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Início da vacinação muda jogo político e aumenta pressão sobre Bolsonaro

Imunização contra a Covid-19 no país impõe a ciência ao negacionismo, influencia a opinião pública e arranha imagem do presidente

Por Edoardo Ghirotto, Gabriel Mascarenhas, Laryssa Borges Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Nonato Viegas Atualizado em 22 jan 2021, 10h46 - Publicado em 22 jan 2021, 06h00

Levou um tempo bem maior do que o necessário, mas o Brasil finalmente deu início à vacinação contra a Covid-19. O primeiro passo ocorreu no domingo 17, no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Tão logo a Anvisa autorizou o uso emergencial de dois imunizantes, o governo paulista realizou uma cerimônia para que a enfermeira Mônica Calazans se tornasse a primeira pessoa a receber a CoronaVac, o fármaco que surgiu como uma aposta do governo de João Doria (PSDB) e foi desenvolvido pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac. Nos dias seguintes, cenas semelhantes foram vistas em vários outros estados. Esse momento histórico representa não só um marco para a ciência brasileira, como também a primeira medida capaz de efetivamente salvar vidas na pandemia. Por mais que o presidente Jair Bolsonaro e o Ministério da Saúde sigam recomendando de forma irresponsável tratamentos precoces e sem comprovação de eficácia para o combate à doença, como a célebre e polêmica cloroquina, somente um amplo e irrestrito programa de imunização poderá interromper a escalada de mortes e, por tabela, reativar a combalida economia brasileira. Até a quinta 21, apenas 105 000 pessoas haviam sido contempladas, mas esses números devem subir rapidamente nas próximas semanas. Os desafios para imunizar todos os brasileiros são enormes, mas o início do programa, ainda que feito a passos trôpegos na parte sob responsabilidade do governo federal (veja matéria na pág. 30), renova as esperanças no país enlutado por mais de 212 000 mortes.

Arte falas Vacina Bolsonaro

A largada da vacinação fez o Brasil se notabilizar ainda como a única nação no mundo em que a chegada dos fármacos se converteu numa notícia ruim para o presidente. Em Israel, por exemplo, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu já imunizou 30% da população de seu país e vem tentando transformar o programa num ativo eleitoral. O presidente turco Recep Tayyip Erdogan foi uma das primeiras pessoas em seu país a receber uma dose da CoronaVac. Por aqui, a fim de rivalizar com Doria, um virtual concorrente ao Palácio do Planalto em 2022, Bolsonaro fez campanha contra a vacinação e, em especial, contra a CoronaVac (veja o quadro). Vinte horas após a aplicação da dose em São Paulo, o capitão falou pela primeira vez sobre o tema, em um tom mal-humorado: “Apesar da vacina… Apesar, não. A Anvisa aprovou, não tem o que discutir mais”, disse, ao se encontrar com apoiadores na saída do Palácio da Alvorada. Ele também tentou investir na narrativa de que o fármaco do Butantan é um produto nacional, contrariando posicionamentos anteriores em que se referia a ele como “vacina chinesa do Doria”. Por fim, voltou a ironizar a eficácia de 50,38%. “Se jogar uma moedinha para cima, é 50% de eficácia”, desdenhou.

Como se não bastasse o discurso irresponsável de Bolsonaro em relação às vacinas, o governo foi tragado para o epicentro de uma crise de enormes proporções com o caos sanitário em Manaus (leia mais na pág. 34) e com as falhas do Ministério da Saúde para garantir a compra e distribuição dos imunizantes (veja matéria na pág. 30). Com essa postura, e o agravamento da catástrofe social e econômica provocada pela pandemia, os índices de popularidade do presidente sofreram reflexos diretos. O instituto de pesquisas Ipespe, em levantamento encomendado pela XP Investimentos, constatou que pela primeira vez desde abril de 2020 a rejeição a Bolsonaro cresceu de 35% para 40%, enquanto sua aprovação caiu de 38% para 32%. “A luz vermelha está a caminho”, diz Antonio Lavareda, presidente do conselho científico do Ipespe.

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BARULHO - Manifestantes em Brasília fazem um panelaço: protesto contra o governo e a sua atuação na pandemia -
BARULHO - Manifestantes em Brasília fazem um panelaço: protesto contra o governo e a sua atuação na pandemia – (Sergio Lima/AFP)

A ministros, Bolsonaro admitiu que jamais pensou que perderia a batalha de narrativas com Doria, mas um monitoramento feito pela Secretaria de Comunicação da Presidência detectou apoio maciço dos brasileiros à imunização e insatisfação generalizada com o atraso na distribuição das vacinas. Panelaços ouvidos Brasil afora e outros levantamentos feitos nos últimos dias mostram que o termômetro do Palácio do Planalto está correto. Um levantamento encomendado por VEJA do Paraná Pesquisas mostrou que cresceu de 61,2% para 65,7% entre setembro e janeiro a fatia da população que pretende se vacinar. Ainda segundo o Paraná Pesquisas, 35,1% dos brasileiros consideram Bolsonaro o principal culpado pelo atraso na vacinação. Nas redes sociais, território onde Bolsonaro sempre teve o domínio, houve estragos evidentes. Em um trabalho exclusivo para VEJA, a Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV apontou que no Twitter houve 2,1 milhões de menções às vacinas entre os dias 17 e 18, sendo que apenas 6,4% dos perfis envolvidos nessa discussão estavam alinhados com o governo. O negacionismo do capitão também foi derrotado no Facebook. O Monitor do Debate Político no Meio Digital, liderado por pesquisadores da USP, constatou que as vacinas corresponderam a 27% de todas as publicações feitas em páginas públicas da rede social no dia 17. Postagens de cunho bolsonarista corresponderam a só 14% do volume total do que foi publicado sobre o tema, enquanto os compartilhamentos da oposição ao governo foram de 29%. “Assim como no Twitter, ficou claro no Facebook a tentativa improvisada dos bolsonaristas de mudar a narrativa que haviam criado para desmerecer a CoronaVac”, afirma Marcio Moretto, um dos responsáveis pelo estudo. Enquanto Bolsonaro apanha no meio digital, Doria colhe os proveitos da exposição que a vacina lhe trouxe. Em apenas três dias, o tucano ganhou 22 000 novos seguidores no Twitter, segundo a Bites Consultoria.

arte pesquisa vacina

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Os arranhões na imagem do presidente não significam necessariamente que sua popularidade vai derreter em ritmo acelerado. Na recente pesquisa da XP, aliás, em cenários para 2022, ele continua à frente dos rivais na simulação de primeiro turno e só perde para seu ex-ministro Sergio Moro no segundo.

ALVO - Protesto no Distrito Federal: grupo infla um boneco do presidente Jair Bolsonaro em frente ao prédio da Anvisa -
ALVO - Protesto no Distrito Federal: grupo infla um boneco do presidente Jair Bolsonaro em frente ao prédio da Anvisa – (Andre Borges/Getty Images)

Apesar de contar ainda com um público fiel, Bolsonaro acusou o golpe sofrido nos últimos dias e, na tentativa de virar o jogo, aprovou o lançamento de uma campanha publicitária, a maior do governo, orçada em cerca de 50 milhões de reais, para defender um “Brasil imunizado” e a ideia de “uma só nação”. Uma outra ideia em gestação no Palácio do Planalto, de mais difícil execução, é vacinar Bolsonaro diante das câmeras de TV, como forma de reconhecer que a medida é essencial. Falta combinar com o capitão, claro. Ele só se sujeitaria a encenar o papel diante da plateia caso o imunizante fosse o patrocinado pelo governo federal, o da Oxford/AstraZeneca, aquele que Eduardo Pazuello, o Ministro da Saúde, disse que traria para o Brasil da Índia no fim de semana passado, mas não trouxe.

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A situação de Pazuello, aliás, tem provocado também desgastes internos e respinga no presidente, que ainda defende o subordinado. A auxiliares, Bolsonaro declarou que Pazuello é um “fiel aliado e cumpre todo o combinado”. Pois tal insistência com ele pode cobrar um preço alto. Militares ouvidos por VEJA relatam uma insatisfação crescente com a permanência do general na Esplanada, sobretudo diante das falhas de gestão. Pazuello já recebeu recados da cúpula do Exército de que o melhor caminho, se insistir em continuar ministro, é ir para a reserva. Seria uma forma de tentar dissociar a imagem das Forças Armadas do descalabro administrativo em curso. O ministro resiste.

RESISTÊNCIA - Técnico do Butantan em 1987: tradição contra o negacionismo -
RESISTÊNCIA - Técnico do Butantan em 1987: tradição contra o negacionismo – (Homero Sérgio/Folhapress/.)

Pazuello não é o único foco de discordâncias graves hoje dentro do governo. Enquanto Bolsonaro busca reagir à derrota que sofreu com a vitória da vacina, os seus principais auxiliares tentam encontrar culpados e trocam acusações. Os militares, capitaneados pelo chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, põem a maior parte do problema na conta da comunicação do governo, chefiada pelo ministro Fábio Faria. Bastante irritado, Heleno explicitou sua insatisfação abertamente numa reunião na segunda 18. A manifestação provocou desconforto em Faria e seus comandados.

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Nesse cenário de confusão e troca de torpedos na coxia presidencial, não há como negar que o assunto impeachment voltou à pauta. Parte do entourage do presidente considera praticamente nula a possibilidade de um processo do tipo prosperar. Mas nada garante que esse cenário não possa mudar. Integrantes do núcleo duro de apoio a Bolsonaro avaliam que a eventual vitória de Baleia Rossi (MDB-SP), candidato da oposição na disputa pelo comando da Câmara, elevaria a possibilidade de um processo de impeachment ganhar tração. “Se Baleia ganhar, pode ser o início da tempestade perfeita com a qual a oposição sonha”, admite um ministro próximo ao presidente. Em conversas reservadas, integrantes do STF, que podem ser chamados a se manifestar sobre o tema, mostram-se céticos quanto ao sucesso da iniciativa. “O impeachment é como a bomba atômica. Normalmente, não é para ser usado”, afirmou um ministro do Supremo a VEJA.

MISSÃO - Fiocruz: sediada no Rio, a instituição produzirá vacina de Oxford no país -
MISSÃO - Fiocruz: sediada no Rio, a instituição produzirá vacina de Oxford no país – (Bernardo Portella/Bio-Manguinhos/.)

Enquanto tratam com a devida cautela a questão do impedimento, os integrantes do STF reclamam nos bastidores da apatia do chefe do Ministério Público, Augusto Aras, e dos procuradores para cobrar judicialmente o presidente e Pazuello pelas decisões e omissões administrativas que, segundo os magistrados, contribuíram para o agravamento da pandemia. De acordo com os ministros do Supremo, ações propostas pelo MP, mesmo que não resultem em condenações judiciais, serviriam como fator de pressão para fazer o governo se mexer. Aras evita quanto pode uma cobrança mais efetiva ao governo. Em nota, ele disse que cabe ao Congresso abrir processos por crime de responsabilidade contra o presidente. Foi uma tentativa de desviar o foco, já que o impeachment é, sim, atribuição do Legislativo, mas outras formas de cobrança podem ser feitas pelo MP.

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Não faltaram avisos ao presidente sobre os riscos de sua teimosia durante a crise. A voz mais equilibrada do núcleo político, Fábio Faria, em mais de uma ocasião, sugeriu a ele cessar ataques públicos à vacina. Um outro aliado palaciano questiona: “Como explicar que o governo comprou a CoronaVac depois de passar oito meses criticando a CoronaVac?”. A postura presidencial, tão determinante na construção de barreiras que atrapalharam as negociações para a compra de imunizantes, revelou-se antes mesmo da chegada da pandemia. Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde e hoje integrante da lista negra de Bolsonaro, lembra de um episódio ocorrido em meados de 2019. O Butantan o procurou para pedir que o governo federal financiasse estudos de uma vacina contra a dengue. Mandetta voltou a Brasília crente de que levaria uma grande notícia ao chefe: a possibilidade de capitalizar a descoberta de um imunizante para uma doença que mata brasileiros todos os anos. De acordo com Mandetta, de pronto Bolsonaro já se mostrou resistente a entrar num projeto em sociedade com um braço do governo paulista.

Na base da persistência e na crença da força do conhecimento, não é de hoje que profissionais de instituições como Butantan e Fiocruz buscam permanentemente antídotos contra os males da política. Em 1899, um surto de peste bubônica que se propagava a partir do Porto de Santos levou a admi­nis­tra­ção pública estadual a criar um laboratório de produção de soro em um local então conhecido como Fazenda Butantan — houve muita grita e sabotagem, mas o médico Vital Brazil, escolhido para liderar a empreitada, seguiu em frente. A Fiocruz surgiu em 1900, nascida como Instituto Soroterápico Federal, dirigido pelo jovem bacteriologista Oswaldo Cruz, de apenas 28 anos. Em 1904, ele enfrentaria a chamada Revolta da Vacina, deflagrada por camadas da população que não queriam receber o fármaco contra a varíola. Durante a ditadura militar, na década de 70, dez cientistas da Fiocruz foram cassados e perseguidos pelo Exército. Conhecido como o Massacre de Manguinhos, nome do bairro do Rio de Janeiro onde se localiza a sede do instituto, eles tiveram de se aposentar compulsoriamente e ficaram proibidos de trabalhar para qualquer repartição pública do país. O grupo defendia a produção científica livre e criticava a submissão das instituições públicas do país aos interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos. Os cientistas foram reintegrados à instituição somente em 1986, com a redemocratização. Por causa desse passado, Bolsonaro, sempre saudoso dos anos de chumbo, já se referiu à Fiocruz por mais de uma vez em conversas reservadas como um “antro de esquerdistas”. Ironicamente, é o trabalho dessa fundação que representa hoje o bálsamo de esperança do presidente para apresentar um imunizante que leve o selo do governo federal. A aprovação das vacinas contra a Covid foi apenas o capítulo mais recente de uma batalha centenária de Butantan e Fiocruz contra posturas negacionistas. Para o bem do Brasil, felizmente, a ciência está ganhando mais uma vez essa disputa. Que venham logo mais vacinas!

Publicado em VEJA de 27 de janeiro de 2021, edição nº 2722

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