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Ele manda pouco

Com uma carta desastrosa às escolas, arrematada com o slogan de campanha de Bolsonaro, o ministro Vélez, aquele dos 'canibais', exibe sinais de fraqueza

Por Monica Weinberg, Edoardo Ghirotto e Maria Clara Vieira
Atualizado em 1 mar 2019, 13h35 - Publicado em 1 mar 2019, 07h00

A ideia vinha sendo gestada silenciosamente no gabinete do ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, desde que ele recebera do presidente Jair Bolsonaro uma incumbência: o chefe queria que seu ministro estimulasse “símbolos pátrios” nas escolas. Ordem dada, ordem cumprida. Na segunda-feira 25, sem que assessores próximos tivessem ouvido falar do assunto e sem consultar a área jurídica, Vélez disparou para a rede pública um e-mail que se revelou uma bomba de efeito bumerangue. Em texto sucinto, pedia que, no primeiro dia de aula, alunos e professores se perfilassem diante da bandeira ao som do Hino Nacional. O rito deveria vir acompanhado da leitura de uma certa carta que evocava o “Brasil dos novos tempos” e se encerrava com o slogan da campanha presidencial — “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos!”. Detalhe: solicitava-se (assim mesmo) que a cerimônia fosse gravada e que se enviassem as imagens ao MEC. O ministro acabou voltando atrás em boa parte do plano original, mas o estrago estava feito.

Em uma só tacada, Vélez abalou noções fundamentais de respeito às instituições, pôs em dúvida a honestidade da reivindicação de eliminar a doutrinação nas escolas e deixou a castigada educação brasileira envolta em sérias dúvidas sobre aonde, afinal, este governo almeja chegar. Tirando as bravatas em tuítes divulgados pelo filho Zero Três do presidente, Eduardo Bolsonaro, nenhum órgão respeitado apoiou a iniciativa. Dez estados disseram oficialmente que não cumpririam a “solicitação”. A Ordem dos Advogados do Brasil estuda entrar com uma ação de improbidade administrativa contra Vélez. O Ministério Público Federal elencou dezessete ilegalidades nos três parágrafos arquitetados pelo MEC, entre elas desrespeito à liberdade religiosa, avanço dos interesses de um governo sobre o Estado e violação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Pressionado pelo próprio Palácio do Planalto, Vélez deu um passo atrás: sim, o Hino continua, mas sem filmagem nem slogan de campanha. O tom ufanista da carta permaneceu.

SEM PALAVRAS - O ministro Vélez (à esq.) e sua carta cheia de excessos e ilegalidades (à dir.): ele precisou recuar e pedir desculpas pela iniciativa, que pôs em dúvida a proposta de eliminar “ideologias” das escolas (Cristiano Mariz/VEJA)

O episódio não é fruto de mera trapalhada: ele compõe um caldo ideológico que extrapola o MEC e se dissemina por setores bem mapeados da Esplanada, sobretudo nos ministérios sob a guarda de Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos). Além da batatada de Vélez, a corte bolsonarista cultiva o antiglobalismo e a batalha contra a “ideologia de gênero” e a favor dos “bons costumes”, e desfia um ódio à esquerda, mimetizando o que faziam os petistas contra seus adversários. “O foco na guerra cultural, no antimarxismo, suscita preocupações etéreas, descoladas das questões concretas a enfrentar”, alerta o filósofo Luiz Felipe Pondé.

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Na Educação, o ministro aderiu à agenda como pede o figurino. Já na posse, mostrou-se alinhado: “Essa tresloucada onda globalista (…) passou a destruir um a um os valores culturais em que se assentam nossas tradições mais caras”, disse. Apesar de nunca ter endossado nos tempos pré-governo o movimento Escola sem Partido (que, aliás, criticou o ministro no enrosco da carta, ao dizer, com razão, que a ideologia estava trocando o sinal da esquerda para a direita), Vélez abraçou com vigor a ideia de expurgar a “doutrinação marxista” das salas de aula. No Inep, órgão ligado ao MEC, fala-se em criar um grupo para fazer uma varredura no Enem. Objetivo: caçar questões que colidam com o pensamento conservador em vigor. Na frente patriótica, Vélez defende o retorno do ensino de moral e cívica, que ganhou espaço na ditadura do Estado Novo, como impulsionador de uma “consciência patriótica”, e virou disciplina obrigatória em 1969, em plena ditadura militar, assim ficando até 1993. “Não há nada de errado com o Hino. O que preocupa é o exagero no culto aos símbolos da pátria, porque ele costuma vir aliado à ideia de uma sociedade homogênea, em que não cabem diferenças”, pondera a socióloga Helena Bomeny.

HÁ VINTE ANOS - Vélez (no destaque), Olavo (o último agachado à dir.) e Paim (o segundo da esq. para a dir., de pé) (//Reprodução)

Colombiano naturalizado brasileiro, Vélez, de 75 anos, tomou um susto quando jantava com amigos de Olavo de Carvalho, o guru intelectual dos Bolsonaro, e veio a saber, entre comes e bebes, que seu nome circulava na bolsa de apostas para comandar o MEC. Animou-se. “Os olavetes estão defendendo a minha indicação por lá. Vamos ver o que acontece”, contou a um amigo. No Brasil, Vélez procurou abrigo na academia, e decidiu viver aqui em 1979, quando Medellín, a cidade em que morava, estava em pé de guerra. Seu primeiro elo no país foi o professor e mentor Antonio Ferreira Paim, hoje com 92 anos. Paim o orientou no mestrado, depois os dois escreveram livros juntos. “Eu ajudei a desatracá-lo do esquerdismo. Ele defendia guerrilhas na América Latina. Era barra-pesada”, recorda o professor. Vélez persistiu na trilha acadêmica, com carimbo de várias universidades públicas e particulares, sem muito destaque. Foi lecionando em Londrina que conviveu com pupilos de Olavo.

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Embora transite há anos em círculos que se identificam com o guru bolsonarista, Vélez e Olavo tiveram pouco contato — encontravam-se aqui e ali muito de vez em quando. O amigo Lucas Berlanza, diretor do Instituto Liberal e conhecedor dos livros do ministro, afirma: “Ele nunca foi olavista”. Mas Olavo lia Vélez, que mantém um blog (agora de acesso restrito) chamado Rocinante. Seus artigos não se amoldam inteiramente à cartilha olavista. Em 2016, na revista on-line Amálgama, Vélez se referiu ao recém-eleito presidente Donald Trump (reverenciado no Planalto) como “o pior do populismo latino–americano” chegando aos EUA.

NA DEFESA – Eduardo Bolsonaro, deputado federal e o mais “olavete” do clã, postou tuítes (acima, um deles) de apoio à carta de Vélez: o texto atendeu a um pedido do próprio presidente de incentivo a “símbolos pátrios” na sala de aula (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Em entrevista a VEJA em novembro do ano passado, Olavo falou de Vélez, já no leme do MEC: “Eu não concordo com tudo o que ele pensa, mas o acho um cara altamente qualificado. Tenho certeza de que ele colocará os interesses da nação acima dos dele próprio”. Uma vez escolhido por Bolsonaro, a quem mal conhecia, Vélez procurou Paim. “Ele ficou preocupado com essa ligação com o Olavo de Carvalho. Nós conhecemos a obra dele, é um pensador, mas não temos nada a ver com aquilo”, diz Paim. O telefonema de Vélez a Paim foi também uma deferência ao mestre. O ministro não queria que ele ficasse melindrado com os holofotes evidenciando sua recente aproximação com Olavo. Na posse, fez questão de citar os dois. Ao assumir a pasta, Vélez começou a enfrentar dificuldades. Percebeu que sua função é tão complexa quanto jogar uma partida diária de xadrez, com a agravante de que não pode se mover sozinho no tabuleiro. Um figurão da área de educação que esteve em janeiro no ministério teve a impressão de que Vélez é “uma rainha da Inglaterra”: mandar mesmo, manda pouco.

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Entre os “olavates”, apelido já absorvido pelos próprios, chama atenção a presença do coronel Ricardo Wagner Roquetti, que não desgruda do ministro. Roquetti é ex-pró-reitor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e fiel admirador de Olavo, com quem comunga, ele sim, da mesma cartilha. Roquetti apresenta-se como uma voz do pensamento conservador e, logo na chegada ao MEC, promoveu uma mesa-redonda informal em que tratou de marxismo cultural, entre outros assuntos. Nomeado diretor de programas da secretaria executiva, Roquetti emplacou gente de sua confiança no ministério e desfruta alta influência. Nos bastidores da Esplanada, há até quem diga que ele é o ministro de fato. Mas o mais próximo mesmo de Olavo é o discreto assessor especial Silvio Grimaldo, que coordena seus cursos on-line e tem inclusive procuração para movimentar as contas bancárias do guru.

MEIA-VOLTA - Escola da Polícia Militar em Brasília: multiplicar o modelo é prioridade no MEC de Vélez Rodríguez (Pedro Ladeira/Folhapress)

Nesse jogo do poder, os temas que verdadeiramente importam na educação acabam diluídos em meio a discussões de cunho ideológico. Enquanto o MEC trata da inclusão de moral e cívica no currículo ou da criação de escolas cívico-militares, pesa uma incerteza sobre estados e municípios em relação a um ponto crucial para o andamento da vida escolar: o MEC continuará a apoiar — com ajuda técnica e financeira — a implantação da novíssima base curricular neste ano que se inicia? Ninguém cravou isso. Outros temas que merecem elevada discussão têm sido enquadrados em uma polarização simplificada. É o caso do debate sobre o plano nacional de alfabetização, que consta no rol das 100 metas dos 100 primeiros dias de governo e acabou virando um embate entre dois métodos. Um deles, o fônico, aprendizado por meio dos sons de cada letra, é visto como coisa da direita; o outro, o global, como da esquerda — isso porque muita gente o identifica com o “construtivismo de Paulo Freire”, algo de que nunca se ouviu falar pois Paulo Freire jamais foi “construtivista”. “Não dá para a ideologia se sobrepor à ciência”, sentencia Ítalo Curcio, coordenador do curso de pedagogia da UniversidadePresbiteriana Mackenzie, em São Paulo.

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Na terça-feira 26, o ministro Vélez atendeu a um convite do Senado para apresentar as prioridades do MEC. É de praxe, mas, depois da carta-bomba do dia anterior, a sala da Comissão de Educação, Cultura e Esporte lotou de interessados e curiosos. Na ocasião, chegou a circular o boato de que o ministro havia sido demitido e, portanto, não compareceria. No entanto, Vélez foi e expôs durante três horas e meia seus planos para o ensino brasileiro. Levantou questões de suma relevância, da alfabetização ao ensino médio, mas deixou na plateia a impressão de ter sido vago. “Apesar de as prioridades irem no caminho certo, o ministro demonstrou ainda não ter propostas concretas para o que ele próprio elencou”, avalia João Marcelo Borges, diretor de estratégia política da ONG Todos pela Educação.

Também não passou despercebido o fato de o ministro, normalmente espontâneo, ter lido sua fala, escrita por um assessor. A ideia era que não houvesse deslizes, como a comparação do brasileiro a “um canibal” que “rouba coisa dos hotéis, rouba o assento salva-vidas do avião; ele acha que sai de casa e pode carregar tudo”. A frase, dita em entrevista a VEJA, custou a Vélez um pedido (ou seria uma ordem?) do Planalto para não se estender com a imprensa por ora. Enquanto o ministro coleciona polêmicas, a educação dos canibais segue entre as piores.

Com reportagem de Fernando Molica

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Publicado em VEJA de 6 de março de 2019, edição nº 2624

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