou criticada pelo passado petista. Então, vamos dizer que estou procurando uma nova identidade política”. Ela percebe o repórter reparando na cor do batom que usa. Ri: “É, sou assim mesmo. Minha cor sempre foi o roxo. Nunca o vermelho”. Alguém imagina a Velhinha original de batom roxo?

‘Eu acreditei no Lula, que ele faria um governo bom para nós, mulheres e trabalhadores. Acabamos todos presos na tal maracutaia, não é mesmo?’, diz Edivania Moreira de Lima, 53 anos, auxiliar de enfermagem (Reinaldo Canato/VEJA.com)

Na praça Santa Teresinha, d. Irene (Rodrigues, 73 anos) vem em nossa direção pedalando sua bicicleta (impensável a Velhinha de Taubaté montada em uma magrela). Ela é coletora de recicláveis e pedala não por questão de saúde ou ativismo do transporte alternativo, mas por necessidade. Desloca-se pela cidade inteira o dia todo. Pernambucana que chegou em Taubaté menina, já foi faxineira e se revela dona de um bom humor inabalável diante de sua visível condição social precária. “Sabe, eu gostava muito do outro governo, da ‘Vilma’, porque o Bolsa Família ajudava muito a gente e agora mudou tudo, nem cesta básica se consegue mais”, informa. Reclama que a coleta de lixo da prefeitura afetou seu trabalho, porque quase não sobram latinhas e garrafas pet para serem recolhidas e levadas para a usina de reciclagem. “Tenho 10 filhos e 24 netos, e a netaiada aparece todo dia para tomar banho lá em casa, então só de água pago 160 reais todo mês”, revela. Recentemente ficou chateada por não ter conseguido o conversor de HD para seu aparelho de TV: “Disseram que eu só poderia receber um se tivesse conta na Caixa, mas com que dinheiro? Antes eu tirava 300, até 400 reais por mês, agora nem isso”. Por isso se diz completamente desinformada sobre o governo e os rumos do país. “Sem televisão, não vejo novela, repórter, nem Lula, vou dormir”, resume. Ao saber que vem aí eleições, se anima: “Quem sabe muda alguma coisa e tenha mais trabalho pra gente. Porque eu tenho 73, mas não estou cansada. Quero trabalhar”. E sai disparada na bicicleta.

‘Sabe, eu gostava muito do outro governo, da ‘Vilma’, porque o Bolsa Família ajudava muito a gente e agora mudou tudo, nem cesta básica se consegue mais’, Irene Rodrigues, 73 anos (Reinaldo Canato/VEJA.com)

Enquanto isso, do outro lado da praça, próximo à igreja, d. Eliana (Bittencourt da Silva, dona de casa, 60 anos), se diz sem esperança: “A gente só fica sabendo de coisa errada que acontece por lá. Seria bom se todas essas prisões fizessem uma limpeza, e eles (políticos) parassem de fazer só o que bem entendem”. Chega até a ser radical: “Não seria o caso de tirar todo mundo e começar tudo de novo? Porque do jeito que está eu não acredito nem tenho vontade de votar em ninguém. Sinceramente? Nunca gostei de governo nenhum”. E mais não disse, porque estava atrasada para servir o almoço da família.

‘Não seria o caso de tirar todo mundo e começar tudo de novo? Porque do jeito que está eu não acredito nem tenho vontade de votar em ninguém. Sinceramente? Nunca gostei de governo nenhum’, comenta a dona de casa Eliana Bitencourt da Silva, 60 anos (Reinaldo Canato/VEJA.com)

Na Casa do Figureiro, o maior centro de artesanato da região, várias senhoras passam a tarde às voltas com as mãos ocupadas trabalhando em argila. D. Tina (Valentina Viviani de Moura, funcionária pública aposentada, 81 anos) é uma delas. É dessas pessoas que gostam de boa prosa, de um bom causo e lembram de outros tempos.

“Minha primeira lembrança de governo é do meu tempo de mocinha, o suicídio do Getúlio Vargas, que foi um bafafá”, conta, informando que o marido também chegou a ser vereador na cidade. “Eu não entendia muito de política, mas as minhas amigas do trabalho, na Companhia Fabril de Estopa, diziam que ele foi muito bom para os trabalhadores. Assim como o Lula… ” Pausa a prosa, pensa e emenda: “Eu não sou contra, mas, vamos dizer assim, ele pisou na bola, né?”. Eleitora de Lula e Dilma, d. Tina conta que o filho é quem realmente gosta do assunto e a mantém informada. “Agora temos a possibilidade do (Geraldo) Alckmin, mas meu filho já me contou que ele também andou dando umas puladinhas de cerca”, fala com um sorrisinho de canto de lábio. “Meu filho, o problema do Brasil é falta de educação, saúde e emprego. A obrigação do governo é olhar pelos mais necessitados.” Não, ela não pretende comparecer às urnas. “Não estou prestando muita atenção nisso, meu negócio agora é ser figureira”, e volta a moldar a argila.

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‘Meu filho, o problema do Brasil é falta de educação, saúde e emprego. A obrigação do governo é olhar pelos mais necessitados, afirma Valentina Viviani de Moura, 81 anos, funcionária pública aposentada (Reinaldo Canato/VEJA.com)

Já d. Isaura (Gomes de Lima, artesã, 62 anos) se mostra bem informada e atuante. Até quis entrar para a política, mas desistiu por falta de verba para a campanha — na verdade, achou todo o processo meio complicado — e vê os últimos anos de governo brasileiro com muitas reservas. “É evidente que com Lula os mais pobres tiveram melhores oportunidades. Mas não entendo como é que as coisas vão andando bem e, de repente, acabam do jeito que estamos vendo, com a população desacreditando de tudo”, desabafa. Considera que estamos aprisionados em um compasso de espera: “Desde que a presidente Dilma foi retirada do cargo, estacionamos e todo mundo passou a acusar todo mundo. Até padre foi acusado, veja só”. Espectadora da TV Senado ( “Adoro assistir!”), e membro do Conselho de Cultura de Taubaté, acredita que o maior problema do país é justamente a perda de fé do eleitor. “Às vezes até penso que era melhor no tempo da Ditadura, porque a gente não ficava sabendo de nada”, conclui.

Mesmo desaparecida, parece que o espírito da Velhinha de Taubaté se faz presente na cidade e a vontade de acreditar que alguma coisa possa mudar, e melhorar, ainda está no ar.

‘Às vezes até penso que era melhor no tempo da ditadura, porque a gente não ficava sabendo de nada’, diz Isaura Gomes de Lima, 62 anos, artesã (Reinaldo Canato/VEJA.com)
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